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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.61 no.4 São Paulo  2009

     

     

    DIREITOS AUTORAIS

    1984: o futuro chegou e ameaça direito do usuário

     

    Este é um pedido de desculpas pelo modo que lidamos previamente com a venda de cópias ilegais de 1984 e outras obras no Kindle. Nossa "solução" ao problema foi estúpida, não pensada, e dolorosamente fora de nossos princípios. É completamente auto-infligido e merecemos a crítica que recebemos. Usaremos a cicatriz deste erro doloroso para nos ajudar a tomar decisões melhores daqui por diante; decisões estas que reflitam nossa missão. 

    Com profundas desculpas aos nossos clientes, Jeff Bezos, Fundador & CEO, Amazon.com (texto traduzido do original em inglês)

    A pesada mea culpa do executivo-chefe da Amazon, a gigante de vendas pela internet, reflete tanto a reação indignada de seus clientes quanto a percepção própria de haver cruzado limites éticos de maneira inédita na jovem história da privacidade digital. No dia 17 de julho de 2009, os donos de livros eletrônicos (e-book) Kindle, vendidos pela Amazon, que compraram os downloads de 1984 e Animal farm, de George Orwell, tiveram suas cópias remotamente deletadas de seus aparelhos pela Amazon.

     

     

    O modelo de negócios do e-book Kindle é baseado na compra de downloads. O aparelho é um dispositivo equipado com uma tela LCD, teclado e um touchpad, para interação com o usuário, e também com uma placa para acesso a rede sem fio (wireless). A compra do aparelho é conjugada com a assinatura de um serviço de rede para transferência de conteúdos. Usando o Kindle em conjunto com uma rede wireless, o cliente pode navegar no site da Amazon e comprar conteúdos para serem lidos no equipamento. Praticidade e agilidade, unidos à conveniência de levar um acervo de livros, revistas e jornais, todos armazenados em um dispositivo só.

    Mas, como sempre, no espinhoso mundo do copyright, o que deveria ser simples se torna complexo. Nesse modelo, a Amazon atua como um intermediário entre o detentor dos direitos autorais e o comprador da obra. Além disso, o portal Amazon.com permite que empresas parceiras, através de mecanismos de auto-publicação, ofereçam conteúdos aos clientes. Uma parceira, a MobileReference, ofereceu no Amazon.com as duas obras de George Orwell, sem possuir os direitos sobre as mesmas. A Mobile explicou que na Austrália as obras estão em domínio público e especificou a venda somente nesse país, mas a Amazon não teria seguido a determinação. Quando notificada do fato pelo real detentor, a Amazon apressou-se em corrigir os erros: os downloads foram removidos, e um comando remoto enviado aos e-books Kindle de seus usuários apagou os arquivos que haviam sido comprados.

    Mesmo com o reembolso provido aos clientes, o episódio causou furor em grupos de usuários, fóruns online de discussão de privacidade digital, grupos de ativistas para liberdades civis, etc. Grupos de defesa de direitos de usuários e especialistas em privacidade digital acusaram a Amazon de haver violado um tabu do mundo digital: sem notificação prévia, muito menos consentimento, entraram nos aparelhos dos usuários e removeram arquivos. Em alguns casos, foi removido conjuntamente as anotações que os usuários haviam feito sobre as obras (o Kindle permite tal função). Segundo Corynne McSherry, advogada da organização de defesa dos direitos dos internautas Eletronic Frontier Foundation, a ação destruiu arquivos que acompanhavam alguns e-books, como palestras que professores planejavam dar, sobre as obras e trabalhos universitários que estudantes preparavam com base nos livros. No mundo dos livros impressos, a ação equivaleria a um vendedor de livros entrar na casa de um comprador sem sua autorização (ou mesmo ciência), retirar um livro da sua estante e deixar um bilhere "vendido por engano" junto com um cheque de reembolso.

    Embora o problema tenha ocorrido com usuários norte-americanos do Kindle, nunca se pode menosprezar a extensão da influência dos EUA no resto do mundo, mais ainda quando se trata de tecnologia. Que precedentes o acontecido representa, justamente na "terra da liberdade"? O episódio - que a ironia fez acontecer justamente com o livro 1984, um romance que dramatiza a interferência de governos e corporações na vida individual - disparou o gatilho de uma série de discussões acaloradas sobre o significado de privacidade digital e sobre qual o equilíbrio que deve existir entre proteção de direito autoral e direitos dos usuários. De um lado, a Amazon argumenta que as tecnologias de proteção de direitos autorais (chamadas conjuntamente de DRM, Digital Rights Management, ou, pela versão dos grupos de ativistas, Digital Restrictions Management) são necessárias para convencer os detentores de copyrights de que o Kindle é uma plataforma confiável para suas obras. De outro lado, grupos de ativismo como a Fundação Fronteira Eletrônica (EFF, na sigla em inglês) acusam a Amazon de práticas inaceitáveis, que violam direitos individuais fundamentais.

    O mercado de conteúdo (música, vídeo, cinema, artes visuais, notícias jornalísticas, etc) relaciona-se com a internet de uma forma esquizofrênica: por um lado, a explosão de banda larga dos últimos anos representa oportunidade para venda de conteúdo e anúncios. Por outro, a natureza capilar, anárquica e anônima da rede é ambiente hostil às práticas de monopólio e dominação típicas dessas mega-corporações. A indústria da música, a primeira mídia e ser extensamente pirateada na internet, mostrou às outras indústrias como elas estariam dali a alguns anos, com o avanço da tecnologia e, principalmente, da banda larga.

    Novas formas de se publicar e distribuir conteúdos foram concebidas, com base na ideia de que o direito autoral tradicional era inadequado para a era digital. Novos termos de licenciamento de obras, como o Creative Commons (CC), atacam o poder do "todos os direitos reservados". Propõe, alternativamente, "alguns direitos reservados". Segundo Lawrence Lessig, professor de direito e autor do livro Free culture (Penguin Press, 2004), "o CC baseia-se na noção de que nenhuma obra criativa é isolada, sempre inspira-se em maior ou menor grau em obras anteriores". Portanto, para o próprio bem-estar da atividade artística e intelectual criativa, é importante garantir algum grau de compartilhamento e cópia de obras.

    Na era digital, a necessidade de grandes atravessadores e fornecedores de bens culturais, como os estúdios de cinema e as gravadoras de discos pode estar diminuindo, uma vez que os meios de produção tornaram-se mais acessíveis e a própria internet pode prover a distribuição. No Brasil, artistas como o pioneiro Lobão e outros como Ed Motta, Gilberto Gil e BNegão, já fizeram experiências com distribuição de suas obras pela internet. Os roqueiros ingleses do Radiohead colocaram um CD inteiro para download em seu site, em 2007. Recentemente, o escritor Paulo Coelho disponibilizou três de seus livros mais recentes e ainda não-publicados via editoras tradicionais. Ele ainda declara em seu site não ter intenções de vender os direitos dessas obras para editoras, no futuro próximo.

     

     

    Por considerar a utilização de tecnologias DRM inconciliáveis com as garantias fundamentais dos usuários, a Fundação do Software Livre (FSF, sigla em inglês) incluiu o Kindle da Amazon em sua campanha "Defective by design", contra o DRM. A FSF procura convencer a Amazon a eliminar todo o DRM empregado no Kindle e também a tornar público o código-fonte dos programas que equipam o aparelho.

    Por ora, em relação ao Kindle, a Amazon desculpa-se garantindo que não repetirá o ato no futuro. O problema é que o ocorrido expõe a própria funcionalidade, embutida no Kindle, de obedecer a comandos remotos da empresa. E isso não está explicitado nem mesmo nos termos do contrato de serviço do aparelho. Se a tecnologia foi concebida e implementada, está lá para ser usada, quando necessário. No jogo pesado da indústria do copyright tradicional, isso significa livrar a empresa dos multimilionários processos por violação de direitos autorais.

    Se a empresa pretende respeitar usuários, como faz crer as "profundas desculpas" de Jeff Bezos, em casos semelhantes no futuro, só mesmo o futuro dirá. Por enquanto, o Kindle permanece exposto como um computador não-confiável: é capaz de obedecer a comandos remotos, alheios - e até mesmo contrários - à vontade de seus reais donos. Nos termos da FSF, é "defeituoso pelo design".

     

    Bruno Buys