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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.61 no.3 São Paulo  2009

     

     

    INTERSEÇÕES ENTRE DOIS REFLEXOS: UMA VISÃO DO DESIGN BRASILEIRO

     

    Maria Luiza A. C. de Castro

     

    Nos anos 1970 e 1980 houve, no Brasil, um grande esforço no sentido de se enquadrar o design dentro de um planejamento empresarial. As intervenções foram baseadas em metodologias de gestão do design, que evoluíram para configurar o design dito estratégico, uma forma de atuação do profissional junto aos mercados: esta abordagem ocupava-se da orientação da política do design, apoiada por análises de fatores internos e externos às empresas, em um nível hierárquico mais alto dentro destas e desde as primeiras fases do desenvolvimento de produtos (1). Essa fase colocou-se como resposta a um processo de cientifização das atividades de projeto, herdado da escola de Ulm, na Alemanha, que serviu de base para a implantação do ensino de design no país.

    Em uma análise esclarecida sobre o design brasileiro contemporâneo, o italiano Andrea Branzi (2) situa a tentativa de operacionalização racional da disciplina à origem de suas dificuldades subsequentes. O autor critica a importação de métodos e princípios oriundos da visão europeia da disciplina, na qual os fundamentos da elaboração conceitual eram baseados na "permanência no tempo", e na "estabilidade simbólica dos seus fundamentos", carregados de um forte valor histórico. A tentativa de valorizar no Brasil uma tradição que nunca existira, baseada na "pesquisa de produtos definitivos, projetados para uma sociedade ordenada e monológica" (3) teria resultado num projeto abstrato e inexequível.

    Branzi (2) baseia sua crítica em uma visão pós-moderna, que privilegia o enfoque múltiplo e propõe a busca de soluções para o design no país por meio da atuação de uma "constelação" de designers, em oposição a um sistema de design estratégico. Ele descarta a ideia de inserção dentro de um planejamento pautado pela racionalidade e funcionalidade — tal como o que caracterizou a essência da condução política do Estado na década de 1970 — e acredita que a resposta para as questões de design se encontra no estímulo aos talentos individuais dos profissionais, através "de motivação particular e da capacidade subjetiva de propor inovações técnicas, mas também estéticas" (4).

    Segundo o autor, a crise do design brasileiro só teria começado a se dissipar na última década do século XX, com a substituição de um "teorema unitário impraticável" — baseado nas soluções homogeneizantes modernistas — por um modelo mais liberal, através do qual "os novos projetistas operam em um contexto produtivo internacional (e em primeiro plano na Itália), superam a referência única da indústria local brasileira, desfrutam da globalização para veicular os seus signos inovadores, sem precisar verificá-los sobre o contexto latino-americano" (4). Os designers passam, assim, a se encaixar nas tendências internacionais, filtradas por sua personalidade individual, abandonando a busca de uma identidade única local — a qual, segundo Branzi, parece não existir. O internacionalismo em que os designers da "nova constelação" operam diz respeito à liberdade, ao individualismo, à visão do detalhe — dentro de uma visão pós-moderna, pela qual o autor milita.

    O enfoque pós-moderno tem o mérito de introduzir a incerteza no discurso organizacional, mostrando que não se pode confiar em um futuro determinado, de progresso contínuo, avalizado pela evolução da tecnologia (5). Porém, se por um lado os pós-modernos reconhecem os diversos níveis de comunicação e interação, o resultado, de seu ponto de vista, é a fragmentação do mundo, que gera a impossibilidade de qualquer planejamento. Os pensadores sistêmicos concordam que a incerteza é determinante, mas, para eles, é imprescindível que as pessoas possam vislumbrar um futuro melhor (5), o que os leva a procurar respostas para esse paradoxo, elaborando novas formas de conhecimento, mesmo que estas não sejam baseadas na previsão. A visão sistêmica coloca-se, assim, como um enfoque alternativo, capaz de esclarecer e situar a complexidade da interconexão entre os níveis de comunicação e as escalas de articulação do design com outras instâncias, tais como a economia e a sociedade.

    A Teoria dos Sistemas foi elaborada nos anos 1950 por pioneiros que tinham em comum a necessidade de uma visão unificada para compreender e lidar com os níveis crescentes de complexidade na apreensão da vida. Eles desenvolveram uma perspectiva transdisciplinar que enfatizava a ordem intrínseca e a interdependência do mundo em todas as suas manifestações e considerava a existência de sistemas, estabelecidos mediante a interação entre suas partes (6). Essa visão evoluiu gerando, principalmente nas décadas de 1970 e 1980, modelos que descrevem aspectos da vida e da sociedade, baseados no conceito de auto-organização: esse conceito parte do princípio de que as mudanças no meio causam "irritações" no sistema, que reage provocando uma recombinação interna de seus elementos para criar novas estruturas e modos de comportamento.

    Dentro dessa perspectiva, os problemas que o design brasileiro enfrentou, quando colocado sob o enfoque da gestão de empresas no contexto de industrialização forçada, não se inserem dentro de uma relação linear enquanto efeito de direcionamentos tais como as políticas públicas que incentivaram o modelo de substituição de importações, ou a implementação pontual da gestão racional do design; também não foram consequência exclusiva da adoção dos modelos funcionalistas de Ulm, ou da restrição de liberdade criativa de um regime político totalitário: eles surgiram da evolução de todo um conjunto de circunstâncias — estas e ainda outras — que "irritaram" o sistema socioeconômico brasileiro, do qual o sistema de design ainda não tinha se diferenciado. A organização das estruturas de prática de design e as modalidades de projeto que passaram a ser utilizadas emergiram da acomodação do sistema ao meio.

    Em contraposição ao design estratégico existiu, assim, um outro direcionamento de design, que se originou de uma herança artesanal diluída, portadora de alguns componentes da base cultural e étnica brasileira, incluindo também a constante influência europeia a que esta foi submetida. Sem as interferências externas, esse design dito artesanal poderia ter eventualmente evoluído, passando por uma etapa intermediária de consolidação, até se transformar em design industrial e eventualmente criar ramificações especializadas, como o próprio design estratégico. Mas a evolução do sistema econômico ocorreu dentro de uma dinâmica mais acelerada, em articulação com a evolução econômica global — e tentou se especializar em um subsistema de design estratégico — voltado para o mercado — antes da evolução do artesanato ter alcançado esse estágio: a vertente artesanal e a vertente industrial nada mais são, portanto, do que a expressão da dialética global/local no design.

    CÓPIA DE IMPORTADOS Em consequência das modalidades de industrialização operantes no Brasil, em que os produtos das multinacionais não eram desenvolvidos localmente e as próprias indústrias locais copiavam e adaptavam produtos importados, o design estratégico brasileiro não encontrou espaço próprio de expressão (7). Com a introdução de esforços orquestrados de utilização do design como ferramenta de competitividade e para agregar valor aos produtos, o sistema sofreu influências de seu entorno, evoluiu internamente e originou alguns novos "fenótipos", mais ou menos adaptados. Os talentos individuais a que Branzi se refere são resultado dessa evolução: se as políticas públicas não geraram o efeito pretendido, por certo são responsáveis — ao menos em parte — pela nova geração de designers, articulada com o global, mas não necessariamente através da indústria brasileira.

    A política de desenvolvimento procura acelerar o processo evolutivo dos sistemas no âmbito do território nacional, mas nem sempre os objetivos são alcançados: "dentro de sistemas sociais organizados, as chances são relativamente grandes de que atividades sejam desenvolvidas como esquematizadas. Isto não significa, necessariamente, que os efeitos ocorram conforme pretendido" (8). Assim, apesar do planejamento introduzir uma "irritação" em um sistema, não se pode prever o resultado da intrincada interação entre os fatores internos que define a direção na qual este sistema vai evoluir: ocorrem mudanças, mas raramente elas correspondem aos resultados que foram planejados.

    A indústria brasileira não se destaca hoje por sua competitividade e não criou uma identidade forte (7). Talvez devido à dificuldade do design em se articular internamente dentro de um modelo forçado, a reprodução do sistema tenha se dado no sentido da articulação com a esfera global. A natureza dos mecanismos da seleção no sistema permanece uma hipótese, mas certamente Branzi (2) aponta para uma das direções prováveis: é mais fácil para os designers brasileiros se integrarem às experimentações criativas como as atualmente em curso na Itália, com a busca de valores pós-materiais, do que às tentativas de criar uma identidade única que nunca existiu neste país, dentro de metodologias que não correspondem às realidades locais. O resultado é um diálogo essencialmente global que, muitas vezes, sequer transita pelo local, e não traz maiores contribuições para a indústria brasileira, alvo inicial das políticas públicas.

    Por outro lado, na evolução da vertente artesanal do design no Brasil, desvinculado da grande indústria, o mecanismo de seleção do sistema parece estar sendo a compatibilidade com uma tendência social mais ampla, que privilegia a perenidade, a tradição, bem como o respeito ambiental, fundamentando o seu sentido e o seu valor. Isso explicaria os bons resultados obtidos por um outro grupo de designers de sucesso, embora sem renome internacional, uma vez que estão articulados à produção de pequenas e médias empresas. Branzi os designa como os "pais fundadores de uma tendência" (9), mas subestima, talvez, a especificidade e reprodução desse grupo, com uma repercussão mais conectada com as realidades locais e regionais e voltada para um desenvolvimento endógeno — embora em sintonia com um campo de produção cultural global. Esse tipo de design evolui em torno da atividade artesanal, incentivada por algumas instituições e políticas de desenvolvimento a construir uma etapa intermediária de corporativismo manufatureiro — cuja inexistência no passado a arquiteta Lina Bo Bardi apontara.

    Esse direcionamento artesanal abriga, entretanto, um paradoxo: a tradição emergiu em uma sociedade que não mais existe, seja em termos de sistema de comunicação, seja em termos de formas de diferenciação: a manutenção de determinadas peculiaridades do trabalho tradicional faz com que ele se transforme em objeto de desejo de um consumo que pertence a novas esferas, e que demanda, para sua satisfação, características produtivas com ele incompatíveis.

    Essa é a origem de muitas dificuldades que as instituições promotoras do desenvolvimento encontram, na implantação do design estratégico junto a sociedades tradicionais. A integração definitiva do design artesanal ao desenvolvimento regional conduz à tentativa de conjugar a tradição à indústria — não artesanal por essência — e pode levar ao esvaziamento de sua capacidade narrativa, transformando os objetos em mero pastiche, reduzindo-os a imagens de fácil consumo.

    PASSADO VERSUS FUTURO A promoção de uma tradição ensaiada — uma vez que promovida por metodologias elaboradas para aplicação generalizada — mostra-se extremamente problemática: a tentativa de expressar o passado entra em contradição com a necessidade de antecipação das necessidades reais dos usuários do futuro — objeto das estratégias de satisfação do mercado.

    Adicionalmente, a busca de uma articulação de mercado com a escala global antes de se consolidarem os elos regionais, direcionamento corrente de certas metodologias, constitui um problema de difícil resolução. Dessa forma, a diferenciação do design-artesanal enquanto sistema e a sua eventual integração a cadeias de valor existentes insinuam-se de forma contraditória.

    Branzi (9), fundamentando-se basicamente na sua quase fé na dinâmica pós-moderna e na capacidade individual dos designers, faz um prognóstico otimista para a evolução do design brasileiro, dentro de um "contexto de multiplicidade criativa". Esse contexto diz respeito a uma maior liberdade para a consciência individual, que não é, entretanto, autônoma e independente: ela está inserida em um meio, com o qual interage; a articulação dos "novos talentos" em uma escala global repercute e cria pressões locais. Essas pressões vão afetar a comunicação do design artesanal e a evolução do sistema, que deverá lidar com contradições e paradoxos em sua reprodução. Não parece evidente que os mecanismos de seleção operem no sentido de encontrar soluções para regiões brasileiras menos industrializadas ou para o desenvolvimento endógeno.

    Por outro lado, se é verdade que o desempenho de talentos individuais ou as ações de líderes e estrategistas não podem definir os rumos da evolução, não deverá ser o simples abandono de um direcionamento modernista racionalista que vai garantir o seu bom encaminhamento.

    Cada vez mais, vem surgindo um consenso sobre a necessidade de redes de aprendizado auto-organizadas que privilegiem a criatividade para lidar com a complexidade do meio e das oportunidades. Se a ênfase excessiva na ordem e na organização dificulta as adaptações, o excesso de desordem não permite uma boa utilização dos recursos e leva à perda de oportunidades e à falta de suporte para a estabilidade.

    Apesar de sua maior indulgência com o modernismo, o enfoque sistêmico converge com o pós-moderno quando considera a visão unívoca como deficiente, uma vez que cria uma armadilha conceitual: é necessário que haja uma pluralidade de agendas, desafios e aspirações, já que uma cultura homogênea pode tolher a criatividade (5).

    As políticas públicas para o design no Brasil continuam se baseando no design estratégico, que se alia às metodologias participativas de promoção do desenvolvimento sustentável, tais como os Arranjos Produtivos Locais (APL). A busca de inovação através do design é uma das principais ferramentas utilizadas para melhoria de qualidade da produção. Entretanto, embora as metodologias tenham se aprimorado e se flexibilizado nos últimos anos, a sua aplicação ainda não consegue estimular de forma satisfatória as redes de aprendizado auto-organizadas.

    A inserção das ações de design sob a tutela do setor de tecnologia nos APL fica, de certa forma, circunscrita ao sistema produtivo, sob o efeito do que Veiga (10) caracteriza como uma "lógica dos meios"; ela está ligada a um pensamento dentro do qual a intervenção do Estado, mesmo com o objetivo de regular as assimetrias do mercado, acaba restringindo-o ao exercício da função de "selecionador da lei da oferta e da procura" (11), deixando, em segundo plano, outras frentes de ação mais criativas.

    Adicionalmente, apesar de sua importância na regulação da desordem social e ambiental provocada pela globalização, a preocupação com o meio ambiente não tem sido necessariamente contemplada pelo direcionamento estratégico do design.

    A possibilidade da reintegração do reformismo social dentro de uma nova conformação do design vai depender da evolução do sistema, e das relações que estabelecer com os sistemas da cultura, da ciência, da economia, da política. Nessa perspectiva, o design poderia se constituir em materialização de um ato político-ideológico na reivindicação da mudança do paradigma de exploração insustentável da natureza.

    Mas a verdade é que o futuro é fundamentalmente imprevisível e quaisquer prognósticos são sempre problemáticos. O ponto de partida para as políticas de desenvolvimento é a constatação de que a complexidade do mundo não é dominável e que uma pluralidade de descrições pode dar uma visão enriquecida, que aprimore a compreensão da situação. "A visão realista é tão problemática quanto a adoção de ideais sem referência à realidade" (12).

    Assim, existe a necessidade de se desenvolver uma compreensão realista do contexto em que se trabalha, mas deve haver também o desenvolvimento da pluralidade de tal interpretação. As diversas metodologias sistêmicas parecem adequadas para tal, uma vez que se baseiam na elaboração de sentidos e visões mais do que planejamento de programas específicos a serem seguidos (12).

    É certo que os rumos do design brasileiro não podem ser definidos — mas, seja dentro de uma perspectiva pós-moderna ou de uma perspectiva sistêmica, é importante que se reflita sobre o futuro e que se dê conta da necessidade de um projeto de aprendizado contínuo — com a participação não só de experts, mas também de todos os envolvidos na produção — como premissa para qualquer esboço de planejamento ou de política pública.

     

     

    Maria Luiza A. C. de Castro é professora assistente na Faculdade de Arquitetura Urbanismo e Design da Universidade Federal de Uberlândia e doutoranda em desenvolvimento sustentável pelo Núcleo de Altos Estudos da Amazônia (UFPA). Foi consultora de design do Sebrae-AP entre 2004 e 2006.

     

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Magalhães, C.F. "Design estratégico — Integração e ação do desenho industrial baseado no mercado". Rio de Janeiro. Dissertação de mestrado defendida no Departamento de Engenharia de Produção, Coppe, Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ).

    2. Branzi, A. "O Brasil como modelo do mundo". In: Moraes, D. Análise do design brasileiro: entre mimese e mestiçagem. São Paulo: Edgar Blücher. 2006. p.3-17.

    3. Branzi, A. op cit. p. 13.

    4. Branzi, A. op cit. p. 17.

    5. Montuori, A.; Purser, R. "Ecological futures: systems theory, postmodernism, and participative learning in an age of uncertainty". In: D. Boje; D. Gephart; ; T. Joseph, (Ed.). Postmodernism and organization theory . Newbury Park: Sage. 1996. p.181-201.

    6. Banathy, B. H. "The evolution of systems inquiry". The first international electronic seminar on wholeness, 2000. Disponível em http//: www.newciv.org/ISSS_Primer/seminar.html, (acesso em 27/03/2007).

    7. Moraes, D. Análise do design brasileiro: entre mimese e mestiçagem. São Paulo, Edgar Blucher, 2006.

    8. Araújo, C.; Waitzbort, L. "Sistema e evolução na teoria de Luhmann". Lua Nova, n.47, p.179-200, 1999. p.192.

    9. Branzi, A. op cit. p. 16.

    10. Veiga, E. Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond. 2005. p.31.

    11. Olivieri, C. G. Cultura neoliberal — leis de incentivo como política pública de cultura. São Paulo: Editora Escrituras/Instituto Pensarte. 2004.

    12. Montuori, A.; Conti, I. From power to partnership. San Francisco: Harper, 1993. Disponível em http//:www.ciis.edu/faculty/articles/ montuori/strategicplanning.pdf; (acesso em 04/06/2008).