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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.61 no.3 São Paulo  2009

     

    PUBLICIDADE

    CIÊNCIA E SAÚDE: DA CHARLATANICE AO PROFISSIONALISMO

     

     

     

    "Sonhei com Nossa Senhora Aparecida e ela me mostrou um vidro de remédio para a maleita. Graças a Deus minha filha melhorou". O depoimento, em tom emocional e testemunhal, é de uma dona-de-casa do interior maranhense e faz parte do texto publicitário para o Tônico Capivarol divulgado no Almanack Capivarol de 1933. Ali, outras opções para a cura de várias enfermidades, contida em um pote de unguento, disputava espaço com receitas de "bolinho de chuva" e orações, além do calendário lunar (essencial para uma boa pesca e para o plantio). Os almanaques, periódicos tão populares em boa parte do século passado e conhecidos, em geral, pelo nome do fabricante que os patrocinava — como o almanaque do Biotônico Fontoura — eram livretos ilustrados com uma infinidade de dicas do saber popular que viajavam todo o país, nas rotas de distribuição dos caixeiros-viajantes especializados em vender lotes de remédios para boticas e farmácias, se constituindo em uma das poucas publicações disponíveis em várias cidades do interior do Brasil. Em grande parte das localidades, antecederam a chegada de jornais e revistas de grande circulação, uma vez que bancas de jornal eram praticamente inexistentes na época. As edições anuais ou semestrais desses almanaques eram aguardadas com ansiedade pelos clientes das boticas e, em algumas regiões carentes, substituíam as cartilhas escolares, contribuindo até mesmo para a iniciação do hábito de leitura, devido a seus textos de fácil assimilação.

    "O Almanaque de Bristol era outro que era uma sensação. Começou a circular no Rio de Janeiro por volta de 1873, era distribuído nas capitais do país, em várias cidades do Sudeste e Nordeste e chegava a dez cidades do interior do Maranhão. Acho que nem o telégrafo chegava nessas cidades", brinca Mário Luiz Gomes, dono de uma das maiores coleções particulares de almanaques ilustrados do país, cerca de 350 exemplares de diversos almanaques, que restaram dos milhões distribuídos entre o final do século XIX e a década de 40 do século XX, período em que as grandes revistas começam a circular em peso e os almanaques vão perdendo popularidade. "Esses almanaques são um prato cheio para observar a história da ciência no Brasil: começam com um discurso quase inventado sobre ciência, mostram o início da indústria farmacêutica — das grandes indústrias às 'fabriquetas' de fundo de quintal — com anúncios de remédios, alguns com fórmulas risíveis. Depois, aos poucos, evoluem seu discurso científico se apropriando de termos mais técnicos. As matérias com tônicas puramente médicas ficavam em segundo plano", afirma Gomes. A grande maioria dos assuntos, dizia respeito à família e, a partir disso, falava-se de saúde. Os anúncios e matérias versavam sobre a saúde do bebê, por exemplo, ou sobre soluções para os "humores do casal", observa o pesquisador.

     

     

    Os almanaques acabam por ilustrar o crescimento e posterior boom da indústria farmacêutica no Brasil nas décadas de 1920 e 1930, devido ao aumento substancial das publicidades encartadas em suas páginas, evidenciando, ainda, o total descontrole das autoridades na época sobre o que era produzido. "O discurso de venda desses produtos artesanais e sem comprovação científica de seus benefícios — tais como: 'tão bom que foi autorizado pelo Junta de Higiene do Rio de Janeiro em apenas 10 dias' — não tinha base legal, geralmente nem sequer tinham a tal autorização, nem princípio ativo algum, apenas discursos de convencimento", exemplifica Gomes.

     

     

    A análise desses anúncios mostra, ainda, a introdução dos hábitos de higiene no Brasil, utilizando um discurso com tom sensual, e as preocupações que rondavam a população na época (como casais de "enamorados" preocupados com a sífilis ou com a tuberculose). Aos poucos, a questão técnica também evolui. Os anúncios ganham grande profissionalismo com os artistas gráficos, pois a impressão de fotografias ainda era um processo complexo para as rotativas rudimentares de então. Nomes como Belmonte, J. Carlos, Franz Kohout, entre outros, alguns vindos principalmente das companhias de publicidade de bondes, um dos maiores veículos de publicidade outdoor na época, ilustravam tais anúncios . "Eram grandes ilustradores e deram uma contribuição enorme para a história da publicidade no Brasil. Como era difícil produzir ou reproduzir uma fotografia, esses artistas criavam lindos anúncios, romantizados, coloridos, bem tropicalizados eu diria" afirma Juvenal Azevedo, publicitário e jornalista que começou sua carreira na Standart, uma das primeiras agências profissionais do Brasil, no final da década de 1950. Azevedo explica que, na época, também era difícil um anúncio (as campanhas publicitárias ainda nem existiam) ter um briefing, ou seja, uma reunião entre os profissionais envolvidos e o cliente para definir caminhos, posicionamentos, escrever um texto com informações responsáveis, etc. "Era uma coisa mais do tipo 'faça um desenho bonito para estampar na revista' ou 'crie uma musiquinha para veicular na rádio'", diz Azevedo. "Era emocional e totalmente irresponsável, não havia controle", completa. Data dessa época, também, textos clássicos, como o de Monteiro Lobato para o Akilostomina Fontoura, do mesmo laboratório do Biotônico, onde a figura do Jeca Tatu recebe diagnóstico de "amarelão" em um anúncio patrocinado pelo laboratório. Menotti del Picchia, em 1936, também se aventurou a escrever para o Almanach da Rhodia, em uma época onde os limites entre publicidade, jornalismo, informação e fantasia ainda não eram nítidos.

     

     

    DISCURSO DA QUÍMICA INDUSTRIAL Aos poucos, começam a aparecer outros discursos também, como o do progresso industrial e da saúde do trabalhador. "É possível notar a desqualificação do que é natural em detrimento ao industrializado. Convoca o consumidor a parar de tomar chá para a digestão — mesmo os industrializados — e dá soluções mais 'modernas', como os produtos sintetizados pela indústria química", observa Gomes. Entre os assuntos principais, dessa época, chama a atenção os relativos à saúde das crianças. "Na época, a mortalidade infantil era muito alta, então as publicidades de medicamentos para o apetite, vitaminas, remédios para vermes, etc, apareciam em grande quantidade" afirma Olga Brites, professora do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. "Nesse período, que vai de 1930 a 1950, consolidam-se as revistas de grande circulação como O Cruzeiro,Revista da Vida Doméstica e Seleções do Reader's Digest", afirma Olga, citando publicações que dedicavam espaço para os temas relativos à saúde.

     

     

    A historiadora também assinala como os textos publicitários dialogam com o momento histórico, que era a industrialização do país. Os anúncios conclamam as mães a cuidarem de seus filhos através de alimentação saudável — conservando os alimentos em papel alumínio e usando a geladeira para acondicioná-los — e a cuidar dos machucados causados por acidentes domésticos — usando antissépticos mais eficientes que receitas caseiras ou um moderníssimo Band-Aid, um curativo que vinha pronto e enfatizava o fato de ser feito em plástico no seu discurso de persuasão. Também indicam o início da independência feminina e da inserção da mulher no mercado de trabalho, onde o leite em pó "com os mesmos nutrientes do leite materno" e a papinha industrializada facilitam o dia-a-dia, além do maquinário tecnológico ("fruto da ciência") que facilita as tarefas domésticas.

    Da mesma forma, a propaganda conclama a mulher a ficar atenta à saúde do marido. "Anúncios relativos a novidades na medicina eram direcionadas ou se articulavam através da figura feminina" diz a pesquisadora. Já para a figura masculina, a saúde e a ciência se traduz através das curas para o cansaço do trabalho, de remédios para azia e má digestão (a palavra stress ainda não tinha entrado na moda), dos instrumentos de precisão e dos novos máquinários tecnológicos, sinônimos de progresso. "É uma época onde o sujeito estava submetido à máquina, onde há uma grande tensão entre os trabalhadores e a sociedade industrializada, que preza a hierarquia, o avanço, a racionalização do tempo e das coisas e onde o trabalhador não pode ficar doente e, se ficar, precisa de uma cura rápida. Essa rapidez é moderna e a indústria vai providenciar essa cura também, na mesma rapidez", pontua Olga.

     

    Enio R. Barbosa Silva