SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.61 issue2 author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

    Related links

    • On index processCited by Google
    • Have no similar articlesSimilars in SciELO

    Share


    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.61 no.2 São Paulo  2009

     

     

    A PINTURA EM TEMPOS DE URGÊNCIA: ALGUNS TRAÇOS DA CENA ARTÍSTICA

    Sergio Fingermann

     

    Onde está o artista?
    Onde está a arte?
    Que ventos respiramos no presente?

    Desde o Renascimento, até fins da modernidade, não houve alterações muito significativas na maneira como o público via a arte.
    Podemos mesmo afirmar que durante séculos, viu-se a pintura de forma bastante parecida.
    Quando a imagem era apresentada como obra de arte, o modo como as pessoas olhavam para ela era condicionado por uma série de pressupostos adquiridos sobre e com a própria arte:
    Beleza,
    Gosto,
    Forma,
    Civilização.

    A técnica da perspectiva tinha organizado o campo visual.
    O espectador era o centro do mundo.
    O olhar do observador era uma espécie de farol, um feixe luminoso.
    O mundo visível era organizado pela técnica da perspectiva.
    Eram variados os gêneros de pintura: temas religiosos, retratos, naturezas-mortas, paisagens, temas históricos.
    Isso durou séculos.
    Alterações profundas começaram a ser observadas a partir da invenção da fotografia e do cinema.
    Modificou-se, a partir daí, como os homens podiam ver todas as coisas.
    O cinema mostrou que não existe só um lugar, um centro, de onde se vê todas as coisas.
    A pintura foi atingida nesse momento.
    Modificou-se.
    O visível passou a significar algo muito diferente.
    Isso trouxe novos entendimentos para a pintura.

    No Impressionismo, aquilo que era visível já não surgia pela forma.
    O visível tornou-se embaçado, fugidio.
    No Cubismo, o visível tornou-se a totalidade das visões possíveis.
    Diversos pontos de vista superpostos.

    A máquina possibilitou o surgimento de aparências momentâneas. Fixou instantes.
    Fomos esclarecidos de que a noção de tempo é inseparável da experiência do visível.
    A pintura, que até então tinha a singularidade de pertencer a um determinado lugar ou espaço e que nunca podia ser vista em dois locais ao mesmo tempo, multiplica-se e fragmenta-se em muitos significados, através de todas as possibilidades de reprodução.

    As pinturas entram, por meio de diversos tipos de impressão e reprodução, em todos os lugares.
    A unicidade da obra se partiu.
    Não estão mais somente nas igrejas, castelos, museus.
    Chegam às nossas casas também.
    As pinturas são vistas em contextos diferentes.
    O significado das pinturas diversifica-se,
    Fragmenta-se.

    Para melhor compreendermos, poderíamos exemplificar assim:
    Temos uma reprodução da Monalisa, de autoria de Leonardo da Vinci.
    O quadro veio até nós graças à reprodução mecânica.
    Está em nossa casa.
    Se pudéssemos nos deslocar até Paris, no Museu do Louvre, para ver aquele original e assim descobrir o que falta à nossa reprodução, certamente nos colocaríamos algumas questões:
    Falta qualidade (quais?) na reprodução em relação ao original?
    O que nos impressiona frente ao original?
    Onde está seu significado?
    Será que o significado se deslocou?
    Será que aquilo que a pintura da Monalisa diz deslocou-se para o que ela é?
    Onde está a coisa da pintura?

    Desde o Renascimento, por um longo processo, vimos surgir profissionais periféricos aos artistas e seus trabalhos.
    Numa lenta evolução, elaboraram-se figuras como historiadores de arte, críticos, marchands, colecionadores, jornalistas, especuladores, curadores, etc; formam-se também conselhos e sociedades amigas das instituições que guardam e escrevem a memória da arte.
    Reivindicam para si participação importante e poder na cena artística.

    A arte contemporânea é mal apreendida pelo público porque ele está perdido em meio aos diferentes tipos de atividades artísticas.
    Com os instrumentos de que dispõe, formados na modernidade, aqueles pressupostos que tinha adquirido sobre a arte (tais como: beleza, gosto, forma, etc) já não dão conta da fruição da experiência que a arte contemporânea propõe.
    Aquele público que foi educado, que foi instruído (já há tanto tempo) nos valores culturais da modernidade, encontra-se desamparado.
    Faltam-lhe critérios para exercer o juízo crítico em relação ao que se lhe apresenta como arte.
    Observa-se que, mesmo excluído da compreensão dos fenômenos artísticos, esse público mostra fidelidade aos eventos.
    A indústria cultural tem funcionado bem.

    Na nossa sociedade há um culto da arte.
    Ela é a religião do homem de hoje.
    Em nossa sociedade, a proximidade com a arte define a posição cultural e associa-se a um princípio de desenvolvimento.
    O público é incitado a considerar a arte como elemento indispensável na vida contemporânea.
    Nossa sociedade tornou-se uma "sociedade cultural".
    O imperativo agora é ser "criativo" e "produzir arte".

    Visitando as grandes mostras de arte contemporânea, museus, galerias, exposições temporárias, observa-se uma homogeneização de tendências, reduplicando modelos, repetindo artistas.
    Os centros de arte perderam o respeito ao pluralismo das tendências, às diversidades de expressão.
    O caráter das mostras não aponta para individualismos, mas, o seu oposto, um conformismo geral e amalgamado.

    Nosso receio é de termos perdido toda medida, todo julgamento e todos os valores.
    Será uma decadência?
    Será que precisamos utilizar um modelo diferente do que usamos na modernidade, (período que vai do Impressionismo às Vanguardas) para captar a realidade contemporânea?

    Que ventos respiramos no presente?
    Será que a experiência artística se constrói somente em sua própria autoridade?
    Se for isso, ela está muito próxima da fé religiosa e pronta a servir às ditaduras políticas.

    Há um vazio de conteúdos.

    Confunde-se experiência com realização..
    Uma arte que, algumas vezes, parece desprezar a memória.
    Uma arte que, algumas vezes, parece desprezar a cultura.
    Uma arte que, algumas vezes, transforma o anti-humanismo em programa de ação.
    Uma arte que, algumas vezes, responde ao vazio com o vazio.

    Quais são as responsabilidades dos artistas?

     

    Sergio Fingermann é artista plástico. Realizou recentemente exposições na Pinacoteca do Estado de São Paulo e no Museu Nacional de Artes Plásticas. É autor dos livros: Fragmentos de um dia extenso (2001) e Elogio ao silêncio (2007), São Paulo: Editora BEI.