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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.61 no.2 São Paulo  2009

     

     

    APRESENTAÇÃO

    A ARTE DO INCONSCIENTE

    Jassanan Amoroso Dias Pastore

     

     

    A beleza salvará o mundo.
    Fiódor Dostoievski, 1868.

     

    Embora possa parecer estranho, ainda se faz necessário debater as conexões, tensões e limites entre os campos da psicanálise e o das artes em geral. Embora possa parecer estranho, ainda se faz necessário investigar o lugar e a função da dimensão estética na clínica psicanalítica, bem como explicitar de que modo a experiência psicanalítica potencializa a emergência de processos criativos.

    A psicanálise é uma concepção cultural, uma teoria da mente e uma técnica terapêutica. A especificidade humana deriva da linguagem, da memória, da complexa capacidade de criar cultura e de criar uma história inserida na história, também criada. A inauguração da psicanálise marcou o século XX e exerceu influências decisivas na criação artística, e foi por ela influenciada, sobretudo, com o advento do surrealismo.

    O retorno a Freud se impõe. Na época em que se formou em medicina, em Viena, ele tinha interesse pela neurologia e, em especial, pela pesquisa científica. Sua trajetória começa a tomar novos rumos por volta de 1885, quando vai para Paris, por meio de uma bolsa de estudos concedida por seus professores, estagiar com o médico e cientista Jean-Martin Charcot, na investigação da histeria, no Hospital Salpêtrière. Nessa época, ele chega a queimar seus escritos, marcando, talvez, assim, "a grande virada de sua vida", ainda que sem o saber, e a dizer que não se importaria com a fúria dos biógrafos, que teriam, cada um deles, à sua maneira, de construir a história do herói. Contudo, ao longo de sua obra, Freud sempre recupera uma ideia ao superá-la. Sua vida e o desenvolvimento de seu pensamento têm o desenho de uma Aufhebung contínua – conservar, apagar e ultrapassar. A cada vez, diferentes elementos de uma experiência/metáfora/matriz são retomados para pensar a teoria psicanalítica, realizando, como se costuma dizer, uma espécie de movimento de caleidoscópio, que, ao ser girado, dispõe os mesmos elementos numa nova constelação.

    Para Charcot, o instinto sexual reprimido poderia ter como válvula de escape a histeria, sobretudo nas mulheres, uma vez que a repressão sexual recaía, naquela época, preferencialmente sobre elas. Freud vai nos alertar sobre o papel da sexualidade reprimida como fonte de conflitos, que viriam a constituir o inconsciente, para o qual os sonhos representam uma via privilegiada, por meio de seu significado oculto e simbólico. Assim, os novos rumos o distanciarão da neurologia e o conduzirão à procura dos sentidos dos sintomas histéricos e, acima de tudo, de outros atos humanos, até então pouco considerados, ou, até mesmo, desconsiderados – espécie de "lixo" do pensamento –, como os sonhos, os lapsos, por fugirem do controle racional consciente. Essas considerações revelam os deslocamentos e as condensações que, por sua vez, fazem da arte, também, um atalho privilegiado ao inconsciente.

    Como podemos observar, desde o início da história da psicanálise, apoiado em sua clínica da histeria, Freud demarca um forte elo entre o recalcamento e as referências normativas da esfera cultural, cuja sexualidade se encontrava, naquela época, infestada de uma moral repressora que se constituiu num terreno fértil para o recalcamento.

    Embora seu ponto de partida tenha sido o diálogo com a histeria, Freud segue seu próprio caminho, longe de qualquer senda já trilhada, sem se deixar desviar pela oposição e por conflitos violentos com a comunidade científica da época, a qual teve de enfrentar em nome da descoberta do inconsciente.

    Desde os primórdios de sua concepção acerca do pensamento psicanalítico, Freud já acena com a estreita conexão que firmará entre a psicanálise e as artes, pois nesta encontrará não só pontos de apoio para sua teorização de que o Eu não é mais senhor em sua própria casa, visto que o inconsciente governa, subterraneamente, grande parcela de nossas ações, como também questões semelhantes àquelas que animam a clínica psicanalítica: o desejo delineando o homem em conflito. Não podemos deixar de trazer à lembrança que, já em 1895, nos Estudos sobre a histeria (1), num comentário crítico da discussão clínica de Elisabeth von R., Freud já afirmava que o estilo de escrita de seus relatos clínicos psicanalíticos se aproximava mais dos romances – não devido a seu bel-prazer, mas sim à natureza do objeto estudado, que demanda um detalhamento das nuanças da vida psíquica em sua historicidade e significação – do que das descrições das doenças da ciência psiquiátrica que não incluíam a singularidade do sujeito, marca distintiva do psiquismo. Acrescente-se o fato relevante de que a construção do pensamento freudiano se faz acompanhar, também, das rememorações de experiências autobiográficas do próprio Freud, e aí reside sua originalidade, relacionadas a cada tema em questão, o que provoca a quebra do dualismo entre ficção e realidade e confunde, por meio de uma nova junção, as fronteiras entre ficção e biografia. A extensa correspondência que manteve com Wilhelm Fliess, seu amigo mais íntimo – sua autoanálise –, entre 1887 a 1904, revela tanto a preciosidade da emergência de uma narrativa poiética em busca de significados na própria história, como o intuito de endereçar mensagens a um Outro por quem deseja ser ouvido e de quem deseja ouvir alguma coisa, que emita algum sentido. De modo semelhante ele procedeu com diversos outros interlocutores, poetas e escritores, imaginários ou reais, interessados na alma humana, com os quais trocava ideias.

    Psicanaliticamente falando, a escritura de uma (auto)biografia nos remete, inevitavelmente, aos "originais" de nossa história ou às suas reproduções/projeções, é elo entre o passado e o presente, entre a criança e o adulto, mas é uma versão sujeita a erros, enganos, esquecimentos, distorções, seleções conscientes ou inconscientes, o que nos leva a pensar que se trata de um esforço para dar sentido ao próprio conto mítico de cada sujeito, ou seja, a (auto)biografia/ficção é (auto)biografia/ficção para um sujeito. Ao escrever "minha vida só tem interesse em sua relação com a psicanálise", Freud nos diz que as evocações e confidências que fez sobre sua vida são como que o subproduto de sua descoberta – a arte do inconsciente. Ao afirmar, numa carta de 1892 a Martha Bernays, "Sempre acho estranho quando não consigo entender alguém em termos de mim mesmo", revela-nos que suas memórias autobiográficas são substitutas dos espelhos – "júbilos e misérias do pequeno eu" (2). A análise do próprio Freud, que temos chamado de sua autoanálise, se fez junto com a de seus pacientes e com a troca de correspondência com Fliess. Numa carta do dia 7 julho de 1897, Freud descreve a transferência em termos muito claros sem a reconhecer teoricamente: "Continuo sem saber o que me aconteceu. Alguma coisa vinda das profundezas abismais de minha própria neurose opôs-se a que eu avançasse mais na compreensão das neuroses, e você, não sei por que, tinha participação nisso". É, com efeito, no campo instaurado a partir desses conhecimentos fundamentais que devemos ressaltar a busca de Freud em torno de uma ideia de verdade como singularidade construída por meio de um processo de subjetivação, cambiante e desviante, em que o sujeito, na sua temporalidade e contexto, estará implicado na criação de sentidos para suas experiências. Daí decorre a explicitação de Freud de que "a verdade biográfica é inacessível. Ainda que pudesse ser atingida, não poderia ser declarada" (3).

     

     

    Em Escritores criativos e devaneios (4), ele lança as bases para a adoção de um paradigma estético na psicanálise ao considerar a arte e o brincar infantil não só fontes de inspiração como maneiras de recriar permanentemente novos objetos de satisfação erótica e de recriar a si mesmo.

    Esse vértice, característico do pensamento freudiano atento às condições de possibilidade para a expressão criadora, levou Freud a aproximar a criação artística – tomando a literatura como modelo – do brincar infantil. O artista é, então, aquele que preserva o processo do recalcamento, ou, até mesmo, aprimora a faculdade da imaginação criadora experimentada pela criança no processo lúdico de constituição de si e do mundo dos objetos que merecerão seu investimento libidinal. Tanto o artista, ao produzir sua obra, como o leitor/expectador realizam, simbolicamente, desejos reprimidos, tal como a criança faz por meio do brincar, ao manipular a realidade, criando "uma outra cena". E, também o analista, pelo poder sensível da palavra, pode encontrar seu potencial de abertura para as sensorialidades.

    Se "a antítese do brincar não é o que é sério, mas o que é real", é apenas no sentido de que a criança investe intensamente na atividade lúdica, e esse investimento transforma o brincar em algo "sério" para ela, ao possibilitar a produção de um sentido singular para sua experiência vital, o que tanto lhe agrada, como nos lembra Freud (5). Ao lado da tendência perverso-polimorfa infantil, as crianças podem agir em suas brincadeiras como um poeta em relação a sua criação, pois nelas incluem suas experiências de mundo numa nova ordem.

    O marco decisivo nas reflexões freudianas é que não há destacamento entre o campo do jogo infantil – bem como o da onipotência da criança – e o da realidade, e é justamente essa "conexão" que distingue o brincar criativo na criança – e a atividade artística – do fantasiar neurótico.

    Ao aprofundar o conceito de inconsciente, ao falar em aparelho psíquico, em id, ego e superego, Freud sempre utiliza metáforas. Ele não menciona estruturas anatômicas; em vez disso, recorre a um processo de criação, influenciado por sua paixão pela literatura de ficção, pois nela identifica uma linguagem semelhante àquela envolvida na constituição do psiquismo e do campo analítico: o afloramento do imaginário, do universo onírico e a emergência da capacidade narrativa associativa, em seus caminhos e descaminhos, que na tentativa psicanalítica de representação das experiências vividas, ao longo da história pelo paciente, são produtores de sentido. O psicanalista, por sua vez, ao adotar, na sua escuta e interpretação, uma atitude semelhante – atenção flutuante –, possibilita que o conteúdo das fantasias, dos lapsos e dos sonhos de seus pacientes possa adquirir sentido. É a escuta da linguagem em seu potencial poiético. O fascínio de Freud pela literatura – ele será agraciado, em 1930, com o prêmio Goethe (6), concedido a personalidades já firmadas cuja obra criadora fosse digna de uma honra dedicada à memória daquele escritor alemão –, tomada como modelo de sua narrativa e da investigação da vida psíquica, é evidenciado tanto pela sua escrita ficcional dos historiais clínicos, em que transparece a trama mito-poiética que caracteriza o processo psicanalítico, como pelo seu contato com a obra literária de vários escritores que serviram de fonte inspiradora para o desenvolvimento de seu trabalho teórico-clínico.

    Assim, devemos reconhecer em Freud, desde sempre, um leitor de literatura de inúmeros poetas e escritores que passeiam pelos porões da obscura alma humana – chegando a considerar o estudo da literatura uma peça essencial do programa de formação dos analistas –, bem como um estudioso da obra de artistas os quais exerceram uma influência determinante em seu pensamento, em diversos momentos de sua obra, com o intuito de revelar e reconhecer, por meio dessas investigações, suas descobertas acerca do funcionamento psíquico e a universalidade do inconsciente.

    Na literatura, é o caso de Sófocles, com a tragédia Édipo rei, mote que Freud privilegiou para construir um dos pilares da teoria psicanalítica – o complexo de Édipo; de Dostoievski, com Os irmãos Karamazov, cerne a partir do qual escreve Dostoievski e o parricídio (7); de Jensen e seu romance Gradiva, que lhe serviu de inspiração para seu primeiro estudo dedicado a uma obra literária, "Delírio e sonhos na Gradiva de Jensen" (8), em que apresenta um resumo da teoria dos sonhos, um esboço da teoria das neuroses e da ação terapêutica da psicanálise, e uma crítica à ciência psiquiátrica; de Hoffmann, com O homem da areia (9), motor para o desenvolvimento da ideia de unheimlich; das tragédias de Shakespeare, como Hamlet, O mercador de Veneza, Rei Lear, Ricardo III e a personagem Lady Macbeth (10); do dramaturgo Ibsen, com a personagem Rebeca (11); de Homero, com Ulysses, e sua travessia, em espiral, da terra natal para terras estrangeiras e seu retorno; de Dante, entre outros. Nas artes plásticas, é o caso dos mestres do Renascimento como Michelangelo, em que Freud realiza um estudo detalhado de sua escultura "Moisés" (12), num momento em que ele próprio estava preocupado com os rumos da psicanálise, e como o extenso ensaio sobre Leonardo da Vinci, Uma lembrança de Leonardo da Vinci (13), esboço para a teoria das pulsões e seus destinos, entre eles a sublimação, e para a teoria do narcisismo, e sua pintura A Virgem, o menino Jesus e a Sant'Ana, na qual Freud descobre a representação de "suas duas mães".

    Devemos também levar em consideração toda essa espécie de interlocutores, na tentativa de compreender como eles orientaram o sentido do que Freud estava investigando, ao inserir os enunciados dentro de um campo e de um contexto específicos, e de atentarmos sobre a inauguração de uma nova metodologia, que Freud foi obrigado a adotar e que vai se distanciar radicalmente da abordagem pelo método das ciências positivas, dado que o objeto de sua investigação era, por sua natureza, singular e fugidio.

    Em seu texto O inconsciente (14), Freud reafirma que podemos perceber com certa facilidade as nossas emoções, mas que possuímos sentimentos a respeito dos quais nada, ou pouco, conhecemos. Num registro estético, podemos entrar em êxtase diante de uma obra, quer seja um filme, uma música, um quadro, um romance, uma conversa etc – tomados por uma emoção estética –, porém o sentimento estético só emergirá após um processo de elaboração acerca do significado de uma dada obra para cada observador.

    Na finalização de seu texto "Os caminhos da formação dos sintomas" (15), Freud chama a atenção para um aspecto da vida de fantasia que julga ser merecedor do nosso mais amplo interesse: "a existência de um caminho de retorno da fantasia à realidade – isto é, o caminho da arte". Para ele, um verdadeiro artista logra encontrar o caminho de retorno à realidade, pois, ao dar forma a seus devaneios, possibilita que outros compartilhem do prazer que se pode obter das fantasias inconscientes ali contidas. Assim, o artista, pela faculdade da sublimação, vai modificar a realidade para obter nela o que lhe fora negado por ela. Nota-se a sutileza de Freud ao descrever a criatividade artística. O artista não usa apenas a fantasia como meio de dobrar a realidade aos seus desejos. Ele obtém o ressarcimento da realidade, ao dilatar as fronteiras da moral e convidar outros a se candidatarem, livre e espontaneamente, à forma de prazer recém-inventada – realidade compartilhada. "Não se trata, portanto, de tomar, em momento algum, a 'transgressão moral' como núcleo da criação. A arte é um meio, legitimado pela moral dominante, de se gozar com aquilo que seria proibido, caso fosse exposto na sua nudez pulsional, ou, no conteúdo excessivamente idiossincrático, particular a cada sujeito. O artista – modelo do criador para Freud –, reinventa novas formas de gozo de acordo com as regras morais e não contra elas" (16) ou, dito de outro modo, a transgressão, em sua dimensão simbólica, é criadora.

    A sublimação, um dos possíveis destinos da pulsão, é, sobretudo, um modo de satisfazer as pulsões sexuais polimorfas através do desvio do alvo e do objeto sexual em direção a novos alvos, ligados, principalmente, às atividades artísticas, conforme Freud nos informa em Os instintos e suas vicissitudes (17). Ao lado dessa ideia, refere-se, também, à sublimação como inibição no que se refere ao alvo. Em ambas as situações, a sublimação estética indicaria a maneira pela qual a energia sexual seria dessexualizada e colocada a serviço do eu; o que permite a transformação da libido em realização social. Assim, renunciamos às nossas perversões, mas podemos revivê-las por meio da arte. A conhecida frase de Dostoievski, epígrafe deste texto – de que "a beleza salvará o mundo" –, contida em seu livro O idiota (18), pode ser aqui evocada como a revelação de uma profunda intuição estética acerca do destino do homem.

    É notadamente a partir da formulação do conceito de pulsão de morte, em Além do princípio do prazer (19), que Freud radicaliza a problemática da criação, ao afirmar que os sintomas (compulsão a repetição e imperativo do gozo) se instalam nas situações em que a intensidade da pulsão de morte, dessexualizada, não puder alcançar expressão criativa.

    Podemos afirmar, portanto, que o ethos civilizatório não se sustenta, necessariamente, na repressão da sexualidade, e sim no impedimento da criação erotizante de estilos de existência singulares. A prática psicanalítica, por seu turno, potencializa a emergência de processos criativos nas subjetividades sofrentes, comprometidas na sua capacidade expressiva.

    No outono de 1927, em "O futuro de uma ilusão", Freud, mais uma vez, foca a relevância de sua abordagem na conexão fundamental entre a arte e o processo civilizatório: "Como já descobrimos há muito tempo, a arte oferece satisfações substitutivas para as mais antigas e mais profundamente sentidas renúncias culturais, e, por esse motivo, ela serve, como nenhuma outra coisa, para reconciliar o homem com os sacrifícios que tem de fazer em benefício da civilização. Por outro lado, as criações da arte elevam seus sentimentos de identificação, de que toda unidade cultural carece tanto, proporcionando uma ocasião para a partilha de experiências emocionais altamente valorizadas. E quando essas criações retratam as realizações de sua conduta específica e lhe trazem à mente os ideais dela de maneira impressiva, contribuem também para sua satisfação narcísica" (20). Porém, é possível identificar certos momentos da obra de Freud em que ele deixa transparecer uma relação de clandestinidade, e até mesmo de relutância e ambivalência, ao convocar as artes para participar de seu corpo teórico. É o caso do texto acima, que trata da religião como uma ilusão, permeado de floreios de um poema de Heine, enviado ao poeta e interlocutor Romain Rolland que, numa carta-resposta, endereçada a Freud em 5 de dezembro de 1927, discutirá o sentimento oceânico. Entretanto, essa ligação só será revelada por Freud, em O mal-estar na civilização, seu próximo texto, em que ele confessa: "Não necessito mais esconder o fato de que o amigo mencionado no texto é Romain Rolland" (21). A correspondência entre ambos prosseguirá e posteriormente, numa carta aberta a Romain Rolland, em janeiro de 1936 (22), por ocasião de seu septuagésimo aniversário, Freud retomará e expandirá, com o amigo, o episódio de seu distúrbio de memória na Acrópole, por ele experimentado em 1904 e sobre o qual fizera uma breve alusão dez anos antes, também em "O futuro de uma ilusão". Nesta carta Freud se refere aos sentimentos de desrealização e despersonalização conectados intimamente ao sentimento de culpa.

    A partir de O mal-estar na civilização, Freud sela definitivamente a amizade da psicanálise com as artes. Podemos evocar que, outrora, identificado com Cristóvão Colombo, já havia admitido a Fliess: "Não sou um homem de ciência, sou, por temperamento, um conquistador". E, mais uma vez, embeleza seu texto com diversas referências e citações de versos e poemas de amigos poetas e escritores, como Heine, Goethe, Voltaire, Schiller, Mark Twain, Shakespeare, entre outros, os quais, ao trazerem à luz as verdades mais soturnas e recônditas da alma humana, fornecem metáforas para o trabalho psicanalítico e acesso privilegiado à criação transformadora, na medida em que ampliam os horizontes psíquicos e engendram novas significações. Nessa época, o movimento surrealista – e não a literatura médica –, que se desenvolve de forma independente, servirá de solo fecundo para a implantação das ideias freudianas na França, em especial, a de potência destrutiva, elaborada por Freud em O mal-estar na civilização. A sedução da morte, o culto ao suicídio que perpassam o texto poético no surrealismo, desde sua origem, encontrarão equivalência no conceito elaborado por Freud, favorecendo seu reconhecimento (23).

     

     

    Na clínica psicanalítica, Sándor Ferenczi (24) destaca-se como um dos pioneiros a nos convidar a conceber o contexto analítico como um dispositivo estético facilitador de processos criativos. Do seu ponto de vista, a dimensão estética da clínica é enfatizada por um certo "modo de estar" do psicanalista no encontro com o seu paciente que envolveria a necessidade de uma flexibilidade técnica ao sugerir atenção para o "tato" – exercício da sensibilidade na clínica. Para esse autor, "o tato é a faculdade de 'sentir com' (Einfühlung)" – um encontro afetivo compartilhado em que os modos de produção de sentidos na clínica decorrem do que é experimentado, afetivamente, pela dupla – aí incluída a experiência emocional do analista, mergulhado no contato com seu paciente. Ferenczi realça que sujeito e objeto, na experiência analítica, são definitivamente inseparáveis, num exercício de afetação mútua.

    Em relação à interpretação psicanalítica, também sabemos que ela não é apenas a revelação de um sentido oculto, mas a criação, pela dupla, de um sentido ausente, a invenção de um sentido que permaneceu em sofrimento. Criar é abrir descontinuidades no fluxo da linguagem, propiciando o assombro e instaurando uma imagem inédita possível, uma significação inédita possível. Façamos um paralelo entre a construção da interpretação e a criação do gesto arquitetônico: "De um traço nasce a arquitetura. E quando ele é bonito e cria surpresa, ela pode atingir, sendo bem conduzida, o nível superior de uma obra de arte". Nessa linguagem poética e metafórica, o arquiteto Oscar Niemeyer define o que lhe parece ser o alicerce da arquitetura – a surpresa como obra de arte, assim como na clínica psicanalítica. E, é no registro do "traço" – mnêmico –, enquanto talha no corpo, que o psicanalista Pierre Fédida (25) nos diz que a escritura não é só a escritura da palavra, é a escritura no próprio corpo, como marca de inscrição e de re-transcrição psíquica contínua, caracterizando a dimensão poiética da linguagem em seu sentido de revelação.

    Donald Winnicott (26) abraça fortemente a ideia de criatividade e idealiza o desenvolvimento analítico como o restabelecimento de um "modo de vida criativo". Para ele, a criatividade é "inerente ao fato de viver", mas sua realização depende de um ambiente materno propiciador de objetos transicionais. Com esses dois elementos a criança se capacita a brincar – atividade criativa infantil, por excelência – e, quando adulta, a substituir os objetos e situações da infância pela produção da arte, religião ou ciência. No entanto, ele esclarece que a criatividade não corresponde necessariamente a "criação de obras de arte". Na clínica psicanalítica, ele enfatiza a sobreposição das áreas do brincar do analisando e do analista como ambiente propiciador de uma experiência ilusória da onipotência, a partir da qual o sentido de realidade pode emergir. Foi ele quem teceu os fios da trama entre ilusão, criatividade e realidade. Com Winnicott aprendemos que a ilusão é aquilo que permite a passagem da natureza para a cultura.

    Hoje em dia, é mister tratar das crianças por meio da psicanálise. Admite-se que a criança se exprime brincando e desenhando, e que fornece assim um texto tão analisável como as "associações livres" de um paciente adulto. Essa comparação é ainda mais facilmente aceita porque o jogo e o desenho são comumente o ponto de partida de associações verbais, comparáveis àquelas que se seguem ao relato de um sonho.

    Mais recentemente, em seu livro-ensaio A apreensão do belo, Donald Meltzer (27) convocou a soberania da criança ao afirmar que, para ela, o sentimento de beleza surge em decorrência de sua percepção da mãe capaz de compreendê-la, indicando-nos assim os primórdios do sentimento de fruição estética.

    A conexão entre psicanálise e arte tem sido objeto de uma multiplicidade de concepções que desembocam em diversas formas de aproximação. Esperamos que as fronteiras criativas do pensamento psicanalítico e da arte possam conviver e funcionar como passagens. Este Núcleo Temático se propõe a apresentar um recorte de algumas possíveis conexões, com o intuito de pensarmos criticamente sobre as dimensões científica e estética da psicanálise.

     

    Jassanan Amoroso Dias Pastore é psicanalista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Atual editora da Revista ide: psicanálise e cultura, publicação da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

     

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Freud, S. (1895). Estudos sobre a histeria. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 2, p.11-309). Rio de Janeiro: Imago. p.209. 1974.

    2. Lima, L. C. Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara. 1986.

    3. Masson, J. M. A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilheim Fliess 1887-1904. Rio de Janeiro: Imago. 1986.

    4. Freud, S. (1908). "Escritores criativos e devaneios". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 9, p.145-158). Rio de Janeiro: Imago. 1974.

    5. Ibidem, p.149.

    6. Freud, S. (1930). "O prêmio Goethe". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 21, p.238-247). Rio de Janeiro: Imago. 1974.

    7. Freud, S. (1927). "Dostoievski e o parricídio". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 21, p.203-223). Rio de Janeiro: Imago. 1974.

    8. Freud, S. (1906). "Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 9, p.17-95). Rio de Janeiro: Imago. 1974.

    9. Freud, S. (1919). "O estranho". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 17, p.273-314). Rio de Janeiro: Imago. 1974.

    10. Nunes, Eustachio P. Freud e Shakespeare. Rio de Janeiro: Imago. 1989.

    11. Freud, S. (1916). "Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico, 2: Os arruinados pelo êxito". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 14, p.357-374). Rio de Janeiro: Imago. 1974.

    12. Freud, S. (1939). "Moisés e o monoteísmo". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 23, p.16-167). Rio de Janeiro: Imago. 1974.

    13. Freud, S. (1910). "Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 10, p. 53-124). Rio de Janeiro: Imago. 1974.

    14. Freud, S. (1915). "O inconsciente". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 14, p.185-245). Rio de Janeiro: Imago. 1974.

    15. Freud, S. (1916-1917). "Os caminhos da formação dos sintomas". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 16, p.419-439). Rio de Janeiro: Imago. p.438. 1974.

    16. Costa, J. F. O risco de cada um. Rio de Janeiro: Garamond. p.88. 2007.

    17. Freud, S. (1915). "Os instintos e suas vicissitudes". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol.14, p.137-168). Rio de Janeiro: Imago. 1974.

    18. Dostoievski, F. (1868). O idiota. São Paulo: Martin Claret. 2007.

    19. Freud, S. (1920). "Além do princípio do prazer". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 18 p.17-90). Rio de Janeiro: Imago. 1974.

    20. Freud, S. (1927). "O futuro de uma ilusão". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 21, p.15-82). Rio de Janeiro: Imago. p.25. 1974.

    21. Freud, S. (1930). "O mal-estar na civilização". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 21, p.81-171). Rio de Janeiro: Imago. p.82. 1974.

    22. Freud, S. (1936). "Um distúrbio de memória na Acrópole". In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 22, p.291- 303). Rio de Janeiro: Imago. 1974.

    23. Azambuja. S. C. "Buñuel: O surrealismo a serviço da psicanálise". Revista ide, vol.32, p.70-74. 2000.

    24. Ferenczi, S. (1928). "A elasticidade da técnica psicanalítica". In: S. Ferenczi, Obras completas: psicanálise 4 (p.25-36). São Paulo: Martins Fonte. p.27. 1992.

    25. Fédida, P. Nome, figura e memória. São Paulo: Escuta. 1992.

    26. Winnicott, D. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. 1975.

    27. Meltzer, D. & Williams, M. H. A apreensão do belo. Rio de Janeiro: Imago. 1995.