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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.61 n.2 São Paulo  2009

     

     

    MARGENS DA PALAVRA

    Camila Pedral Sampaio

     

        Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado e
    passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito
    mais em baixo, bem diverso do que primeiro se pensou.
    Viver nem não é muito perigoso?

    Guimarães Rosa (1)

     

    O presente ensaio remonta à época em que iniciei meu trabalho de doutoramento (2). Foi, por assim dizer, sua inspiração original. O início de um trabalho desse tipo, que envolve a perspectiva de um longo tempo solitário de escrita e pesquisa, costuma exigir de seu autor uma disposição firme para uma aventura cujo destino é, naquele momento, indeterminado e desconhecido. É o caso de se ajeitarem bagagens e recursos que permitam o enfrentamento da longa jornada que se prevê, que forneçam acolhida e abrigo para os encontros, desencontros e contratempos que por certo ocorrerão. "Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo. (…) Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha de popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para durar na água vinte ou trinta anos" (3).

    Tal como "nosso pai", personagem que nos há de acompanhar ao longo deste texto, tratei de forjar minha canoa, de madeira consistente e firme, para durar não vinte ou trinta, mas por certo alguns anos. Foi assim que incluí, como parte da bagagem que começava a arrumar, a companhia, "forte e rija", da estória de Guimarães Rosa, autor desde há muito tempo preferido e respeitado. Procurava uma espécie de comunidade de ideias inspiradoras que pudesse fornecer o mote inicial daquilo que eu previa ser um longo percurso. Almejava encontrar, nessa inspiração, as palavras geradoras, a expressão possível para inquietações mal concebidas, as metáforas fortes a partir das quais se tornaria possível a construção de um pensamento.

    Foi assim que, do contato com o conto de Guimarães Rosa, do tecimento produzido entre a obra e a interrogação psicanalítica, estabeleceram-se os primeiros rumos que pretendi dar ao trabalho, o ato originário assim constituindo o próprio espírito de sua posterioridade. Nesse diálogo forjou-se, então, uma ideia com pretensões a conceito: a ideia de que a escuta analítica ocorre num lugar que poderia ser chamado, à semelhança do lugar inventado pelo ficcionista, de terceira margem: nem cá nem lá, nem ficção, nem realidade, nem encarnação, nem fantasmagoria e um pouco de tudo isso, simultaneamente. Lugar em direção ao qual é possível contar-se, revelar-se, biografar-se.

    O presente texto assim, com as reformulações que o tempo e o trajeto lhe exigiram, traz a marca desse momento originário. Decorridos vários anos, já tendo a ideia produzido alguns frutos, ainda que deixada a adormecer, só agora o re-evoco, trazendo a público o presente texto, reformulado, obviamente, mas, ao mesmo tempo, conservado em suas inspirações originais. Convido o leitor a percorrer comigo este trajeto que, porquanto tenha representado o primeiro passo de um processo que teve sua continuidade, manteve seus atrativos e deixou suas marcas. Trajeto feito nessas áreas fronteiriças, um tanto costurado de psicanálise, um tanto impregnado de literatura, trajeto construído em margens, justamente o assunto de que trata.

    CONCEITOS DE ESTÓRIA "A terceira margem do rio" é o título de um conto de Guimarães Rosa, pertencente ao volume editado sob o nome Primeiras estórias. Como nos explica o editor, "'Estória' é o neologismo que distingue a história como conto – isto é, relato de acontecimentos fictícios – da história como registro de acontecimentos reais (…). E 'primeiras' não está aqui no sentido de juventude (…), mas sim por ser esta a primeira vez que o autor pratica o gênero 'estórias', ou seja, o conto curto" (4). Estamos, portanto, em face desse título desde logo convidativo, em pleno domínio do mundo ficcional criado tão singularmente por Guimarães Rosa.

    Em um artigo intitulado "Heresia roseana", Leda Tenório da Motta discute sobre o uso do conceito de "estória", introduzido por Guimarães Rosa, como um gênero tardio no percurso de sua obra. Nesse artigo, a autora aproxima as "estórias", com seu estilo anedótico, silencioso e inexplicado, aos efeitos de humor provocados pelos chistes, tal como Freud os discutiu. A semelhança entre ambos residiria não só na forma compacta e breve de narrativa do improvável, mas também no caráter formal anedótico ao qual, à prevalência do desejo sobre o acontecimento, reúne-se o prazer estético de sua criação e recepção. De fato, foi assim que Freud nos permitiu compreender o prazer em contar, mas também em ouvir, piadas: prazer associado à emergência do inconsciente, ludibriada a censura, em seus movimentos próprios de condensações e deslocamentos; mas também prazer estético, associado à possibilidade de compactar, no formato certo, em tempo certo, a palavra certa. Um prazer do estilo o sabe bem quem não tem jeito para contar piadas…

    Da mesma forma, as "estórias", à diferença dos longos romances, "nada contam, ou muito pouco. Elas exploram o silêncio, afora o absurdo, como modalidade produtiva, não sem risos e sorrisos. (…) Espreitam assim uma espécie de fulgurância máxima do mínimo, ou uma sublimidade tênue, resvalante por isso para o humor, dada a inânia ou a bagatela. (…) Outra maneira de dizer o mesmo é dizer que 'estória' é desimaginação, desacontecimento" (5).

    Assim, o gênero das estórias, por sua capacidade de figurar o absurdo, de representar o invisível, valendo pelo que nelas não é dito, difere radicalmente da história e, mais do que isso, vai contra ela; fareja desacontecimentos, num sutil trabalho do olhar e da palavra que, na fulgurância de um átimo, torna visível o que não se pode ver. As estórias representariam, nesse sentido, aqueles momentos em que se figura o infigurável, em que se pronuncia algo do inconsciente. É ao absurdo e ao inacreditável que mira a estória, ao significado secreto e inapreensível do vivido, só vislumbrável em "certa margem terceira das águas da existência" (6), essa ideia tão sugestiva do título do conto de que ora nos ocuparemos.

    Trata-se de uma estória bastante surpreendente, que provoca no leitor certa inquietação característica que irá acompanhá-lo por toda a leitura e depois dela, como a insistir interrogando por aquilo que não teve e não terá resposta. O narrador toma o leitor como confidente e, como que a tentar, através desse diálogo, fazer-se compreender naquilo que ele próprio não soube entender de sua vida, ele conta a estranha história de sua família.

    Suas recordações começam do ponto em que o pai, chegado a certa idade, manda fazer para si aquela canoa especial, de madeira resistente, feita para durar anos. Mansamente, sem mais palavra ou motivo, calado como sempre foi, ele se despede da família e salta dentro da canoa, para ali viver para sempre; bem ali, no meio-rio, tão perto como inalcançável. O pai nunca mais proferirá palavra e para sempre se manterá como silhueta móvel no sobe-e-desce das águas, deixando ao filho a difícil tarefa de situar sua vida à sombra desse fundo de silêncio que se move cima-abaixo no rio; a vida do filho, alternando-se entre a acomodação ao acontecimento e a necessidade de entendê-lo, transcorre a partir da ligação com esse pai, nem morto nem definitivamente vivo, pai insondável, de cujo silêncio ele procura evocar seu próprio destino.

    Estranha culpa o mantém preso à sombra paterna, guardando sua vida, à beira do rio, à espera, mesmo quando toda a família já tomou o rumo da cidade. Dessa ligação se irradia o efeito de estranheza e assombramento que a leitura produz. Um dia, já velho e barbado como o pai, o filho, impelido pela sua doideira de homem, uma culpa incompreensível, propõe ao pai uma troca: ir tomar o seu lugar, no meio do rio, cumprir ali o seu destino. Pela primeira vez, o pai o escuta e o saúda. Tomado de pavor, desatinado, desentendido, nosso narrador foge. E aqui, só então, surge seu texto: é um pedido de perdão – ao pai, a si, a todos – por sua humanidade não cumprida. Nesse descumprimento começa sua palavra. "Mas então, ao menos que, no artigo da morte, peguem em mim e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não para, de longas beiras: e eu, rio abaixo, rio afora, rio adentro – o rio" (7).

    Desde o primeiro contato com esse conto, nunca mais pude deixar de pensar nesta singular composição que reúne ao rio e às margens um terceiro elemento, incógnito, que tem por efeito imediato atirar-nos de cabeça ao plano ficcional. Ora, um rio, todos sabem, tem duas e não mais que duas margens. Margem leste, margem oeste, esquerda e direita; norte e sul ou, simplesmente, a margem de cá e a margem de lá; e é por oposição que elas se definem. Muitas vezes as duas margens são dois mundos. De cá, assiste-se à beleza do poente, lá; de cá, imaginam-se as maravilhas exóticas do reino de lá; de cá, fala-se mal do povo e da terra de lá.

    Seja como for, cá e lá são referências fundamentais quando se tem um rio a dividir a terra. Cruzar uma ponte em direção à outra margem traz um sentido inequívoco de mudança, de passagem para outro lugar. O rio corre, ao mesmo tempo unindo e separando duas nações, dois povos, dois estados ou mesmo dois momentos na história de uma cidade. Cruza o rio entre terras e nos obriga a conceber uma noção de fronteira. Cá e lá, um e outro, conhecido e estrangeiro, de qualquer forma a realidade que o rio nos oferece pede como referência uma oposição dual. Onde colocar aí um terceiro? Não há, na concretude pacífica de um rio que passa, nada que sugira a existência de uma terceira margem. Por onde, então, poder-se-á situar a terceira margem do rio?

    Foi essa indagação que me capturou já a partir do título do texto de Guimarães. Encantava-me a ideia de uma terceira margem, mas apenas porque ela me lançava, de supetão, a um mistério do mundo; arrancava-me do rio e me atirava a um outro domínio. Insondável, até certo ponto. Foi assim que, antes de conhecer o texto, eu soube de algo importante. A terceira margem do rio, por certo, não a encontraremos no espetáculo do rio que se insinua como divisor de vidas; nós a encontraremos, quem sabe, um pouco para fora ou talvez um pouco mais no interior do próprio rio. E onde? Na palavra que o pensa e percorre, na palavra que ao mesmo tempo o enuncia e constitui, nos dizeres do rio em sua ficção. Esse é o efeito de vertigem que nos abençoa desde o começo desse conto singular. Só à língua é dada a molecagem de encostar às duas margens uma terceira e criar um efeito de abertura. É Manoel de Barros, poeta pantaneiro, conhecedor de rios e de sapos, quem nos diz: "Molecar com a língua, isto é a poesia" (8). Das margens do rio, estamos, afinal, nas margens da palavra.

    RIO DE PAPEL Ao buscar o rio de verdade, seremos sempre atravessados pela palavra que o enuncia e estaremos inevitavelmente encostados à ficção ou à poética. Qualquer rio que eu possa enunciar ou escrever será sempre mais um "rio de papel" do que um movimento vivo das águas. Será sempre possível a esse rio uma terceira margem, de silêncio e palavras; sempre será possível que, do meio da turbulência de suas curvas lhe salte um canto, voz risonha diante do esforço de nosso empreendimento: buscar o rio de verdade, do qual estamos perenemente separados a partir de nossa estrutura simbólica. Nas margens do rio que corre, encontraremos, sob os ecos do seu riso, uma terceira margem, margem da palavra, no seio da qual insiste o oco do silêncio.

    Essa é a dimensão para a qual a pontaria poética certeira de Caetano Veloso indica ao nos contar em canto a estória primeira de Guimarães, na canção de mesmo título, feita em parceria com Milton Nascimento. "Caetaneemos"! Ouçamos música e letra em sua versão "Circuladô" (9). No início, os sons ocos e tribais de um vaso de cerâmica nos introduzem ao clima das matas, entre os barulhos e o silêncio de um beira-rio. O batuque seco e ritmado se prolonga na voz do cantor, reproduzindo em alturas e repetições como que ecos da conversa entre os seres da mata. Estamos de chofre entre paus ocos e águas claras e a batida marcada nos faz ouvir suas vozes. O riso é um canto do rio. "Meio a meio o rio ri/ silencioso, sério". Dura madeira, risca a canoa um desenho de silêncio nas águas. Canto das águas, a palavra lhe faz margem. Por entre as árvores da vida, rio e canoa, palavra e silêncio, em contraponto rítmico, compõem, nessa passagem de águas que nos riem, um jorro de palavra; das margens do rio às margens da palavra e à clareira do silêncio, de onde nos observa a figura calada de um certo pai. "Margens da palavra/ entre as escuras duas/ margens da palavra/ clareira, luz madura/ rosa da palavra/ puro silêncio nosso pai".

    Dessa forma é que o poeta nos conta a estória daquele homem silencioso, sempre calado e sério que, chegado o tempo, de uma maneira tão singular, inventa seu destino, plantando a incerteza e o estranhamento no meio do mundo simples e familiar dos seus. Do conhecido, irrompe o mais assombroso desconhecimento. Da terra conhecida, das madeiras conhecidas, ele constrói a canoa que desde então vagará pelo fio da incompreensão, risca de água no leito do rio, de onde emana o puro desconhecido. Do silêncio de homem simples, brota o ato de invenção, silencioso ainda, mas gritante em seu absurdo: ir-se embora sem sair, ir-se mansamente, sumir-se rio adentro, cima-abaixo, movente perpétuo, sombra estrangeira a atormentar a familiaridade.

    "Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais" (10). É do efeito insólito produzido por essa figura, meio sombra, meio vida, que nos fala ou silencia de um lugar apontado como terceira margem, que brotaram as considerações que a seguir eu pretendo discutir. Minha intenção é tão somente a de por em circulação essas evocações que o encontro com o texto permitiu. Evocações singelas, dadas a alguém que, do interior de um domínio do saber outro que a literatura, no caso, a psicanálise, buscou nessa estória matéria de pensar. Com certeza resultará desse encontro uma leitura. De certa forma, uma tradução, uma quem sabe transgressão… Veremos a que nos leva.

    ESTÓRIA DE HOMEM De saída, creio que já podemos concordar em dizer que A terceira margem do rio não é estória de rio, mas estória de homem. De homem que, à força de sua possibilidade de figurar-se outro, se deseja o próprio rio em suas movências e mergulha no calado vau adentro. Daquele meio-rio o homem silencioso nos olha sem ver; nunca em parte alguma, sempre em toda parte. Ele se move na risca dessa terceira margem. Seu silêncio, um paradoxo insolúvel para o filho que em terra ficou. De seu ser calado e indecifrável, de sua presença perene incapturável, irradiam-se as palavras perplexas do filho narrador. E engendra-se propriamente sua vida errante, como efeito desse duplo canto entre o beira-rio, terra firme e triste de palavras, e o desenho manso da canoa sobre as águas, dor aberta em peito de homem rude. "Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa?" (11). Da culpa inimputável, a fórmula da errância para o filho em terra: condenado a espreitar eternamente rio adentro, à busca do que não pode ser entendido, mas tão somente nomeado, como referência fundamental: o pai, seu nome, terceira margem sem a qual não há filiação possível, margem da palavra, oco no interno da palavra, terceira margem, o rio.

    No colo mesmo desse pai calado, acercou-se o vazio. Aninhou-se ali algo que não comporta sentido fácil, abismo de razão, fonte da intolerável estranheza de que a vida se impregna, mansa loucura de tudo que é humano: contemplar o horizonte à busca de outro a quem se dirigir, outro sempre móvel, fantasmático, o rio. Não será essa, também, nossa "loucura" de analistas, à procura, na transferência, daquilo/daquele a quem o paciente se dirige, condenados a ouvir o que não se poderia entender? Condenados a buscar, no erro e na ambiguidade da palavra, a ficção pela qual o sujeito permite a aproximação, a irrupção de uma verdade possível? Não será essa a nossa posição, meio assombração, meio encarnação capaz de mover-se diante de um apelo do parceiro em terra, que de seu desentendimento nos dirige sua fala? Não será esse, ainda, o lugar por excelência, o campo possível de uma análise, essa terceira margem, nem-lá-nem-cá, meio-rio voltado às duas margens, por onde circulam as estórias, narrativas de uma vida que se deseja, que se requer entender?

    "Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou então, todos" (12). Doidos todos: vida humana é doideira incansável, tensão sem trégua entre a busca de dizeres e um fundo de indizível, terceira margem flutuante, sem a qual nada alcança sentido, mas com a qual nenhum sentido se completa, permanecendo ferida aberta no seio da palavra. Do fundo dessa doideira de homem, formula-se um projeto de descanso possível: quem sabe, na ficção da própria morte – morte, ausência absoluta de palavra, aquilo de que nada se pode dizer – tornar-se o homem o próprio rio, sem destino ou paradeiro, errância absoluta, reencontro com o pai, resgate de uma dívida sem título. Dessa doideira de homem, impossível de descansar, resta, única esperança deixada, encostarmo-nos às margens da palavra, beirar um sentido nesse furo de ser que nos constitui dizentes. Resta-nos, doidos homens, inventar-nos, dessa terceira margem, uma vida; algum transitório sentido pelo qual torne-se possível a paga de uma dívida sem começo. Margens da palavra, por ela circulamos nosso destino, sob efeito da ficção com que nos inventamos homens. Homens de tristes palavras…

    Assim, sob a inspiração inaugural do velho que nos assombra no rio, mais do que atravessá-lo, fomos atravessados por tal movimento de águas e palavras. Do seio desse jorro caudaloso de impressões que nos falam, chegamos a uma primeira ideia: a de que o conhecimento do que em nós é insondável, nos é dado, de certa forma, como um efeito de ficção. Criamos nossas estórias de homem como forma de figurar o infigurável. Dirigimo-las a uma terceira margem da existência, margem insólita, assombrada, imaginária e, ao mesmo tempo, simbólica e referente. Talvez nisso encontre-se a possibilidade da experiência analítica.

     

     

    SUJEITO EM FREUD De fato, é difícil não reconhecer, nas evocações que o texto nos sugeriu, as peças do jogo que Freud inventou para compreender a alma humana. Com efeito, esse é o sujeito que Freud nos legou: errante na linguagem, permanentemente dividido entre o ser em terra firme que se julga e a margem de desconhecimento que o constitui, o inconsciente. Lugar do qual nada se pode saber e que, no entanto reaparece como sombra permanente e móvel na margem da palavra – ou de dentro dela – na curva da palavra, leito de seu sustento.

    De fato, partindo da peculiaríssima atenção com que ouvia seus pacientes na clínica, foi através de metáforas as mais diferentes e íntimas, buscadas nas suas recordações de infância, mas também na sua paixão pelas obras culturais humanas, que Freud procurou figurar o inconsciente, em consonância com aquilo que lhe é próprio, a rebeldia a qualquer representação fechada. É sob essa perspectiva, que Lydia Flem apresenta o homem Freud, em obra conhecida e bastante divulgada. Cito-a: "O seu método intelectual procede através de um duplo movimento: abrir para o universal a singularidade individual graças às referências culturais e evidenciar as figuras da cultura: as personagens dos mitos, lendas, contos, peças teatrais ou romances singularizam-se, reatam com suas origens carnais, tornam-se os porta-vozes do desejo humano" (13).

    É nesse sentido que se poderia dizer que Freud é um 'ficcionista' da alma humana em seus disfarces, tornando-se alternadamente escritor, detetive, explorador, arqueólogo ou simples viajante, enquanto procura ser um intérprete possível, um poeta do inconsciente.

    Foi a partir dessa perspectiva de abordagem da obra freudiana que me pareceu interessante fazer do diálogo com o conto uma inspiração para essas outras, talvez avessas, invenções psicanalíticas. Invenções nas quais encontro uma figuração possível para os caminhos do inconsciente e do desejo nessa invocação ao homem que se cala dentro do rio e, em aparições movediças, permanece a perguntar ao sujeito sobre o significado de sua vida. Nesse pai, não propriamente morto, mas silenciado num lugar terceiro que, como sombra perene fantasmática, reapresenta-se continuadamente a cobrar do filho a invenção de seu destino. Dessa figura emana para o filho, de um lado, toda identificação possível: "… sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum bom meu procedimento, eu falava: 'foi pai que um dia me ensinou a fazer assim…' o que não era o certo, exato; mas que era mentira por verdade" (14). Que era verdade do ideal – identificatório – poderíamos acrescentar: verdade de uma vida compreensível; de fato, mentira por verdade.

    De outro lado, é também dessa figura, do lugar mesmo em que ela se instala, terreno do sombrio e do incompreensível, que se inaugura o estranhamento que passa a impregnar toda a vida. Dali emana a culpa irreconhecível, mas permanentemente ativa, que vincula o sujeito a um projeto que ele não pode entender; dali se irradiam as perguntas todas do sujeito sobre seu destino, perguntas sem destino, afinal, sem respostas. Dali: desse lugar, margem terceira constituída, vazio no seio da palavra, terreno do estranho, do silêncio estrangeiro que rouba do sujeito – personagem ou leitor – toda e qualquer familiaridade, toda e qualquer identificação no campo familiar. Deste lugar, estrangeiro entre a vida e a morte, a figura fantástica, estranha entre os homens, se apresenta como o próprio ser da inquietação. Uma inquietação que, entretanto, produz a palavra e a requer. De sua margem silenciosa e séria, constitui-se o efeito fundador do acesso ao imaginário. De sua estranheza absoluta, de seu caráter terrível, fantasmático, sobrevém para o sujeito a necessidade de criar para si este terreno terceiro, margem em que a palavra pode ser jogada como ficção, como tentativa de produção de sentido e de criação de uma vida, vida de verdade. O acesso a essa margem, terreno silencioso de auto-criação, aparece, assim, como condição para que o sujeito formule sobre si a ficção com que possa conceber sua singularidade de desejo, a partir de suas tristes, mas fundamentais, palavras.

    Do caminho até aqui percorrido, resulta que estivemos nos exercitando no ofício de pensar psicanaliticamente com elementos fornecidos pela ficção. Seguimos, quem sabe, passos de Freud. Ainda na opinião de Lydia Flem: "A concepção freudiana do aparelho psíquico não é um sistema fechado, recolhido em si mesmo, dogmático. Muito pelo contrário, Freud tenta ampliar sempre e cada vez mais suas investigações a outros domínios do saber. Pela multiplicidade de suas comparações, ressalta a polifonia da alma…" (15).

    Dessa alma polifônica, cantou-nos, como figuração inconsciente, um pai que, tornado fantasma e submerso num calado da alma, possibilita, pela palavra que dele emana, a inserção do sujeito no universo de sua estória narrada. É através desse ser estranho e ao mesmo tempo conhecido que nosso personagem acede a sua estória de desejo e inscreve-se em sua filiação. Meio sombra, meio vida, a figura desse pai-fantasma, que surge em aparições fugazes, borra qualquer familiaridade e exige o transporte para um campo terceiro, de sonho, delírio ou ficção. Outro campo, outra cena, terreno da transferência.

    TERCEIRA MARGEM ANALÍTICA Apropriando-me, com intrépida intimidade, da bela imagem fornecida por Guimarães, apresentou-se para mim, portanto, no exercício de interlocução com a literatura, uma sugestão quase irresistível e já de pronto antecipada; a de que seria fértil e necessário conceber a existência de uma terceira margem atuante na prática clínica psicanalítica. É assim que me vejo instada a propor e discutir a ideia de que, num processo analítico, configura-se o acesso a esse domínio "ficcional" e, como tal, imaginário, a que estou denominando terceira margem. Lugar de inscrição do analista, onde se torna possível sua escuta. Margem terceira, entre duas margens falantes: entre eu e outro, conhecido e estrangeiro, analista e paciente, poderemos aceder a esse terceiro lugar, de onde nos assombram e inspiram seres de pura inquietação, representações possíveis do impossível e intolerável do inconsciente. A escuta analítica é, assim, dirigida a esse lugar de silêncio, a interrogar-lhe uma forma possível e provisória do desejo.

    A palavra é posta a serviço da busca de enunciar o desejo, sempre movediço e silenciado, que habita o sujeito como margem de sua errância. A palavra, ela própria errância, enuncia o que não está nunca lá, destino de desejo. Um paciente em análise, nesse sentido, busca, com suas palavras, aquilo que continuadamente se perde, tenta dar contorno ao incontornável, dizer o que não pode ser dito. Utilizando-me da terminologia de Pierre Fédida, seria necessário conceber esse lugar de "estrangeiro íntimo" a partir do qual o analista escuta a fala de seu paciente. "O ofício de psicanalista – nesse aspecto próximo ao de escritor ou de poeta – exige da fala cotidiana um cuidado da linguagem e, assim, uma espécie de vigilância em relação aos recobrimentos que a presença do familiar não pode deixar de produzir" (16). Em seu ofício linguageiro, o analista põe-se numa escuta vigilante e estranhada, lançando seu olhar ao horizonte de palavra, terceira margem onde se põem em cena os fantasmas figurados nas aflições do analisando.

    E assim concluímos nossa travessia. Como foi possível perceber, ao atravessarmos o rio, tão perigoso quanto a vida, viemos dar neste ponto terceiro, dificilmente imaginável no princípio: no seio mesmo da relação analista-paciente, em que se insinua a constituição de uma terceira margem. Terreno terceiro, simbólico, terreno da presença e da escuta analíticas. Nas palavras de Octave Mannoni: "É preciso que se crie simbolicamente um terceiro lugar. Só a linguagem, portadora da negação e trazida pela negação pode proporcioná-lo" (17). Na busca de inspiração para pensar esse lugar é que nos encontramos com Guimarães Rosa. Que esse terreno da escuta seja concebido como uma terceira margem, é uma sugestão, em princípio, interessante. Terceira margem, entre duas margens falantes, lugar só figurável na e pela linguagem, habitado, entretanto, por seres de carne, osso e padecimentos. Ali, nem-lá-nem-cá, entre duas margens, a palavra e seus silêncios.

     

    Camila Pedral Sampaio é analista em formação pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, doutora em psicologia clínica pela PUCSP e professora assistente doutora na Faculdade de Psicologia da PUCSP.

     

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Rosa, G. (1967). Grande sertão: veredas, Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.

    2. Sampaio, C. P. "Ficção literária: terceira margem da clínica psicanalítica". Tese de doutoramento. Programa de doutoramento em psicologia clínica. PUCSP. São Paulo. 2000.

    3. Rosa, G. "A terceira margem do rio". In: Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p.32. 1992

    4. Rosa, G. Op. Cit.: contracapa.

    5. Motta, L.T. "Heresia roseana". In: Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (Org.), Junqueira Filho, Luís Carlos Uchôa (Coord.), Perturbador mundo novo: história, psicanálise e sociedade contemporânea. São Paulo: Escuta, p. 91. 1994.

    6. Motta, L.T. Op. Cit., p.90. 1994.

    7. Rosa, G. Op. Cit., p.37.1992.

    8. Barros, M. Gramática expositiva do chão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p.312. 1990.

    9. A canção "A terceira margem do rio" de Caetano Veloso & Milton Nascimento encontra-se no disco Circuladô ao vivo, Polygram do Brasil, 1992.

    10. Rosa, G. Op. Cit., p.33. 1992.

    11. Ibidem p.36.

    12. Idem.

    13. Flem, L. O homem Freud: o romance do inconsciente. Rio de Janeiro: Campus, p.2. 1993.

    14. Rosa, G. Op. Cit., p.35. 1992.

    15. Flem,L. Op. Cit., p.2. 1993.

    16. Fèdida, P. Nome, figura e memória: a linguagem na situação psicanalítica. São Paulo: Escuta, p.66. 1992.

    17. Mannoni, O. Clefs pour l'imaginaire ou l'autre scène. Paris: Editions du Seuil, p.98. 1969.