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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.62 n.1 São Paulo  2010

     

     

     

    50 ANOS

    Ver Brasília, viver em Brasília

     

    Brasília nasceu imponente, adulta, com um planejamento nunca antes visto para uma cidade brasileira. Foi concebida em termos definitivos, "feita para permanecer e traduzir, com dignidade, uma nova fase do Brasil, não de um país diferente, mas que continua voltado para o futuro. Enfim, sabe-se lá o que se tem pela frente". Estas palavras estão no discurso sobre o plano piloto da capital, proferidas em 1974 por Lúcio Costa, um dos autores dessa grande obra. Cinquenta anos depois de sua fundação, em 21 de abril de 1960, a cidade projetada por Oscar Niemeyer e Lucio Costa, ainda espanta e impressiona pelo projeto urbanístico e pela monumentalidade de edifícios como sua catedral ou o Palácio da Alvorada. Hoje, no entanto, o projeto é desafiado pelo crescimento populacional, pelo tráfego intenso de carros e pelo contraste gritante das cidades satélites, aquelas que ficam fora de Brasília e abrigam a maior parte de seus trabalhadores.

    "O futuro de uma cidade projetada não é uma incógnita na medida em que o projeto/plano é executado para que seja o que se quer dela no momento do projeto. No caso, os anos 1950. Uma cidade planejada poderia ter um desenvolvimento que exigiria adaptações ao longo do seu percurso, mas uma cidade projetada é algo que nasce no momento de sua inauguração", considera Regina Meyer, arquiteta e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP). "O plano piloto foi rigidamente projetado e realizado. O sistema viário e toda a infraestrutura, integralmente instalados. O futuro já estava ali em 1960. Não haveria mudanças. Esse é o drama de Brasília: uma cidade que nasceu com a sua imagem, forma e função adulta pré-definida". Regina, coordenadora do Laboratório de Urbanismo da Metrópole na USP, acrescenta que o presidente Juscelino Kubitschek queria uma cidade moderna e voltada exclusivamente à administração pública. Atividades econômicas seriam apenas de natureza terciária.

     

     

    NO MEIO DO NADA Em seu livro As curvas do tempo. Memórias (1999), Oscar Niemeyer conta que em 1956 o presidente Juscelino Kubitschek lhe fez o convite de construir uma capital moderna — "a mais bela capital deste mundo". No ano seguinte o projeto do plano piloto da nova cidade foi aprovado e os primeiros prédios começaram a ser construídos. Empregando um exército de trabalhadores e excedendo todas as metas orçamentárias, a transferência da capital do Rio de Janeiro para o Planalto Central se concretizou em apenas três anos e dez meses. Para Andrey Rosenthal Schlee, diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB), o cinquentenário da capital chega com muitos problemas, mas também com muitas soluções e acertos. "Antes de ser tratada como uma ideia impraticável, Brasília deve ser encarada como mais um exemplo do gigantesco processo de urbanização brasileiro, caracterizado, entre outras coisas, pela concentração de população nos centros urbanos e pela criação e construção de novas cidades praticamente do zero", diz.

    Em meados da década de 1950, o Brasil era um país predominantemente rural, com mais de 60% da população no campo. Com a industrialização promovida por JK, o cenário começou a mudar. O emprego nas grandes cidades aumentou, as pessoas passaram a migrar e a economia cresceu. O crescimento veio acompanhado de investimento governamental em estradas, visando à interiorização do "progresso" — o que envolvia a construção de Brasília. Ainda segundo Schlee, no Brasil, o processo de urbanização aparece já no início do século XX, com a construção e inauguração de Belo Horizonte, em 1897, reforçado com a construção de Goiânia, em 1937.

    FUNCIONALIDADE Para colocar de pé a nova cidade, Niemayer optou por se concentrar no projeto dos prédios, preferindo delegar o projeto urbanístico para outra pessoa. A opção foi lançar um concurso nacional que escolheria a melhor proposta. Na época todos expoentes da arquitetura moderna no Brasil, como Rino Levi, Villanova Artigas e Carlos Cascaldi, enviaram projetos que podem ser considerados aplicações dos ideais do urbanismo funcionalista, segundo Schlee. A escolha foi feita pela Companhia de Urbanização da Nova Capital (Novacap), de Lucio Costa, amigo próximo de Niemeyer. "Trata-se de um conceito que, segundo a lógica da arquitetura moderna, busca espaços que se assemelham a super quadras, em um desenho ordenado e planejado, em oposição à informalidade da organização urbana de uma cidade como São Paulo, por exemplo. O resultado, em boa parte dos casos, são espaços urbanos altamente dependentes do automóvel com grandes bolsões de estacionamento. Grandes prédios distantes entre si são cercados por espaços livres desqualificados, cobertos por vegetação", acrescenta. Uma omissão crucial no edital que determinava as regras para elaboração do projeto piloto da nova cidade era que não se previa qual seria sua população. "Em resposta às consultas dos profissionais que concorriam no concurso, Niemeyer estabeleceu uma densidade máxima prevista de 500 mil habitantes; 50 anos depois, 2,5 milhões de pessoas vivem na capital", conta Schlee.

    UMA CIDADE PARA O CARRO Com infraestrutura viária invejável, no entanto, o mal das cidades brasileiras foi lentamente se instalando também. "Ali fica claro que um plano tem que pensar em outras variáveis além da dimensão das avenidas. O dado básico seria o transporte público", afirma Regina. Para ela, a ausência do transporte público de massa no plano proposto; o excesso de desenho do sistema viário, em detrimento do seu modo de funcionamento, criou uma cidade inteiramente cativa do automóvel. É preciso lembrar que a relação entre população nacional versus posse de automóvel particular na década de 1950, estava prestes a se alterar profundamente com a chegada da indústria automobilística no Brasil, pelas mãos do mesmo governo que criava Brasília. De acordo com a pesquisadora, a ausência de uma política de transporte público de massa em Brasília, associada à presença da classe trabalhadora vivendo fora do plano piloto e à produção de automóveis a preços mais acessíveis para boa parte da classe média, provocou um rápido esgotamento do sistema viário das grandes cidades, inclusive o brasiliense. "Não há a menor dúvida, o pedestre em Brasília é um indivíduo renegado de forma muito explícita. A cidade cujo desenho nasceu do cruzamento dos eixos rodoviários expressos não é em momento algum propícia ao pedestre", diz. O pedestre em Brasília é quase sempre um indivíduo que além de não possuir um carro, também não mora nas superquadras do plano piloto. É uma pessoa "de fora" e de outra classe social. Percorrer longos trajetos a pé é uma atividade dos que trabalham no comércio local, nas residências e outros serviços menores. São eles que usam o precário sistema de transporte público da cidade.

    O principal gargalo está na nova condição metropolitana que Brasília adquiriu. Isso significa que o plano piloto e as cidades satélites (Sobradinho, Gama, Ceilândia, Núcleo Bandeirante, Cruzeiro, dentre outras) formam um espaço contínuo (metropolitano) muito desigual do ponto de vista social e econômico. Esse é um atributo de todas as grandes cidades brasileiras que não poupou Brasília.

     

    Patrícia Mariuzzo