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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.61 n.2 São Paulo  2009

     

     

    MÁRIO DE ANDRADE: RETRATOS, REFLEXOS, REFLEXÕES

    Raya Angel Zonana
    Orlando Hardt Junior

     

        Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
    Mas um dia afinal eu toparei comigo…
    Tenhamos paciência, andorinhas curtas (…)" (1)

     

    JOGO DA MASCARADA Assim se apresenta Mário de Andrade que, como todo artista, brincou, ao longo de sua vida, do jogo da mascarada.

    "No jogo da mascarada há uma situação-limite bastante conhecida: é aquela em que o indivíduo vai retirando, uma por uma, as várias máscaras que recobrem seu rosto, até a última – que nem por estar no fim de todas deixa de ser máscara também. A verdadeira cara nunca se mostra; por trás do último disfarce (e será mesmo o último?) a face sempre escondida se nega à exibição. A verdadeira cara, no fim de todas, é talvez a mais enigmática de todas: é a face íntima, a imagem da intimidade" (2).

    Olharemos para esse enigma, a face íntima de Mário de Andrade que, como todos os enigmas, não pode ser desvendado. Os enigmas ficam sempre em suspenso. Ao artista, entretanto, é dado o talento e as formas que lhe permitem expressar com cores, palavras, sons, as mais discretas nuances que nos aproximam do cerne desta indagação: Quem sou? Quantos sou?

    De outra maneira, os psicanalistas fazem dessas questões seu ofício, garimpam o humano, buscam a cada sentimento, a cada palavra, a cada silêncio, novos prismas da alma que se abre sempre em outras refrações. Somos múltiplos, já o sabemos, e jamais conheceremos todos os aspectos que nos povoam.

    Mário de Andrade, habitado por tantos, artista de várias artes, em sua diversidade nos mostra as muitas configurações de seu desejo.

    Precursor da Semana de Arte Moderna de 1922, além de escritor, crítico, músico, cedo manifestou interesse como colecionador de obras de arte. "Nunca colecionei pra mim, mas imaginando me constituir apenas salvaguarda de obras, valores e livros que pertencem ao público, ao meu país, ao pouso que eu gastei e me gastou" (3).

    O interesse pelo seu país é uma de suas inquietações. Busca uma identidade cultural do país, uma forma de expressão da tão variada cultura brasileira. Isso é reflexo de uma procura de identidade pessoal que ele faz no jogo de máscaras, no qual faces surgem e caem ao longo de sua vida.

    No entanto, aquilo que se constituía numa riqueza de interesses e de produção intelectual, e que atraía os críticos, muitas vezes era visto por estes como uma fonte de desnorteamento (4), não só da crítica, mas do próprio Mário: "Foi aí que fiquei horrorizado comigo e lhe escrevi, menos para lhe contar o que eu não posso ser, do que para me libertar de mim. E me libertei de fato. Voltei a ser apenas trezentos e cincoenta mários, repudiando duma vez o trezentos e cincoenta e um (…) Vamos matar para sempre o trezentos e cincoenta e um. Pois não bastam os sofrimentos, as hesitações, as angústias do resto da tropilha!" (5).

    Em sua coleção, a enorme quantidade de retratos do próprio Mário, de várias épocas e autores, nos faz pensar que ao olhar um desses retratos logo surgia uma indagação que fazia necessário o próximo.

    TEMPO DA CAMISOLINHA: PRIMEIRO CORTE, PRIMEIROS RETRATOS Há, na arte, a ética e a finalidade de, através do conhecimento estético, desvelar e transformar o real. Contemplando com a especificidade do pensar psicanalítico a experiência estética dos insistentes retratos de Mário, o entrelaçamento entre estética, psicanálise e arte torna possível uma articulação e uma visão na qual nos envolvemos com esses retratos, criando uma história própria através de um novo olhar, que delineia mais uma das faces enigmáticas de Mário de Andrade.

    Assim, também Mário de Andrade entende os retratos. Uma revelação e criação do pintor e do retratado: "A pintura tem sempre seu lado fantasmagórico, seu lado invenção, o seu lado interpretação" (6). O pintor deveria buscar uma deformação pictórica que pudesse representar a personalidade interior do retratado.

    Mário desejava retratos-interpretações que trouxessem à luz aspectos psicológicos. Queria encontrar em seus retratistas, interlocutores que o vissem e desnudassem sua personalidade interior.

    Menotti Del Picchia (1920) faz de seu amigo Mário de Andrade um retrato, dessa feita, escrito: "Este longo bibliófilo de óculos coruscantes e cara comprida e serena, (…). A sua fronte invadiu o couro cabeludo com uma prematuridade alarmante (…). Esta batalha entre a fronte e o cabelo, batalha em que a epiderme levou regular vantagem (…)" (7).

    O embate com o cabelo é antigo para Mário, e torna-se uma característica importante de sua identidade.

    Em seu conto "Tempo da camisolinha", o narrador conta-nos, com melancolia, de um corte de cabelo imposto violentamente pelo pai quando tinha três anos de idade e que provoca uma brutal mudança em sua alma: "Toda a gente apreciava os meus cabelos cacheados, tão lentos! E eu me envaidecia deles, mais que isso, os adorava por causa dos elogios" (8).

    Dessa época compara duas fotografias (primeiros retratos colecionados?). Na primeira foto, "na moldura da cabeleira havia sempre um olhar manso, um rosto sem marcas, franco, promessa de alma sem maldade". Na outra foto vê algo diverso: "… pareço velho. E o que é mais triste, com uns sulcos vívidos descendo das abas voluptuosas do nariz e da boca larga, entreaberta num risinho pérfido (…) se ela (foto) não me perdoa do que tenho sido, ao menos me explica". Continuando diz: "Recusava os espelhos em que me diziam bonito. Os cadáveres de meus cabelos guardados naquela caixa de sapatos: choro. Choro e recusa. (…) E o meu passado se acabou pela primeira vez".

    Onde antes havia cabelos, surge a falta visível da beleza, dos elogios, do amor. Nesse corte, algo mais grave do que os cabelos transforma-se em cadáver. Os olhares nos quais se refletia belo não existem mais. Resta um passado para sempre perdido e a feiura que afogava seus anseios de perfeição.

    Na busca de perfeição parece estar uma das causas de tantos retratos. Na imensa coleção há um fascínio dos pintores por Mário e de Mário por ele mesmo. Esse fascínio faz com que tudo que Mário escreva – poemas, romances, críticas literárias – sejam formas de escrever sobre ele próprio (9).

    "(…) Eu tenho já uns quatro contos e pretendo fazer mais, de aspecto autobiográfico. (…) É que em todos os contos eu insisto muito em me garantir ruim, perverso, cheio de vícios, baixo, vil, e, no entanto, os casos que sucedem não provam isso, mas sim que sou um sujeito bom, moralmente sadio, cheio de caráter, digno e enérgico! Achei isso esplêndido como retrato de mim e saído assim, inconsciente como saiu, vale mais que uma confissão" (10).

    Notamos a palavra inconsciente. Mário foi um dos primeiros intelectuais brasileiros a se interessar por Freud e pela psicanálise, e, em vários textos, aproxima-se de ideias e da linguagem psicanalíticas. Desejaria aproximar-se de outra maneira, mais pessoal, buscar um retrato por esse viés?

    MÁRIO MULTIPLICADO, OU O ESTRANHO QUE O HABITA Freud (11) perguntava de onde o escritor criativo, retirava seu material e como conseguia produzir tantas impressões e despertar emoções das quais, nem mesmo nos julgávamos capazes.

    Mário de Andrade, poeta, responde e escrevendo apresenta-se, desnuda-se, e nos comove.

    No poema "Noturno de Belo Horizonte", que expressa o amor de Mário por sua terra, Gilda de Mello Souza atém-se a um trecho expressivo, representativo da personalidade do poeta, e escreve: "(…) a chave desse trecho misterioso, cuja compreensão exige não só uma leitura alternativa, mas um conhecimento da biografia intelectual de Mário de Andrade, está na imagem do último verso: 'Nas polidas lagoas de cabeça para baixo'. Pois não são as lagoas polidas, aonde os rios vêm desaguar, já sem forças, que estão de cabeça para baixo, é o poeta que, postado à sua margem, cansado da travessia, inseguro, assim divisa a própria imagem, debruçando-se sobre as águas – onde busca um valor, uma certeza" (12).

    Que certeza é possível ter da própria imagem se, como no rio, assim como na vida, o movimento das águas a deixa sempre turva, mutante e fluida?

    Esse frágil intelectual paulista, à espreita da própria imagem, procurava reavê-la em um objeto diferente, em um outro. Os inúmeros retratos de Mário de Andrade são indícios desse roteiro para buscar a si próprio pelo caminho da alteridade, nos olhares estrangeiros dos artistas que o retratavam. Procura insinuar, nas formas e contornos dos retratos, o que não consegue formalizar em sua alma.

    Em carta a João Cândido Portinari, que acabara de retratá-lo, Mário de Andrade escreve: "Às vezes me paro em frente do seu quadro e fico, fico, fico, não só perdido na beleza da pintura, mas me refortalecendo a mim mesmo. Porque de fato você, mais que ninguém, não apenas percebeu, mas me revelou que eu… sou bom. Seu quadro me dá confiança em mim, me dá mais vontade de trabalhar, de continuar, é um verdadeiro tônico. Foi um bem enorme que você me fez, palavra" (13).

    Nesse retrato pintado por Portinari, Mário capta uma afetividade preciosa de "um estado iluminado de amor", que revela em carta à amiga Henriqueta: "(…) sei o que ele queria dizer, vendo atrás de minha feiura dura e minha cor que são bem de madeira, [Portinari referia-se à cor mulata de Mário], uma bondade, o sujeito bom que ele exigia de mim pra me querer bem" (14).

    Vemos que o bom e o belo são sinônimos na linguagem narcísica que emergiu imediatamente em Mário ao se sentir amado por Portinari.

    Desse olhar desponta o mito de Narciso, filho de Cefiso, um rio, e Liríope, uma ninfa. Tirésias, oracularmente, enuncia que Narciso só viverá muito tempo se não se olhar. Um dia, após uma caçada, Narciso tem sede e vai até o rio, onde ao debruçar-se vê uma imagem na qual não se reconhece e pela qual se apaixona. Torna-se insensível a tudo que o cerca, só vê a si, e inclinado sobre sua própria imagem deixa-se morrer.

     

     

    Voltando ao poema e ao rio de Mário de Andrade, aonde ele se vê de cabeça para baixo, aonde também não se reconhece, a saída do artista não é a morte, mas a arte. Não se recolhe em uma contemplação narcísica, mas busca na arte um objeto onde possa reconhecer-se belo e amado.

    Não só nos que o retrataram Mário buscou interlocutores que o interpretassem, mas também os necessitava em sua imensamente vasta correspondência. Faz, através dos amigos, algo que Freud já havia feito com Wilhelm Fliess: sua análise.

    Se o retrato feito por Portinari ressaltava seu lado angélico, outros dois retratos foram para Mário de Andrade revelações de seus aspectos perturbadores. Reconhece que Lasar Segall e Flávio de Carvalho conseguiram captar a existência em seu rosto de "incompatibilidades irredutíveis do bem e do mal". Dizia que Segall, com "frieza", e Flávio de Carvalho, com "crueldade", mostravam um lado diabólico, com tendências más. Nas imagens, fixado para sempre, o seu ser dividido, feito de um "eu conhecido", "de encomenda para usar quando sai na rua", e de um "eu verdadeiro, interior, caótico".

    Um estranho o habitava (15).

    Na língua portuguesa, a palavra "estranho" está ligada à ideia de uma alteridade, algo diferente do conhecido ou trivial, à ideia de sinistro, esquerdo, "torto". Assim se vê Mário nos retratos que capturam seu lado diabólico. Há nesse reconhecimento do eu e do contra-eu a ambiguidade que Freud descreve no estranho. Surge no poeta o inquietante desconforto de se desconhecer naquilo que reconhece como seu. Há o eu e o contra-eu, e ambos o constituem (16).

    O espelho/retrato captura e revela o amor e o ódio retomando as duas fotografias da infância.

    A busca dos "trezentos, trezentos e cinquenta" continuava sem a possibilidade do encontro. Mário de Andrade vivia no negativo. Vivia a presença insistente da ausência do belo em seu rosto e buscava-o em sua coleção, na literatura, na música e, mais do que tudo, em uma imagem. Mas, o mais significativo é que, para Mário, esses retratos eram percebidos como duplos, e o jogo de penumbras, véus e máscaras mantinha a necessidade da busca de um impossível real e de novas criações. Buscava uma solidez e encontrava uma identidade líquida, fluida.

    CULTIVANDO DOENCINHAS E RETRATOS Mário de Andrade procura um rosto no qual tenta reconhecer a bela criança anterior ao corte que lhe tirou os longos cachos que o faziam bonito.

    Repete, através dos retratos, esse desejo em busca de algo, que só pode ser encontrado nos sonhos ou na fantasia (17).

    No entanto, é nessa repetição que, muitas vezes, esconde-se a criação.

    Ainda no seu conto "No tempo da camisolinha", o narrador – personagem que identificamos com Mário criança –, ao ouvir uma voz lhe dizendo que os cabelos cortados tornaram-no homem, conta que foi tomado de pavor, pois tinha três anos e "(…) já ter ficado homem naquele tamaninho, um medo medonho (…)".

    O conto expressa um momento terrível de dor pela perda do cabelo e da beleza da infância que este simbolizava; pela promessa de sorte que lhe traria uma estrela-do-mar, também irrecuperável. Tempo vivido de angústia por uma perda tão dolorosamente contada, tempo traumático, espaço do irrepresentável (18).

    O não representado se insinua, insiste e solicita uma possível representação.

    A figurabilidade (19) só se fazia possível através dos retratos criados pelos artistas/analistas de Mário de Andrade.

    Na potência do que chamamos aqui de espaço traumático, irrepresentável, é que se faz a arte. É aí também que se cria o colecionador Mário de Andrade.

    Mário de Andrade, para conservar intactos os livros que lhe dedicavam, comprava outro exemplar da obra para ler.

    "Possui assim a mais bela coleção de duplicatas da bibliofilia nacional" (20).

    Seriam assim também seus retratos? Duplicatas dele mesmo que ficariam guardados, intactos, conservando as características amorosas com as quais foram pintados? Contemplados por ele como um quebra-cabeça dele mesmo e de todas as emoções que lhe suscitavam. Todos os retratos poderiam, juntos, deixar transparecer uma identidade una, uma colagem de seus fragmentos para sempre ligados e, quem sabe, entendidos.

    Impossível não lembrar de outro retrato significativo na literatura, O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. Se, no entanto, para Dorian Gray o desejo era manter a beleza e a juventude, enquanto seu retrato vivia o envelhecimento do qual ele, Dorian, escapava, para Mário de Andrade o que ocorre é o inverso. Mário tenta nesses retratos recuperar e manter uma beleza que ele próprio sentia não ter. Seus retratos seriam a sua redenção (21).

    Mais do que tudo, Mário de Andrade tomava seus retratos como forma de aproximação com sua subjetividade através de olhares que sentia ora amigos, ora inimigos. Via-se revelado nas imagens que seus pintores-analistas figuravam.

    O poeta, melhor do que qualquer outro, o diz em suas cartas. Em uma delas conhece-se e se reconhece. A poesia com que se encanta e desencanta de si mesmo nesses retratos é reveladora e bela.

    A função analítica se faz na descoberta da própria fala. É o que acontece com Mário ao escrever para sua querida Henriqueta (22). "Agora, lhe quero tão desabusado bem, sou tão seu íntimo que não dura muito lhe estarei fazendo confidências descaradas, descansando meu pensamento fraco e tantas vezes horrível nas suas mãos perdoadeiras de mulher". E é o que faz Mário na longa e confessional carta de 11 de julho de 1941.

    "(…) Uma coisa que tem me dado horas de pensamento é me contemplar juntamente nos dois retratos que o Segall e o Portinari fizeram de mim. Tenho muitos retratos meus; vários deles completamente soçobrados como o de Tarsila [do Amaral], o do Hugo Adami. O [Emiliano] Di Cavalcanti, o [José Maria dos] Reis Júnior, então, pararam no meio sem poder solucionar os seus problemas. Os meus problemas, nem sei! Anita Malfatti nos tempos do modernismo talvez tenha feito uns vinte retratos meus. (…) três ficaram: o primeiro feito mesmo com intenção de retrato, creio, aliás, que anterior a 1922, muito ruim como pintura, mas curioso como época e como… como eu. Sou bem eu e somos bem nós daqueles tempos, gente em delírio, lançada através de todas as maluquices divinas e minha magreza espigada um pouco com ar messiânico de quem jejuou quarenta dias e quarenta noites. (…) Anita por sua vez guardou um que preferiu aos demais, um eu mais desiludido, mais desmilinguido, já dos fins do nosso excesso de camaradagem (…).

    Gosto também muito do retrato que recentemente Flávio de Carvalho fez de mim. (…) É estranho (…), assim que Flávio de Carvalho principiou me pintando na primeira pose, tive uma sensação violenta de que eu é que estava me pintando! (…) Aliás, imediatamente estendi a sensação para trás e percebi que também o meu retrato do Portinari fora eu quem pintara, ao passo que o do Segall não. Dos outros não é bom falar, percebi imediatamente que os outros pintores não tinham sido artistas, sido poetas, sido vates ao me pintar, pelo menos ao me pintar. E por isso eu sentia os retratos deles tão insuficientes.

    Assim que o Flávio principiou me pintando percebi que eu era para ele mais que um motivo de pintura. Não era por minha beleza ou feiura física atraente, não era por minha possível alta posição nas letras nacionais, não era por qualquer extravagância psicológica ou plástica que o Flávio de Carvalho se propusera a me pintar. De forma que eu não era um motivo para pintura, a pintura é que era um pretexto de aproximação. O Flávio me estimava, me admirava (…) De forma que eu me impusera a ele. E estava fazendo a pintura. (…) eu não era para ele apenas um problema plástico em que ele se continuava… mas, um outro mundo… Quando estávamos procurando uma pose… diante de uma atitude que fiz, ele a repudiou com uma espontaneidade violenta: Assim não! Você perde completamente a força do seu caráter! …Você andando na rua parece… não sei… você anda erguido! No momento eu achei meio besta a frase dele, mas agora eu compreendia como ele me compreendia (…).

    O outro retrato meu que eu fiz foi o do Portinari. Mas desta vez não foi respeito, foi amor declarado. (…) O Portinari quando se propôs fazer meu retrato já me queria muito bem e éramos muito bons camaradas. (…) eu estava sendo o verdadeiro esteio moral dele. Principalmente contra as investidas do Segall.

    Portinari estava muito comovido de gratidão, estava 'filhizado' à minha maior e paternal experiência do ambiente (…). E foi neste estado iluminado de amor que ele fez o meu retrato que… eu fiz ele fazer de mim: só bom.

    Como os retratos dele e do Segall me completam… (…) O retrato feito por Segall foi ele mesmo sozinho que fez. (…)… ele pegou o que havia de perverso em mim, de pervertido de mau, de feiamente sensual. A parte do Diabo. Ao passo que o Portinari só conheceu a parte do Anjo. Às vezes chego a detestar (me detestar) o quadro que o Segall fez. É subterraneamente certo, mas sem vanglória, o do Portinari é mais certo, porque é o que eu gosto, que sou permanentemente e que chora, ainda e sempre vivo, mesmo quando a parte do Diabo domina e age detestada por mim. Esse quadro do Segall não fui eu que fiz, juro.

    Às vezes chego a imaginar que, no caso, o Segall tem maior valor, porque atingiu, mais longe, o mais sorrateiro dos meus eus. Mas também penso que pra fazer o meu retrato pelo Portinari, é preciso uma pureza de alma, uma dadivosidade de coração que raros chegam a ter. E que isso é melhor que ter o dom de descobrir os criminosos. O Segall fez papel de tira. O Portinari não, certo ou errado, contou aos homens que os homens são melhores do que são. E é certo que ao lado dele eu me sinto melhor…

    Carinhosamente o Mário".

    ANDORINHAS CURTAS E assim podemos perguntar: o que é Mário, o que é retrato?

    Gilda de Mello e Souza nos fala que era do feitio de Mário de Andrade interrogar-se, e ele continua a fazê-lo já próximo do fim de sua vida. Vai em busca de Flávio Dias, um dos pioneiros da psicanálise em São Paulo, para fazer um teste de Roscharch. Talvez seu derradeiro retrato.

        "(…) um dia afinal
    eu toparei comigo…
    Tenhamos paciência, andorinhas curtas (…)"

     

    Raya Angel Zonana é psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

    Orlando Hardt Junior é psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

     

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Andrade, M. de. Melhores poemas. Seleção de Gilda de Mello e Souza. São Paulo: Global, 2003, p. 99.

    2. Lafetá, J. L. M. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo; Duas Cidades, 1974.

    3. Batista, M. R. Coleção Mário de Andrade: artes plásticas. São Paulo: IEB, 1998.

    4. Rosenfeld, A. "Mário e o cabotinismo". In: Texto/Contexto I São Paulo: Perspectiva, 1982, p. 185-200.

    5. Andrade, M. de. Querida Henriqueta: cartas de Mário de Andrade à Henriqueta Lisboa. Abigail Oliveira Carvalho (Org.). Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.

    6. Carta a Manuel Bandeira (10/09/1931), a respeito do retrato deste, pintado por F. Maron (Andrade, M. & Bandeira, M. Correspondência Mário de Andrade e Manoel Bandeira. Org. Marcos Antonio de Moraes. SP: IEB, 2001).

    7. Picchia, M. Del. "Crônica social: cartas a Chrispim: IX Mário Moraes de Andrade (1920)". In: O gedeão do modernismo: 1920/ 22. RJ: Civilização Brasileira, 1938, p.174-176.

    8. Andrade, M de. "Tempo da camisolinha (1939-43)". In: Os melhores contos. Sel. Telê Ancona Lopez. São Paulo: Global, 2000, p. 159-167.

    9. Afirmação de Gilda Melo e Souza, crítica literária e profunda conhecedora da obra de Mário de Andrade, sua prima, e que com ele conviveu intimamente (Batista, 1998, citada acima).

    10. Andrade, M. Op. Cit., 1991.

    11. Freud, S. (1908). Escritores criativos e devaneio. ESB vol. IX, p.147-158. RJ: Imago, 1974.

    12. Batista, M. R. Op. Cit., 1998.

    13. Andrade, M. De. Portinari, amico mio: cartas de Mário de Andrade a Portinari. Annateresa Fabris (Org.). Campinas. SP: Mercado de Letras, 1995.

    14. Andrade, M. Op. Cit., 1991.

    15. Revelado por Freud (1919), O estranho (Freud, S. ESB vol. XVII p.273–218) aponta para a ambiguidade que habita cada um de nós. Ambiguidade que opera tanto no sentido de um significado familiar, conhecido – heim (que em alemão também significa um local de intimidade) – como também opera no sentido de desconhecido, do secreto, do clandestino.

    16. A necessidade de livrar-se de aspectos "maus" da própria personalidade, o contra-eu de Mário de Andrade, pode ser pensado como duplo também do ponto de vista de Bion W. ("O gêmeo imaginário". In: Estudos psicanalíticos revisados. RJ: Imago, 1988, p.9-25), que o faz através da imagem do gêmeo imaginário. A criação de uma imagem gemelar representa uma parte excedida e não compreendida do ego, projetada num outro igual e, ao mesmo tempo, outro. Dessa forma, nega-se a existência do diferente sempre autônomo e incontrolável, que para Mário de Andrade se personificaria nesses retratos.

    17. As lembranças não elaboradas, não "entendidas", retornam sempre e há a necessidade da repetição para que possa surgir, quem sabe, o entendimento ou o que Freud chama de elaboração, que pode ocorrer com a recordação. É disso que nos fala Freud em Recordar, repetir e elaborar (1914), e, mais adiante, quando trata dos repetitivos sonhos traumáticos em Além do princípio do prazer (1921).

    18. O trauma, um aporte excessivo de estímulos com os quais o aparelho psíquico não tem condições de lidar e, principalmente, ocorrido num momento de despreparo do sujeito, é, por isto, irrepresentável.

    19. Freud em Construções em análise (1938) propõe que numa análise, muitas vezes, situações traumáticas que não têm representação para o paciente, podem ser construídas, "alucinadas" pelo analista através de sua vivência com o paciente e sua história e, assim, ter sua figurabilidade dada pelo analista.

    20. Reportagem de Silveira J. In: Mário de Andrade – entrevistas e depoimentos. Telê A. Lopez (Org.), São Paulo: Ed. T. A . Queiroz, 1983.

    21. A ilusão é entendida por Donald Winnicott como um momento de inauguração da realidade e é no espaço potencial, por ele conceituado como área intermediária entre o externo e o interno, que o quê é criado pode ser encontrado na realidade. Assim "o imaginário pode assumir seu papel de criação de realidades (…) em vez de ter seu estatuto restringido à função de cópia de uma realidade existente, desde sempre, em si mesma" (Kon, N. M. Freud e seu duplo: reflexões entre psicanálise e arte. São Paulo: EDUSP, 1996).

    22. Andrade, M. Op. Cit., 1991.