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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.61 n.3 São Paulo  2009

     

     

    PAULO DE ANDRADE

     

    A ARTE DA DESISTÊNCIA

     

     

    Como separar a arte de acompanhar
    e de compor da arte de desaparecer?

    M. G. Llansol

     

    Que tentemos sem conseguir, que cheguemos mesmo a tentar repetidas e inúmeras vezes sem jamais obter êxito – ainda isso nos permite a lei do sucesso. Entretanto, se abandonamos tudo em meio ao caminho, ou em seu início, ou, pior, na iminência de seu fim, somos acusados do crime mais hediondo que aqui se pode cometer: a desistência. Após as colinas que delimitam a cidade, ao pé de uma enorme pedra nua, ergue-se a monstruosa construção que confina, atrás de suas muralhas, milhares e milhares de abnegados e desistentes. Somos, mais que criminosos e exilados, o exemplo justo daquilo que em nossa comunidade deve ser banido, extirpado, como uma doença fatal.

    Em toda a história de nosso povo jamais constou fato algum que, mesmo por qualquer relação indireta, pudesse aludir à desistência. Alguns fracassos, é certo; mas nunca uma desistência. São uma linhagem de vencedores – sim, são um povo duro e vitorioso: é esse o seu legado. Mesmo nós, que vivemos aqui do lado de fora, não nos livramos do destino de vencer – não estamos, de fato, presos e, contudo, não fugimos, cumprimos obstinadamente o papel de degradados, de foras-da-lei. Nem sempre sabemos o que é que nos encerra, o que é que nos cerca, o que é que parece nos enterrar, e no entanto sentimos não sei que barras, que grades, que muros. E é esta a nossa pena: nós, que desistimos um dia, fomos condenados a vencer.

    Entre todos os que aqui se encontram, há sobretudo artistas. Não é sem razão que, dentro da cidade, refiram-se também a nós como "os artistas"; assim como não é sem razão que toda e qualquer forma de arte foi, conosco, banida para fora. E mesmo fora, estamos – nós, os artistas, os personagens improváveis e suspeitos, que não merecemos confiança –, estamos impossibilitados de exercer a arte. Nada temos à mão que possamos transformar; se for necessário, vendam nossos olhos, amarram nossos braços e pernas, obstruem nossos ouvidos e bocas. E ainda assim, como fomos feitos para vencer, não desistimos, queremos a qualquer custo escrever, cantar, dançar. E tentamos, e tentamos, e mais tentamos, mais a arte torna-se para nós irrealizável.

    Mas o tempo de comutação está chegando. Há um mês consegui desistir de minha higiene e tenho frequentemente negligenciado meu asseio. A penúria e a miséria contribuem de algum modo para isso, e depois, às vezes, esse é um bom método para se garantir a solidão indispensável a novas desistências. Eis como vejo a coisa: continuar, continuar a desistir, isso é que é necessário – derrotar a própria vitória. Os outros ao meu redor ainda não entendem, cobram-me o gesto heróico da resistência. Eles dizem: "desde tal ou qual época você caiu, você se apagou, você não fez mais nada". E eu, vivo, inflamado, voraz, intuindo ali o pavio de uma guerra a meu favor, confesso que ensaiei retrucar: "mas vocês chamam isso de cair, de não fazer nada?", quando então vi diante de mim a oportunidade preciosa para também desistir e me calar.

    Desde o momento que passei a desistir, percebi que podia novamente escrever. Mesmo sem lápis, sem nenhum instrumento, sem papel, eu escrevia; de mãos atadas, eu escrevia; durante o sono, eu escrevia. E era muito simples: bastava que eu desistisse de escrever, e aí eu escrevia. Mas aquilo que eu escrevia quando desistia não vinha no lugar de um escrito que eu escreveria se pudesse fazê-lo, pois escrever já havia então se convertido em desistir.

    Foi assim que descobri na desistência uma revelação. Existir exigia de mim o grande sacrifício de não ter força: desisto, e eis que na mão fraca o mundo cabe; chego à altura de poder cair, escolho, estremeço e desisto, e, finalmente, me votando à minha queda, despessoal, sem voz própria, finalmente sem mim – eis que tudo o que não tenho é que é meu, eis que tudo o que não quero é que eu posso.

    Agora, porque desisti de fugir, não mais temo ser descoberto – que me julguem reincidente no crime de desistência. Sei que posso ser condenado à morte, mas no caminho que sigo devo perseverar, e, talvez, antes de ser executado, terei já conseguido desistir tanto de viver como de morrer e pertencerei não mais à vida, não mais à morte, senão ao desaparecimento lento e gradativo que o gesto infinito e vazio de escrever, de desistir me reserva: na desistência, serei a pura existência, um pouco menos que nada, a pura existência que passa despercebida no meio de qualquer companhia, porque, da mesma maneira que o amor mais só, em cada instante serei eu todo inteiro e – poeira, ninguém – deixarei de ser. Serei, enfim, como o traço que na subtração separa suas parcelas – e quem há, aqui, que se preocupe com um traço?

     

    Paulo de Andrade é poeta, ensaísta e tradutor. Publicou Livra-me (Bichinho gritador, 2002) e poemas e textos esparsos em revistas nacionais e internacionais. Atualmente é assessor editorial do Suplemento Literário de Minas Gerais.