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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.61 n.4 São Paulo  2009

     

    HQS

    QUADRINHOS ENTRARAM NA ESCOLA

     

     

     

    Há 50 anos, um repórter policial da Folha da Manhã se aventurou a mostrar algumas tirinhas que havia criado, com um cão e seu dono como personagens, e o jornal topou publicá-las. Bidu e Franjinha inauguravam ali a bem sucedida carreira do desenhista brasileiro Maurício de Souza. Naquele mesmo ano de 1959, outros personagens com seu cãozinho de estimação nasciam na França, sob a pena do ilustrador Albert Uderzo e do escritor René Goscinny, para ganhar o mundo: Asterix, o gaulês, seu amigo Obelix e o pequenino Ideafix. Além da data de criação, o que mais haveria em comum entre Asterix e a obra do criador da Turma da Mônica?

    Embora tenham trajetórias distintas, já que os personagens de Maurício saíram das tiras de jornais para as revistas apenas uma década depois, a Turma da Mônica teve milhões de exemplares vendidos e suas histórias foram traduzidas em diversos países, a exemplo do que aconteceu com as aventuras de Asterix. Ambas as criações, cada uma a seu modo, devem seu sucesso inicial a um trabalho de construção de uma identidade nacional. A Gália invadida pelo Império Romano, que enfrenta a resistência da pequena aldeia de Asterix e seus amigos nas histórias de Uderzo e Goscinny, corresponde ao atual território da França. O contato entre vencedores e vencidos representa a formação da cultura francesa. Já no Brasil, os personagens de Maurício surgiram como uma alternativa aos já consagrados da Disney, como Mickey e Tio Patinhas, que encarnam o american way of life. São crianças bem brasileiras que povoam as histórias da Turma da Mônica, e com as quais o público infantil daqui facilmente se identificou.

    O sucesso das criações brasileira e francesa seguiu o caminho que a Disney trilhou na indústria do entretenimento, ganhando as telas dos cinemas e se reproduzindo em jogos, brinquedos e parques temáticos. As semelhanças poderiam parar por aí, já que o formato das aventuras de Asterix é mais sofisticado e o preço é bem maior, ficando limitadas a 33 títulos, mesmo Uderzo tendo dado continuidade ao trabalho após a morte de Goscinny. Mas tanto as histórias dos gauleses quanto as da Turma da Mônica têm sido usadas como um recurso a mais em salas de aula brasileiras, e estudos recentes analisam o potencial de ambas no ensino de história nas escolas.

     

    VALORIZAÇÃO Selma de Fátima Bonifácio, que pesquisou o tema na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Paraná, observa que ainda há desconfiança em relação ao uso didático de histórias em quadrinhos (HQs), vistas até a primeira metade do século XX como um produto cultural inferior. Na década de 1960, porém, o interesse de intelectuais como Federico Fellini, Umberto Eco e Edgar Morin pelas HQs lançou um novo olhar sobre elas. "Hoje têm recebido um pouco mais de atenção, sendo objetos de análise e estudo em pesquisas acadêmicas e também no espaço escolar", afirma.

    No Brasil, embora se tenha tentado já nos anos 1940 e 1950 inserir as HQs à cultura de elite tradicionalmente ensinada nas escolas, com as versões em quadrinhos de clássicos das literaturas universal - como O corcunda de Notre Dame, de Vitor Hugo - e brasileira - como O guarani, de José de Alencar -, é também na década de 1960 que os quadrinhos começam a entrar nos livros didáticos brasileiros, na inovadora obra do professor de história Julierme de Abreu e Castro. E nos anos 1980, surgem em periódicos brasileiros estudos sobre o uso de HQs como Asterix em aulas de história.

    "Apesar de enfocar a Antiguidade, em determinados momentos ocorrem fusões cronológicas, como no álbum Asterix e os normandos, uma ponte entre história antiga e medieval", diz o historiador Johnni Langer, da Universidade Federal do Maranhão, outro incentivador da potencialidade das HQs no ensino. "Os estereótipos e anacronismos podem tanto ser trabalhados com alunos da 5ª série do fundamental quanto do ensino médio, especialmente os vinculados ao comportamento da figura do outro (romanos, escandinavos) em relação aos gauleses (franceses modernos)", explica. "O mais importante é fazer com que os alunos percebam a importância de refletir o que veem e, a partir disto, poder criar um entendimento sobre a história e suas possíveis re-interpretações. Não importa a faixa etária do estudante ou o nível de escolaridade. O que importa é o mecanismo de reflexão, tanto para o ensino fundamental quanto o médio", explica.

     

     

    Tanto Langer quanto Selma defendem a combinação do uso de HQs com outras fontes no ensino de história, o que não exclui uma visão crítica sobre elas. "Por serem veículos portadores de mensagens, representações e concepções de mundo, os quadrinhos possuem inúmeras possibilidades de articulação política e ideológica. Ao abordarem temas como cidadania, política e outros valores sociais, as histórias transmitem mensagens, que podem se aproximar do público leitor, na medida em que seus personagens, inseridos em determinados contextos, assumem posturas, defendem princípios, criticam sistemas", avalia Selma.

    Em seu estudo, ela analisou, entre outras obras, a coleção Você sabia?, lançada por Maurício de Souza a partir de 2003, e dividida em fascículos dedicados a temas da história do Brasil, como o descobrimento, a independência, a abolição dos escravos e a proclamação da República. Neles, os personagens de Maurício assumem os papéis de D. João VI, D. Pedro e Carlota Joaquina, ente outros. Selma observa as referências clássicas retomadas por Maurício em alguns fascículos e que poderiam ser usadas junto com as HQs nas aulas de história. "Ao lerem a obra quadrinizada de O descobrimento do Brasil, crianças e adolescentes passam a tomar contato com fontes escritas, como a Carta de Caminha, e iconográficas, como o quadro clássico de Victor Meirelles retratando a 1ª Missa no Brasil. Elas são didatizadas e transformadas para a linguagem dos quadrinhos, dentro da perspectiva e do estilo consagrado do quadrinista", aponta.

    Selma acrescenta, no entanto, que certas simplificações decorrentes da brevidade das narrativas em HQs devem ser consideradas pelo professor que usá-las como um suporte a mais no ensino. Ela dá como exemplo o fascículo de Maurício sobre a Abolição, que resume à assinatura da princesa Isabel o episódio da conquista da liberdade pelos escravos. Selma e Langer, contudo, concordam que é possível trabalhar com as HQs como algo muito além do mero entretenimento. "O professor não pode utilizar a HQ apenas como uma ilustração ou reforço para o conteúdo desenvolvido nas aulas, mas sim enfatizar a mesma como um instrumento de reflexão", afirma Langer. "Ela não é simplesmente uma obra de diversão ou passatempo, mas um produto social e histórico, portanto, com ideias e valores sobre o passado", conclui o historiador.

     

    Rodrigo Cunha