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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.61 n.3 São Paulo  2009

     

     

    APRESENTAÇÃO

    AMAZÔNICA

    Adalberto Luis Val

     

     

    A diversidade ambiental e biológica são temas recorrentemente evocados para caracterizar as singularidades da Amazônia. É assim desde os tempos remotos e serviram, muitas vezes, como justificativas para intervenções na região. São exemplos o próprio Tratado de Tordesilhas, a criação do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia pelo governo Vargas, a cidade Humboldt, a Suframa e, mais recentemente, o projeto Calha Norte e as regulamentações para a coleta de material biológico. Contudo, junto com essa diversidade ambiental e biológica e na significativa extensão territorial ocupada pelo bioma, há pessoas, as quais somam 25 milhões apenas no território brasileiro e que construíram uma intrincada relação sociocultural que se define e, ao mesmo tempo, confunde-se com a própria diversidade ambiental e biológica. Além disso, esse espaço abriga uma riqueza construída pelo tempo e pelo homem que, timidamente trazida à baila, tem recebido pouca atenção. Uma rápida viagem desde os tempos remotos até hoje nos permite apreciar um pouco dessa riqueza, desafio que me foi colocado nesta edição Amazônica da Ciência & Cultura.

    O levantamento da Cordilheira dos Andes impôs uma mudança ambiental sem precedentes na região. A conexão Atlântico-Pacífico se desfez e um mundo de capilares hídricos começou a se desenhar na região, adquire vida e integra toda a região. Esses capilares nascem, crescem e mudam continuamente de lugar. Seus lugares antigos são sepultados, mas seus vestígios não desaparecem aos olhos sempre atentos da ciência. As mudanças dos cursos de importantes rios da Amazônia cravam suas marcas no relevo e têm contribuído para evidenciar que as falhas geológicas desempenham papel central na fisiografia da região, evidenciando que a dinâmica das movimentações dos rios não é ocasional. Os paleocanais, como são conhecidos os leitos pretéritos dos atuais cursos d'água, explicitam a dinâmica da malha hídrica da Amazônia, isto é, a paleogeografia dos rios amazônicos. O estudo dessa dinamicidade fornece subsídios para uma melhor orientação das intervenções humanas na região. Uma história geológica que ajuda a desenhar o futuro.

    É nesse contexto ambiental vivo que se desenha um dos mais espetaculares processos para a definição e a construção de fronteiras que, em seu bojo, permite a reinvenção de identidades. É esse o cenário da segunda parte de nossa viagem. O local de destino é uma vila de ruas estreitas, a Vila de Ega, Capitania de São José do Rio Negro. Estamos nos anos 1780 e são nossos companheiros de viagem João e Fernando, membros de uma comissão espanhola, que incomodaram os portugueses. João, Fernando e mais 800 pessoas estiveram envolvidos com a execução do Tratado de Santo Ildefonso, o terceiro de uma série de tratados assinados entre as Coroas espanhola e portuguesa. Num amplo contexto de desconfianças entre as comissões portuguesa e espanhola é que se desenrola um rico entrevero para que a denúncia acerca da fuga do escravo João do Pará fosse esclarecida. Também, é a diversidade de trabalhos realizados por eles dois que revela o mundo fascinante do trabalho na fronteira amazônica naquela época. A viagem com João e Fernando permite uma profunda análise das identidades dos homens da fronteira, revelando, nesse caso, também o caráter diverso, multiétnico – a maioria dos homens das principais cidades amazônicas era não-branca nesse período. Essa viagem revela ainda que a diversidade não se restringe apenas ao ambiente e a floresta, mas se expressa nas relações comerciais, na interação entre os homens, e nas estratégias e interesses de cada grupo.

    Aprofundando-se nesse caminho percebe-se claramente que o "homem amazônico é fruto da confluência de sujeitos sociais distintos". Ameríndios da várzea e da terra firme, negros e europeus de diversas nacionalidades ampliaram e diversificaram as formas de organização social nos trópicos amazônicos. A grandiosidade do cenário paisagístico, entretanto, impõe à história do homem na Amazônia um caminho difícil para sua explicitação já que é marcada não raras vezes pelo silêncio e pela ausência. Nesse trecho da viagem percebe-se prontamente que os povos da Amazônia, mesmo amalgamados à floresta, não vivem isolados no tempo e no espaço; pelo contrário, estabeleceram, desde o início dos tempos, profunda interação com o mundo contemporâneo, numa moldura de fortes conotações euroantropocêntricas, com trocas contínuas, sendo algumas práticas assimiladas, outras rejeitadas. Contudo, o ser da Amazônia não perdeu sua identidade: permanece "imbuído da identidade dos mais antigos ancestrais – os ameríndios da várzea e da terra firme" e é senhor de uma diversidade de práticas e manifestações culturais que não podem ser submetidas a ações homogeneizadoras por conta de projetos integradores pontuais.

    O acervo de práticas e manifestações culturais de um povo pode, em síntese, ser considerado como bem cultural desse povo. Incluído nesse acervo há várias manifestações que convencionalmente se explicitam em povos de diferentes origens. Contudo, é na singeleza da expressão popular que as Amazônias se tornam maiúsculas e se diferenciam em "relação ao conceito de unidade nacional, seja esta brasileira ou de outras soberanias". Novamente aqui aparece o caráter que permeia os contextos amazônicos: a diversidade. Isto é, as Amazônias se expressam pela diversidade cultural ao mesmo tempo em que abrigam "outras e múltiplas diversidades que lhes são peculiares" como vimos e como veremos ainda ao longo dessa viagem. Pode ser difícil descrever essa diversidade, mas não o é contemplá-la, ainda que não haja vida longa o suficiente que permita conhecê-la inteiramente. Assim, é vital o empenho no desenvolvimento de percepções sociais que resultem na preservação do bem cultural das Amazônias.

    Chegamos ao Teatro Amazonas, expressão magna de um tempo e de uma sociedade fortemente impregnada pelo costume europeu. O sentimento reinante no final do século XIX e início do século XX era singular. A borracha, que já tinha produção significativa, tem seu valor surpreendentemente majorado em função da vulcanização, tecnologia desenvolvida por Charles Goodyear, por volta da metade do século XIX. A euforia era tamanha que as duas principais cidades amazônicas, Belém e Manaus, vivem momentos de urbanização intensa, com construções de edifícios alinhados com as principais construções europeias, monumentos fantásticos, como o referente à abertura dos portos, incrustados na Praça São Sebastião em frente ao Teatro Amazonas, entre outros. Esse momento da vida amazônica foi denominado "belle époque" e não faltam sinais da riqueza daquela época. Um desses sinais é a Escola Universitária Livre de Manaus que, criada em 1909, "alinha-se ao ambiente de prosperidade econômica e de sofisticação que explica a construção do teatro". A Escola é uma resposta da sociedade local à necessidade de formação de profissionais para a crescente demanda do mercado efervescente, sem ter que afastar os jovens da convivência familiar para estudar na Europa. A Escola sobreviveu aos tempos e deu origem à nossa Universidade Federal do Amazonas. O Teatro, o Monumento e a Escola são expressões diversas de um povo, marcas de uma época, que se somam às muitas outras diversidades amazônicas. Essas marcas denotam que um futuro esplendoroso é possível. Sem dúvida, a floresta continua tendo um papel econômico relevante, não só pela função ambiental que desempenha, mas, principalmente, pelos produtos que pode oferecer ao homem da Amazônia. Visitemos, então, a floresta.

     

     

    Do alto, ela, a floresta, pode parecer homogênea aos olhos curiosos dos visitantes, mas nunca foi ou será. Cada canto guarda um imenso conjunto de organismos que, a partir de uma delicada interação entre si com o diversificado ambiente em que vivem, geram um conjunto de características químicas, biológicas, bioquímicas, que estamos muito, mas muito, longe de conhecer. Apreciar as grandes árvores e algumas diminutas, quase microscópicas, plantas aquáticas não revela o que está dentro de seus troncos, de suas folhas, de seus brotos. O conhecimento disso ou vem do tempo, revelado por quem desde o começo das eras interage com tamanha diversidade, o homem da Amazônia, ou vem de maciços investimentos em ciência e tecnologia. Por um ou por outro caminho serão necessários estudos que discriminem, nesse mundo desconhecido, algumas substâncias que interessam ao homem moderno e possam gerar renda e inclusão social, sem a destruição da floresta. Entre essas substâncias estão as fragrâncias contidas em óleos essenciais que as árvores da floresta construíram de forma delicada. São várias espécies que o homem da região conhece bem: pau-rosa, louro, louro-rosa, copaíba, entre outros. A demanda atual por esses óleos é tamanha que, se atendida a partir do extrativismo predatório, colocará em risco a existência dessas espécies. Por isso, é necessário desenhar alternativas sustentáveis para a produção dessa matéria-prima que, a exemplo da borracha, interessa aos mercados europeus para a produção dos perfumes. A escassez de pau-rosa levou à sua inclusão entre as espécies ameaçadas de extinção e a definição de normas para sua exploração. A organização de processos produtivos do pau-rosa e de outros elementos da biodiversidade amazônica pode levar à inclusão de novos importantes produtos no mercado internacional gerando condições econômicas e sociais sustentáveis. Não se trata de fé cega na ciência, mas apenas o seu rígido fazer gerará as condições para que este novo momento, uma "Belle Amazonie", ocorra.

    Por fim, é necessário que o epílogo de nossa viagem considere dois aspectos relevantes. O primeiro relaciona-se à necessidade de produção de informações robustas sobre a região e suas diversidades para que se possam desenhar ações seguras para a sua conservação, para a geração de renda e para uma efetiva inclusão social. Portanto, novas instituições de ensino, pesquisas e cultura são necessárias, bem como a consolidação das centenárias e das cinquentenárias instituições instaladas na região, com simultâneas ações para uma efetiva fixação de pessoal qualificado. O segundo aspecto que emergiu dessa viagem diz respeito à soberania; não a soberania marcada pela defesa bélica do território, mas a soberania conferida a sua gente e para com suas diversidades, enfim, para as muitas Amazônias que se definem pelo indefinido, que se medem pelo imensurável.

     

    Adalberto Luis Val é biólogo e atual diretor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).