SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.61 número4 índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

    Links relacionados

    • En proceso de indezaciónCitado por Google
    • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

    Compartir


    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.61 n.4 São Paulo  2009

     

     

    1609: DA ASTRONOMIA TRADICIONAL AO NASCIMENTO DA ASTROFÍSICA

    Anastasia Guidi Itokazu

     

    O ano de 1609 foi decisivo na formação da imagem que hoje temos do universo. Foi nesse ano que Galileu apontou uma luneta para os céus dando início a uma série de observações que colocaram em xeque o geocentrismo tradicional. Foi também nesse ano que Kepler publicou sua Astronomia nova, inaugurando uma nova física celeste onde a Terra passava a ser, de fato, encarada como um planeta.

    A astronomia surgiu como uma ciência voltada a atividades práticas. Ainda na pré-história, o domínio da agricultura dependeu da compreensão do ciclo das estações do ano, determinado pelo movimento aparente do Sol. Esse tipo de conhecimento, indispensável na identificação do momento ideal para a preparação da terra, o plantio ou a colheita, aparece cristalizado nos monumentos de pedra de diversas culturas, de Stonehenge, na Grã-Bretanha, à pedra Intihuatana em Machu Picchu, no Peru. O tema é tratado pelo poeta grego Hesíodo (Séc. VI a.C.) na obra Os trabalhos e os dias (1), na qual, a exemplo do que se observa em textos da antiga Babilônia, o poeta associa cada tarefa agrícola a uma determinada posição do Sol em seu percurso anual ao longo do zodíaco. O conhecimento do movimento do Sol também tinha implicações práticas para os habitantes das cidades: na antiga Roma, esperava-se que um cidadão educado fosse capaz de planejar a construção de sua casa tendo em vista a incidência do Sol, de modo a obter conforto térmico ao longo do ano.

    Além do ciclo anual determinado pelo movimento do Sol, há também o ciclo percorrido pela Lua a cada 29 dias. É certo que a posição da Lua não afeta as condições climáticas, mas a evidente sucessão das fases lunares constituiu, desde muito cedo, uma importante forma de se marcar o tempo. Originalmente, os meses correspondiam a um ciclo completo da Lua, e as semanas que o compõem a cada fase lunar. Há, porém, dificuldades de conciliação entre os ciclos do Sol e da Lua, pois o número de revoluções lunares completadas a cada ano não é um número inteiro. Esse problema matemático garantiu o ganha-pão de gerações de astrônomos, até que Júlio César, em 46 d.C., dissociasse os meses do ano do movimento da Lua com a introdução do calendário juliano. Quanto aos planetas, estes eram conhecidos como estrelas errantes devido à complexidade de seus percursos aparentes no céu. A descrição de seus movimentos ao redor da Terra tinha implicações para a astrologia e constituía um importante problema teórico, que não seria satisfatoriamente resolvido até o século II d.C. com o trabalho de Cláudio Ptolomeu (2;3;4).

    Alguns séculos antes, no tratado Sobre o céu (c. 350 a.C.), Aristóteles (5) havia proposto uma visão sobre a região celeste que dominaria o pensamento ocidental até o Renascimento. No livro, a Terra esférica ocupa o centro de um mundo organizado em camadas esféricas concêntricas, em uma estrutura semelhante a uma cebola. Cada astro estaria ligado a uma esfera ou, mais precisamente, a um conjunto de esferas. Essas esferas invisíveis seriam constituídas da mesma matéria que os astros, o éter, quinto elemento perfeito e incorruptível do qual era feita a região celeste. A teoria pressupunha um contraste rígido entre a região terrestre, onde corpos formados de combinações de água, fogo, terra e ar encontram-se em perpétua mudança - e não podem, de maneira alguma, ser submetidos a cálculos precisos - e a região celeste - onde corpos perfeitos e imutáveis feitos de éter descrevem seus movimentos periódicos e acessíveis à matemática com total regularidade. Aristóteles não nos legou uma teoria matemática dos movimentos celestes, mas sua cosmologia, com a organização do céu em esferas concêntricas e feitas de éter, exerceria uma enorme influência sobre a astronomia subsequente.

    Ao longo de toda sua história, a astronomia grega foi influenciada pela astronomia da Babilônia, e esse contato se intensificou especialmente a partir da invasão da região por Alexandre o Grande, em 331 a.C. A astronomia babilônica era então bastante desenvolvida do ponto de vista do registro de observações e da predição de regularidades nos movimentos dos astros, mas empregava, sobretudo, métodos aritméticos, que não se relacionavam com considerações sobre a estrutura do cosmos ou a matéria da qual seria feita a região celeste (6). Os gregos incorporaram os métodos matemáticos da astronomia da Babilônia à sua visão geométrica do cosmos, e, graças ao acesso a um amplo conjunto de observações, passaram a desenvolver teorias cada vez mais refinadas nas quais composições de movimentos circulares eram empregadas para reproduzir os movimentos dos astros.

    Nesse cenário, as estrelas funcionavam como um sistema de referência. Chamadas fixas, porque suas posições relativas não se alteram com o tempo (pelo menos até onde podem detectar as observações feitas a olho nu), as estrelas constituíam o fundo estável com relação ao qual eram observados e registrados os movimentos da Lua, do Sol e dos planetas. Na cosmologia grega, as estrelas fixas encontravam-se presas à esfera mais externa do universo e, na verdade, descreviam um movimento simples, a rotação dos céus completada a cada 24 horas, que hoje atribuímos à Terra. Essa esfera também funcionava como limite do universo, e para além dela, segundo Aristóteles, não poderia haver nada, nem mesmo o vazio. No centro da esfera das estrelas fixas encontrava-se em repouso a Terra, centro do mundo, e no espaço intermediário o Sol, a Lua e os planetas, corpos de que, de fato, ocupava-se a astronomia, descreviam seus movimentos (figura 1). É importante ressaltar que o arranjo geocêntrico corresponde exatamente àquilo que observamos na nossa experiência cotidiana: a Terra parada sob nossos pés e os astros girando à nossa volta.

     

     

    Cláudio Ptolomeu exerceu sua vida profissional na Escola Platônica de Alexandria. Sabe-se que ele teve acesso ao enorme acervo da biblioteca mais célebre da Antiguidade, inclusive a trabalhos astronômicos gregos que não chegaram até nós. O título de sua grande obra dedicada à astronomia, o Almagesto, deriva da tradução para o árabe do grego Megalé syntaxis, que significa Grande compilação. Ironicamente, o enorme sucesso do Almagesto foi indiretamente responsável pelo desaparecimento de trabalhos mais antigos, que deixaram de ser copiados uma vez que o livro de Ptolomeu resumia e ultrapassava todos os resultados obtidos anteriormente pelos astrônomos gregos. Com efeito, embora já houvesse teorias razoavelmente precisas para os movimentos do Sol e da Lua, atribuídas a Hiparco de Nicéia (Séc. II a.C.), foi somente com Ptolomeu que tornou-se possível calcular com precisão também os movimentos dos cinco planetas visíveis a olho nu e conhecidos à época: Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno - vale lembrar que a Terra não era considerada um planeta, mas algo inteiramente distinto dos corpos celestes. A astronomia ptolomaica baseava-se em modelos geométricos, combinações de círculos que reproduziam os movimentos celestes observados e possibilitavam o cálculo das posições do Sol, da Lua e dos planetas em qualquer instante no tempo.

    O estudo da região celeste na tradição aristotélico-ptolomaica desdobrava-se, assim, em dois níveis: de um lado havia as explicações causais em termos da natureza da região celeste, que seria constituída de esferas concêntricas dispostas ao redor da Terra. Essas esferas, como os astros por elas transportados, eram formadas a partir de um quinto elemento, o éter, diferente de toda a matéria encontrada na região terrestre e naturalmente dotado de movimento circular. Por outro lado, havia os modelos ptolomaicos, constituídos de círculos que nem sempre tinham a Terra em seu centro e que, embora claramente procurassem expressar as revoluções das esferas celestes, acabavam por desviar-se dos preceitos de Aristóteles para corresponder, mais precisamente, às observações.

    O Almagesto permaneceu como a mais importante obra astronômica através de toda a Idade Média, ainda que seu elevado grau de detalhe tenha impedido sua utilização como livro-texto na universidade medieval. No mundo árabe, porém, o Almagesto foi meticulosamente estudado a partir do século IV d.C., criando-se um extenso debate em torno da relação entre as esferas da cosmologia aristotélica e os círculos da astronomia de posição ptolomaica. No Renascimento, o livro inspirou novas gerações de astrônomos, dentre os quais podemos destacar os defensores do heliocentrismo, Nicolau Copérnico e Johannes Kepler.

    Nicolau Copérnico provocou aquela que é provavelmente a maior revolução científica da história da humanidade ao propor que os movimentos dos planetas não são, na verdade, dispostos em torno da Terra, mas em torno do Sol, que no seu sistema ocupa o centro da esfera das estrelas fixas (figura 2). Copérnico defende que a Terra se move ao redor do Sol completando uma rotação completa a cada ano, além de girar em torno de seu próprio eixo com um período de 24 horas. Essa ideia já havia sido proposta na Grécia Antiga, nos atesta Arquimedes no Contador de areia, por Aristarco de Samos. Não existe, no entanto, nenhuma evidência textual de que Copérnico tenha tido acesso às ideias de Aristarco, de modo que é impossível decidir se o seu trabalho influenciou ou não o sistema copernicano.

     

     

    A astronomia copernicana demorou para ser aceita, em parte porque entrava em conflito com alguns trechos das Escrituras, mas sobretudo porque era incompatível com a física da época. Se a Terra movia-se através dos céus, como explicar que não sentimos qualquer efeito desse movimento? Como explicar que as nuvens e os pássaros, embora soltos no ar, deslocam-se igualmente em qualquer direção, e que os projéteis lançados para leste ou para oeste alcançam a mesma distância? Os defensores da astronomia tradicional argumentavam que se a Terra, de fato, se movesse seríamos todos lançados no espaço, e um vento fortíssimo sopraria na direção leste-oeste como consequência do movimento diário de rotação.

    Para que a Terra perdesse o seu posto no centro do universo seria necessária a criação de uma nova física, compatível com o sistema heliocêntrico, e, para isso, contribuíram enormemente dois eventos ocorridos no ano de 1609. Na Itália, Galileu Galilei teve a ideia de apontar uma luneta náutica em direção ao céu, fazendo uma série de observações absolutamente inéditas que trariam grandes dificuldades para os defensores da visão tradicional do cosmos. As recém-descobertas luas de Júpiter descreviam seus movimentos em torno de um centro que, claramente, não era a Terra, e os vales e montanhas de nossa Lua contestavam a visão tradicional de um céu perfeito e distinto da região terrestre.

    Kepler, de sua parte, desenvolveu um trabalho teórico a partir das observações mais precisas da astronomia pré-telescópia, feitas por Tycho Brahe ao longo de duas décadas no observatório de Uraniburgo, na Dinamarca (figura 3). No heliocentrismo físico de Kepler as explicações da cosmologia de Aristóteles, em termos da rotação de esferas concêntricas feitas de éter, são substituídas por explicações baseadas na ação de forças físicas. Na Astronomia nova, a ideia de que uma certa força solar é responsável pelos movimentos dos planetas é fundamental para a descoberta da forma elíptica das órbitas planetárias (figura 4) e da lei das áreas, duas das mais importantes contribuições do astrônomo.

     

     

     

     

    Sabemos que Kepler correspondeu-se com Galileu, tendo mesmo chegado a compor um tratado justificando teoricamente as observações feitas com o telescópio. Porém, a colaboração entre os dois defensores de Copérnico não haveria de durar muito, o que se deve, ao menos em parte, às concepções científicas diversas sustentadas pelos dois autores. Kepler acreditava que a explicação dos movimentos planetários no sistema heliocêntrico deveria ser análoga àquela de fenômenos similares observados na Terra, os fenômenos magnéticos. A força solar, como a força dos imãs, era capaz de agir à distância, movimentando os corpos dos planetas com velocidades que variavam com a proximidade do Sol. Esse tipo de explicação parecia arbitrária e obscura para Galileu, que tinha como centro de sua campanha a instauração de uma nova ciência dos corpos em movimento, livre das entidades impossíveis de serem observadas que, na sua opinião, entravavam a ciência de seu tempo. Mesmo trabalhando independentemente, os dois autores foram capazes de derrubar a antiga visão de mundo, abrindo caminho para a mecânica celeste de Isaac Newton e para os desenvolvimentos científicos e filosóficos que marcaram o século XVII.

     

    Anastasia Guidi Itokazu é física e bolsista Fapesp de pós-doutorado no Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

     

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Hesiod. Theogony, works and days. Harvard University Press. 2006.

    2. Dreyer, J. L. E. A history of astronomy from Thales to Kepler. Nova Iorque: Dover, 1953.

    3. Gingerich, O. The eye of the heaven: Ptolomy, Copernicus, Kepler. Nova Iorque: American Institute of Physics. 1993.

    4. Hoskin, M. The Cambridge concise history of astronomy. Cambridge: University Press. 1999.

    5. Aristotle. The caelo. Clarendon Press. 1966.

    6. Evans, J. The history and practice of ancient astronomy. Oxford: University Press. 1998.