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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.61 n.4 São Paulo  2009

     

     

    DOENÇAS DE CHAGAS

    Vivendo esquecidos e morrendo como passarinhos

     

    "Quero morrer como um passarinho, sem fazer barulho". Maria dizia isso sempre que o assunto era morte. Às vezes acrescentava "minha mãe morreu assim, quando eu tinha seis anos. A gente tava andando na roça. De repente ela caiu e morreu". A roça era mineira, num canto perdido de Buenópolis, distante uns 300 km de Belo Horizonte. Hoje faz parte do município de Joaquim Felício. Maria e dois de seus irmãos eram portadores da doença de Chagas e viveram muitos anos sem saber por que sentiam palpitações, insuficiência cardíaca, engasgo, constipação e outros sintomas relacionados à doença.

    Não muito distante de lá, em 1908, no povoado de São Gonçalo das Tabocas, hoje município de Lassance, o médico Carlos Chagas, trabalhava no combate a uma epidemia de malária que afetava as obras do prolongamento da Estrada de Ferro Central do Brasil, na região do rio das Velhas, entre Corinto e Pirapora. Enquanto coordenava a campanha, estudava insetos da região e montou um laboratório improvisado num vagão de trem que lhe servia também de dormitório. Sabendo da importância dos insetos sugadores de sangue como transmissores de doenças parasitárias, examinou vários exemplares de um percevejo hematófago comum na região.

    Popularmente chamado barbeiro (Triatoma infestans), pelo hábito de picar o rosto de suas vítimas enquanto dormem, esse inseto era abundante nas choupanas de pau-a-pique da região. De dia escondiam-se nas frestas e buracos das paredes de barro, à noite picavam seus moradores. No intestino desses percevejos, Chagas encontrou protozoários que foram posteriormente identificados no Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, como sendo de uma nova espécie, a qual recebeu o nome de Trypanossoma cruzi, em homenagem a Oswaldo Cruz. Ainda em Lassance, Chagas fez inúmeros exames de sangue nos moradores.

     

    CENTENÁRIO DA DESCOBERTA Todo esse trabalho valeu a pena. Em 14 de abril de 1909, encontrou finalmente o parasito no sangue de uma criança, Berenice, uma menina de dois anos. Foi o primeiro caso de uma nova doença humana, batizada de doença de Chagas. De um laboratório improvisado no interior mineiro, e com o apoio de pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz, Chagas realizou um feito notável e inédito: identificou o parasito, seu vetor (inseto que transmite a doença) e a doença que o parasito causava.

    Cem anos depois, persiste um constrangedor silêncio em torno de quem vive com a doença de Chagas. Tentando romper esse silêncio, a organização internacional humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF) lançou, em 9 de julho passado, a campanha "Chagas: é hora de romper o silêncio". A data não foi escolhida por um acaso: 2009 é o ano do centenário do descobrimento da doença de Chagas e em 9 de julho de 1878 nascia, na Fazenda Bom Retiro, próximo à pequena cidade de Oliveira, Minas Gerais, Carlos Chagas. Gabriela Chaves, membro no Brasil da MSF, explica que se trata de um apelo para que "os governos dos países endêmicos não considerem os pacientes casos perdidos, e apostem no diagnóstico e no tratamento de pessoas infectadas, em vez de se concentrar somente no controle vetorial". E acrescenta "é necessário maior esforço em pesquisa e desenvolvimento de novos medicamentos".

    A doença de Chagas é, dentre as doenças infecto-parasitárias, a quarta causa de morte no Brasil. João Carlos Pinto Dias, pesquisador do Centro de Pesquisa René Rachou (CPqRR), unidade da Fiocruz situada em Belo Horizonte, afirma que existem no Brasil "entre 2 e 2,5 milhões de portadores de doença de Chagas, e entre 4 e 5 mil óbitos são registrados por ano. Os principais estados atingidos são Minas Gerais, Goiás e Bahia, afetando principalmente homens entre 50 e 65 anos". No mundo são cerca de 16 milhões de pessoas infectadas.

    Muitos portadores convivem com a doença sem saber. Quando há sintoma, explica Dias, o diagnóstico é feito por sorologia convencional amplamente disponível nos laboratórios de análise e também nos laboratórios públicos. Dias é um dos principais especialistas em doença de Chagas no Brasil e estima que "pelo menos 40% das pessoas infectadas com Chagas são totalmente assintomáticas e só são descobertos em inquéritos sorológicos ou na doação de sangue". As formas mais importantes de transmissão da doença ainda são as vetoriais, seja via lesão resultante da picada, seja por mucosa ocular ou oral, mas também apresentam importância epidemiológica a transmissão por transfusão e congênita, alerta o pesquisador.

     

    MIGRAÇÃO RURAL No Brasil, a mudança para os centros urbanos fez surgir a transmissão da doença de Chagas por transfusão sanguínea, quando indivíduos infectados passaram a vender sangue para sobreviver. Um trabalho publicado por Dias em 2007 (Cad. Saúde Pública, Supl.23, 2007) aponta que cerca de 70% dos indivíduos infectados no Brasil vivem nas cidades, fazendo com que o risco de transmissão por transfusão sanguínea seja muito alto, caso não haja um rigoroso controle nos bancos de sangue. Por isso, dentre as estratégias de combate à doença de Chagas que estão sendo adotadas pelo Ministério da Saúde está o trabalho da Coordenação da Política Nacional de Sangue e Hemoderivados supervisionando e apoiando a seleção sorológica de candidatos à doação de sangue no país.

    Embora seja difícil a erradicação da doença devido à intensa circulação do parasito entre reservatórios e vetores silvestres, o controle é possível, impedindo a transmissão por transfusão e com uma contínua vigilância, em todos os municípios, para que o inseto vetor não mais colonize residências humanas. "No fim dos anos setenta se estimavam 100 mil novos casos por ano no Brasil, hoje registram-se pouco mais de 100 novos casos por ano, portanto uma redução de mil vezes", acrescenta Dias.

    Em 2006, a Organização Panamericana de Saúde, vinculada à Organização Mundial de Saúde (Opas/OMS), declarou o Brasil livre da transmissão da doença de Chagas pela principal espécie vetora, o barbeiro. Gabriela Chaves, do MSF, considera que "isso gerou uma certa confusão de que não temos mais doença de Chagas pois na época a Amazônia não era considerada uma região endêmica." Dados do Ministério da Saúde indicam que em 2005 foram notificados 10 casos de doença de Chagas nos estados da região Norte. Em 2006, foram 88 casos, passando a 157 em 2007, e 124 em 2008. O maior número de ocorrências foi registrado no Pará, passando de 83 em 2006, para 109 em 2007 e 99 em 2008.

    Tentando detectar melhor o problema, a MSF e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) estabeleceram uma parceria para a implantação do programa de Capacitação para o Diagnóstico e o Tratamento da Doença de Chagas na Região da Amazônia Brasileira. "Por meio dessa parceria, profissionais são treinados para identificar nas lâminas de malária o parasita que provoca o mal de Chagas", diz Gabriela.

     

    TRATAR OS DOENTES Outro grande desafio é o tratamento dos afetados. Apesar de potencialmente mortal, historicamente os programas de saúde de combate ao mal de Chagas deram ênfase à prevenção e à luta contra o vetor, deixando em segundo plano o tratamento dos já infectados. Gabriela considera que, por ser uma doença associada à pobreza e a populações de baixa escolaridade, com muitos dos infectados convivendo com a doença durante anos, ela permanece esquecida. Os medicamentos existentes atualmente - benznidazol e nifurtimox - foram desenvolvidos há mais de 35 anos. Os investimentos em pesquisa também são incipientes. O G-Finder (Global Funding of Innovation for Neglected Diseases), inquérito realizado pelo The George Institute for Internacional Health, que tem por objetivo traçar um panorama internacional dos investimentos em pesquisas de novos produtos e tecnologias para o tratamento de doenças negligenciadas, constatou que em 2007 foram gastos apenas US$ 10,1 milhões em pesquisas sobre a doença de Chagas. Menos da metade foi gasto com a pesquisa de medicamentos, vacinas, diagnósticos e produtos de controle vetorial.

    Dias afirma que há um esforço no Brasil para capacitar profissionais de saúde e que existem pesquisas sobre novas drogas. "Há desenvolvimento de células-tronco e existem pesquisas de novas formulações dos inseticidas convencionais; este ano deve sair uma pesquisa associando drogas e outra com posaconazol, um antifúngico que tem se revelado muito eficiente contra o T. cruzi em experimentos em animais", diz o pesquisador assinalando que para enfrentar a doença de Chagas "as palavras mágicas são continuidade, determinação e vontade política". Dias acrescenta, "como dizia o próprio Chagas, em 1934: o importante, acima das glórias acadêmicas, é acabar com esta doença e cuidar dessa pobre gente". E romper o silêncio em torno de Marias e Josés que vivem e sofrem com a doença de Chagas.

     

    Leonor Assad