SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.62 issue1 author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

    Related links

    • On index processCited by Google
    • Have no similar articlesSimilars in SciELO

    Share


    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.62 no.1 São Paulo  2010

     

     

     

    RESENHA

    Darwin, homem moral

     

    No ano em que se comemorou o bicentenário do nascimento de Charles Darwin e os 150 anos da publicação de sua obra mais famosa — A origem das espécies —, surgiu uma nova faceta do personagem conhecido como o pai da evolução. Em A causa sagrada de Darwin (Editora Record, 668p., 2009), Adrian Desmond e James Moore apresentam um homem movido por sensibilidade, por uma arraigada ética moral e pelo horror à escravidão. O choque de ouvir os gritos, em Pernambuco, de um escravo sendo torturado teria sido o principal impulso para que o jovem britânico desenvolvesse e publicasse a argumentação científica que organiza a vida numa árvore genealógica, e assim defende a igualdade entre todos os seres vivos, humanos inclusive.

    O novo livro é a resposta a uma pergunta que, segundo James Moore, tinha ficado pendente na extensa biografia que a dupla escreveu e que foi publicada no Brasil em 1995: por que Darwin teria perseguido uma causa tão perigosa, a da ancestralidade comum entre todos os seres vivos, que corria o risco de arruinar sua vida pessoal e sua reputação profissional?

     

     

    Era, argumentam, uma causa profundamente importante para Darwin, que permeou toda a sua vida. Ele foi educado por uma família que defendia os direitos humanos e estudou na Universidade de Cambridge, onde na mesma época estudavam e lecionavam antiescravagistas notórios. Ele viveu numa Inglaterra que, na primeira metade do século XIX, fervilhava em protestos contra a escravidão. Moore percorreu registros de petições antiescravagistas — dezenas de milhares de nomes exercitando a democracia incipiente —, além de jornais da época, e concluiu que os protestos contra a escravidão foram um dos maiores movimentos morais daquele país, um experimento em democracia antes que ela existisse como é hoje.

    Darwin conheceu negros bem-sucedidos na Inglaterra, como um ator de sucesso que fazia vários papéis no teatro da cidade onde ele vivia, conviveu com pessoas das mais diversas raças em suas viagens pelo mundo e presenciou cenas que o marcaram para o resto da vida. A mais notória aconteceu em Pernambuco, já no fim da passagem do navio de exploração Beagle pelo Brasil: "Por trás das paredes, invisíveis, inalcançáveis, mas horrivelmente reais, vinham 'os mais lamentáveis gemidos' e gritos. (...) A raiva e a frustração deixaram-no se sentindo 'impotente como uma criança' — incapaz de ajudar a si mesmo ou a uma criatura inocente (...). Essa emoção o perseguiria para o resto da vida. Um 'grito distante' sempre traria de volta as lembranças daquele escravo torturado".

    A cicatriz deixada pela experiência reaparece com força no ataque violento que Darwin fez à escravatura no texto revisto do Diário do Beagle publicado em 1845. E, de acordo com a tese de Desmond e Moore, desembocou no corpo teórico que ele legou à história do pensamento científico. Ele não revelou tudo em A origem das espécies, já bombástico demais para tratar também da questão humana, que deixou para tratar com cuidado mais tarde. Como não fazia nada de maneira leviana ou incompleta, Darwin reuniu todos os argumentos possíveis para rebater quaisquer objeções possíveis e publicou, em 1871, A origem do homem e a seleção sexual (The descent of man, and selection in relation to sex).

    É um livro menos lido e menos mencionado do que o tomo inaugural da seleção natural, em parte por ser imenso e aparentemente desconexo. A parte de seleção sexual, de acordo com Moore, é quase um catálogo das diferenças entre machos e fêmeas, informações aparentemente obscuras sobre animais de todos os tipos. A surpresa é justamente mostrar que está aí a origem do homem. Entre animais, é comum que os machos sejam maiores e mais vistosos, pois precisam atrair a atenção das fêmeas que escolhem seus parceiros com critérios rigorosos. Para Darwin, a superioridade masculina era um fato da natureza — que justificava que, homem de seu tempo, não apoiasse o direito das mulheres ao voto e não tenha mandado suas filhas para a escola.

    Mas, no que diz respeito à seleção sexual, para ele a inteligência humana inverteu as regras do jogo. São as mulheres que se enfeitam, na Inglaterra de Darwin com chapéus e broches de penas e até aves exóticas inteiras e, hoje, com lenços, joias e roupas atraentes, sem falar em sorrisos e comportamentos sedutores. É o jogo da beleza, que embora não ajude ninguém no embate da seleção natural — não dá forças para brigar, nem maior capacidade de encontrar alimento — é o que aumenta as chances de deixar descendentes na próxima geração, por meio da sedução. Ele observava a natureza das sociedades, inclusive o comportamento das pessoas, com a mesma curiosidade e o mesmo método com que buscava entender comunidades de aves ou besouros em ambientes silvestres remotos.

    A maneira uniforme como ele discute todos os organismos, dos crustáceos aos humanos, deixa bem claro que, para Darwin, todos os seres vivos têm uma origem comum e fazem parte de uma mesma árvore genealógica. E o mesmo vale para as raças humanas. Assim como não há distinções rígidas entre uma espécie e outra, as raças também se encaixam num contínuo de variação. Espécies não seriam mais do que raças bem definidas. Darwin acreditava que as raças humanas poderiam estar no caminho de se tornarem espécies distintas, caso permanecessem isoladas a ponto de passar a ver pessoas diferentes com repugnância, em vez de atração sexual. Se isso acontecesse, seria possível que uma raça viesse a eliminar a outra. E os brancos, "com sua civilização mais complexa e seus cérebros mais desenvolvidos", provavelmente eliminariam os negros. É parte do jogo da natureza, assim como espécies naturalmente se extinguem nos embates evolutivos. Além disso, o naturalista inglês era, afinal, um homem de seu tempo e não conseguia sair completamente dos preconceitos vigentes.

    A tese de Desmond e Moore é ousada e ainda não terminou de ser testada pela crítica. Moore considera possível que algumas pessoas contestem a tese de que a motivação de Darwin para desenvolver a teoria da evolução era, sobretudo, moral, mas pelo menos elas verão que o livro está recheado de fatos interessantes — a mesma crítica feita ao Origem das espécies na época de sua publicação. De toda maneira, nossa visão de Charles Darwin nunca mais será a mesma com essas novas revelações.

     

    Maria Guimarães