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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.61 n.2 São Paulo  2009

     

     

    MARIANA BOTELHO

     

    INSÔNIA

     

    É noite. Tarde da noite. Deito-me. Antes de deitar, amarro meus cabelos. Dá-me uma sensação estranha, como se algo passeasse por minhas costas. Percebo que é um grito. Me incomoda. Sorrateiramente, pego o grito com uma das mãos. Dou graças à flexibilidade, afinal, ele estava nas costas. Fecho os olhos e aperto o bicho com as mãos, tentando sufocá-lo. Enquanto isso, tento dormir. Mulheres são boas pra fazer duas coisas ao mesmo tempo, dizem. De olhos fechados me lembro que quero ver o mar. Lembro disso porque sinto areia nos olhos. Queria senti-la sob os pés. Tento calar a sensação. Abro as mãos pra ver se o grito já morreu e ele quase me escapa. Tinhoso. Mais ainda do que minha vontade, que já morreu. O grito começa a me dar choque. Acorda todas as cinco que sou: tato, olfato, audição, visão, paladar. Aguça a sexta, que não consigo ser. A mais bonita. Todas brigam entre si. Luzes se acendem e se apagam em todos os poros do meu corpo. Meus vaga-lumes internos fazem festa. Aperto o grito com mais força, mas é quase involuntário. Culpa dos espasmos. Me sinto um farol, pelo ritmo. Mais duas polegadas de mim e eu me afogo. Desisto. Acendo a luz externa. Amarro laços de fita nos meus olhos mais atrozes. E tento fazer do grito uma voz que fala comigo.

     

    SOBRE UMA BONECA PUNK

     

    descobri que a solidão não tem cor. todas as paredes roçam sua frieza na minha agonia. fico aqui sentada, parada, olhando. o vermelho desses tijolos crepitando e estalando sob o meu olhar fixo e dolorido. a varanda por terminar, a vida por terminar. me lembro das toalhas de crochê que eu nunca terminei. eu ainda não terminei minha vida. sei que nunca mais vou terminar aquelas toalhas. penso se ainda terminarei a vida. enquanto isso não sei. lembro-me ainda de quando eu queria parecer quem eu era. era bom. uma bonequinha punk, doce, leve, suave, menina, sorridente, triste, sozinha. o preto, o marrom, o cinza e o roxo. o café nas unhas, os furos até o alto da orelha, aquele monte de metais. a barriga sempre à mostra. aquela boneca magrinha. aquela boneca só. era bonito. todo mundo me gostava, e eu tão pouco. a pele branca... naquele tempo eu gostava de contrastar. eu contrastava com as cores, com o sol quando estava sombria, com o nublado quando estava ensolarada, com as amigas, sempre tão dispostas, sempre tão felizes, sempre tão namoradeiras e sempre tão tipicamente adolescentes. hoje não. hoje faço mimetismo. com o tom claro das roupas, com o comprimento das saias... tenho uma alma longa. vasta, coitada. parece um pasto. e eu pareço um boi, pastando sobre ela. vivo de ruminar palavras que não bastam. agora eu tenho parte na solidão que criei pra mim. ela é uma sala grande, com uma acústica boa. eu posso gritar. eu já não queimo versos. já não amo tanto as pessoas. já não sou boneca. punk tampouco. suave, muito pouco. já não tenho metais, embora carregue algumas de suas marcas. agora tenho lábios, falo mais, choro menos e sou igual. agora me pareço com essa senhorinha de óculos que olha a chuva na varanda. com essa senhorinha de meias que olha a chuva na varanda. com essa senhorinha que molha o pasto de sua alma olhando a chuva na varanda. agora me pareço com essa senhorinha só. às vezes olho pra aquela estrada e penso em caminhá-la. mas daí me lembro que ao chegar lá, no meio do caminho eu cortaria meus pés. e seria tarde demais. então penso em cortar meus pés antes de ir. pra não ir. e não vou. fico aqui com essa solidão incolor. com todas essas paredes frias se esfregando, feito lesmas, na minha agonia. olhando o vermelho desses tijolos crepitar e estalar sob o meu olhar fixo. esperando que um dia eu termine essa varanda. esperando a vida terminar.

     

    Mariana Botelho, 25 anos, formada em educação física, vive em Padre Paraíso, Vale do Jequitinhonha (MG). Poeta inédita em livro, escreve no blog http://quelevequenada.blogspot.com