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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.61 n.2 São Paulo  2009

     

     

     

    ENTREVISTA: ALCEU MAURICIO JR.

    O direito na sociedade de risco

     

    A presença do risco na contemporaneidade é considerada uma constante que vem provocando transformações nas mais variadas áreas. Alceu Mauricio Junior, juiz federal na 2ª região (RJ e ES), co-líder e pesquisador do grupo de pesquisa Estado de Direito e Sociedade de Risco (http://riscoedireito.org/) na PUC-Rio, avalia algumas das mudanças que se relacionam a riscos, Estado e direito. Segundo ele, a sociedade ainda se mobiliza pouco para as questões do risco, principalmente pela falta de informação. "A deliberação popular é importante, mas necessita ser uma deliberação informada", enfatiza, lembrando que os cursos de direito e outros da área de ciências sociais devem incorporar o estudo do risco, como forma de preparar legisladores e juízes para a discussão. Mauricio é mestre em direito público pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e especializado na American University, Washington College of Law.

    Qual a sua avaliação sobre a forma como se fiscalizam os riscos oriundos de desenvolvimento científico e tecnológico no Brasil?

    A contínua produção de efeitos secundários decorrentes de desenvolvimentos tecnológicos resultou em perda de legitimidade da ciência como produtora de verdades. A ciência se torna crítica da própria ciência e a tecnologia é percebida como produtora de riscos: não há mais atividades risk-free. Segundo o sociólogo alemão Ulrich Beck e outros autores, os cidadãos desenvolvem uma crescente percepção do risco e já não confiam nas empresas e institutos de pesquisa privados quanto à segurança dos produtos e serviços que são colocados no mercado.

    No Brasil, regulação, administração, vigilância e fiscalização do risco enfrentam desafios políticos e institucionais provocados por valores conflitantes. Por um lado, está a pressão pelo desenvolvimento; por outro, a segurança da população e do meioambiente frente aos riscos produzidos para alcançar o objetivo de crescimento econômico. Um exemplo claro desse conflito é o problema da agroindústria e os agrotóxicos.

    Há propostas de revisão ou reformulação da gestão de riscos no país?

    A gestão de riscos tem sido desenvolvida de forma descentralizada no Brasil, normalmente com a atuação de cada ministério ou agência reguladora em sua área específica. Tem aumentado a preocupação em se estabelecer um caráter multidisciplinar aos órgãos mais especificamente ligados à regulação do risco. A regulação estatal também tem se ampliado.

     

     

    Existe diferença entre o ritmo de evolução do direito e da legislação e o ritmo de avanço da ciência e da tecnologia. Nesse cenário, como é possível prover a segurança da população?

    Em alguns casos especiais de regulação do risco como, por exemplo, a biotecnologia, justifica-se o controle estatal prévio da pesquisa científica, pois ela própria é geradora de riscos coletivos e relevantes. No entanto, ressalvadas essas hipóteses, o lapso de tempo entre o desenvolvimento de novas tecnologias e a regulação estatal dos respectivos riscos é um fato praticamente inevitável, sob pena de cerceamento desmesurado da liberdade científica, que também é um valor constitucional. Surge para as empresas e pesquisadores, então, um dever fundamental de expor ao público os riscos inerentes ao uso do produto ou serviço, bem como assumir de forma ampla a responsabilidade por eventuais efeitos secundários, mesmo que não previstos. Como o sociólogo britânico Anthony Giddens bem ressaltou, a responsabilidade é um elemento inerente à sociedade de risco.

    Esse cenário acaba provocando uma sobrecarga do judiciário?

    Certamente. O judiciário trabalhava com as questões tecnológicas através da peritagem. Os riscos tecnológicos eram vistos simplesmente como uma questão de fato que o expert – o perito indicado pelo juiz – procurava esclarecer. Os novos problemas trazidos pela sociedade de risco alcançam um nível de complexidade que não permite simplesmente a aplicação dessa fórmula.

    A sociedade civil está mobilizada para essas questões?

    A mobilização da sociedade para questões do risco ainda não está suficientemente estruturada, principalmente pela falta de informação. As entidades privadas são demasiadamente fechadas sobre os riscos de suas atividades, geralmente sob a alegação de segredos industriais. Esse argumento, todavia, não se sustenta à luz do caráter coletivo dos riscos decorrentes dessas operações. O setor público, por sua vez, não tem a transparência necessária nem incentiva a participação do público.

    Uma das portas de entrada de tecnologias no país tem sido o contrabando. Os transgênicos, por exemplo, entraram em uso antes de qualquer regulamentação. Com isso, legislar está sempre a reboque da articulação de interesses do mercado?

    O problema de contrabando de tecnologias não regulamentadas insere-se no problema crônico de estrutura para aplicação da lei no Brasil. A pergunta, por sua vez, traz à baila outro problema, vinculado à globalização dos riscos. Países com legislação mais fraca ou, principalmente, com fiscalização ineficiente, são usados como campo de experiências para tecnologias ainda não aprovadas nos países de origem. São as novas desigualdades globais verificadas na sociedade de risco.

    Consultas públicas são eficientes e garantem a participação mais democrática nas decisões que envolvem riscos?

    As consultas públicas são um instrumento de democratização das deliberações sobre o risco, mas eu não diria que são suficientes ou dispensem outros mecanismos democráticos. Uma das grandes questões dos estudos sobre o risco está no equilíbrio entre sua percepção pela população e a opinião dos experts, e não há uma fórmula pré-definida. A deliberação popular é importante, mas necessita ser uma deliberação informada.

    É fato que a Agência de Controle de Alimentos e Medicamentos norte-americana (FDA) tem aprovado medicamentos ou alimentos de forma mais rápida do que há alguns anos? Isso é um reflexo da aceleração do desenvolvimento da ciência?

    O aumento de medicamentos aprovados pela FDA pode ser resultante de uma aceleração no desenvolvimento da ciência, mas não há evidências de que essa seja a única causa. No caso específico dos EUA, não se pode esquecer que a gestão Bush promoveu a desregulamentação de várias atividades ligadas à produção de riscos tecnológicos. Isso, aliás, vem gerando conflitos entre as regulamentações dos estados e as do governo federal norte-americano, sendo este último, geralmente, menos exigente e impondo responsabilidades mais amenas do que as regulamentações locais.

    O Brasil tem seguido o princípio de precaução para prover a segurança?

    O princípio da precaução é mencionado em acordos e tratados internacionais assinados pelo Brasil e, embora não esteja explicitamente declarado em nossa Constituição (como acontece na França), é implicitamente reconhecido no artigo 225 do texto constitucional. Esse princípio, mais do que uma simples novidade acadêmica, revela-se como inerente ao estado de direito em uma sociedade de risco, no qual certas atividades podem ocasionar danos imprevisíveis e irreparáveis. Nesse ponto, é interessante diferenciar o princípio da prevenção – que trata dos riscos previsíveis – do princípio da precaução, sendo este último uma ferramenta jurídica para lidar com riscos cujo alcance não pode ser adequadamente antecipado.

    Nossos legisladores e juízes estão preparados para lidar com as questões trazidas pelo risco?

    O estudo sobre os impactos da sociedade de risco no direito ainda é pioneiro, mas já é possível observar desdobramentos em diferentes áreas do direito penal, ambiental, administrativo, tributário e orçamentário, entre outros. Esses estudos estão em sua maioria concentrados na pós-graduação, como é o caso do grupo de pesquisa da PUC-Rio, e acredito que ainda levará algum tempo até que esses resultados sejam absorvidos nas grades curriculares da graduação. Em minha opinião, é fundamental que o curso de direito – assim como outros cursos da área de ciências sociais – incorporem o estudo do risco, que, nas palavras do filósofo François Ewald, ocupa uma posição proeminente nas sociedades contemporâneas, sendo o ponto sobre o qual estas "questionam-se, analisam-se, buscam seus valores e, talvez, reconheçam seus limites".

     

    Marta Kanashiro