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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.62 n.1 São Paulo  2010

     

     

    JARDINS BOTÂNICOS: VALORES ESTRATÉGICOS ECOLÓGICOS E ECONÔMICOS

    Maurício de Carvalho Amazonas

     

    O meio ambiente e os ecossistemas possuem valor econômico. Essa é uma percepção já há tempos em voga e reconhecida, aceita e buscada por diferentes setores da sociedade contemporânea. É de igual reconhecimento o fato de que a degradação das condições ambientais e ecossistêmicas decorre, em grande parte, da atividade econômica. A partir da emergência da problemática ambiental enquanto questão, nos anos 1960, e sua progressiva incorporação às agendas de políticas, gestão e entendimentos, nos âmbitos nacionais e supranacionais, se tornou tarefa necessária encontrar os valores econômicos dos bens e serviços ambientais e sua incorporação na lógica da atividade econômica, visando estabelecer trajetórias de desenvolvimento compatíveis com a sustentabilidade social e ambiental. Todavia, a forma como a teoria econômica convencional compreende o papel do meio ambiente e a forma de se apreender tais valores é, em grande medida, reducionista frente o papel desempenhado pelos ecossistemas e recursos ambientais, apresentando amarras e dificuldades que impedem uma leitura mais sistêmica e abrangente das relações entre economia e meio ambiente, restringindo-se a aplicações específicas e localizadas.

    A linha de raciocínio neoclássica acerca da natureza do objeto em questão e da forma metodológica de tratá-lo, embora dominante, não é, todavia, consenso sequer para as questões econômicas em geral, quanto mais para aquelas que envolvem os recursos naturais e ecossistêmicos, cujos custos de sua utilização econômica são repassados para os segmentos mais desfavorecidos e para as gerações futuras. Seus valores são sistêmicos, de efeitos dinâmicos e estratégicos, de modo que tomá-los pela simples individualização e a simples aditividade de seus "preços" implica uma visão fragmentada e parcial de seus valores para a economia. Muitas vezes, será abdicando-se de buscar "o valor" numérico e monetário de dada área, e buscando compreender o sentido histórico de sua contribuição, que se poderá melhor apreender o seu sentido valorativo econômico. Nesse ensejo, lição histórica nos dão os jardins botânicos.

    No campo de conhecimento definido como economia do meio ambiente, um dos principais temas consiste na identificação e quantificação do papel econômico representado pelos recursos naturais do ambiente, tanto naquilo que aportam enquanto insumos alimentadores dos processos produtivos econômicos, quanto no que são afetados pelos degradantes sub-produtos resultantes desses processos. Assim, a temática da valoração ambiental adquire papel e sentido centrais em tal campo disciplinar.

    Dentre os elementos e problemas ambientais passíveis de valoração, a identificação dos valores de ecossistemas naturais e áreas protegidas constitui um dos mais árduos e controversos desafios. A economia ambiental, construída no seio da economia convencional neoclássica, trata a valoração ambiental a partir da mesma base teórico-metodológica convencional com que entende os preços de mercado.

    De fundamentação utilitarista na compreensão do objeto e individualista no método, a economia neoclássica constrói-se sobre uma visão ontológica microeconômica onde o valor econômico das coisas é dado pelo sistema de preços de mercado, constituídos, de um lado, a partir das condições da oferta do referido bem ou serviço, ou seja, de sua escassez relativa, seus custos de obtenção/produção e, de outro lado, das condições de demanda por esse bem ou serviço, a qual corresponde ontologicamente às "utilidades" que os indivíduos obterão ao consumir/utilizar tal bem. Na franca tradição utilitarista e individualista construída a partir de Jeremy Bentham e John Stuart Mill (1;2;3), "utilidade" entendida como o quanto os indivíduos se sentem mais "felizes" e/ou mais "satisfeitos", ou ainda, o quanto individualmente se sentem com maior "bem-estar", nos termos posteriormente postos pela welfare economics (teoria do bem-estar) desenvolvida a partir de Pigou em 1920 (4). Modernamente, a "utilidade" é vista a partir das "preferências" dos indivíduos consumidores, expressas no quanto estes estão "dispostos a pagar" monetariamente por esse ou aquele bem ou serviço.

    No que toca os bens e serviços ambientais, aplica-se o mesmo raciocínio, porém entendendo que, como estes não têm um "preço" de mercado efetivamente, por se tratarem de bens públicos, o problema então se resume a entender essa ausência como uma lacuna ou "falha do mercado" em lhe atribuir seus "verdadeiros" valores, cabendo então identificar quais seriam esses valores, ou preços, que os bens ou serviços ambientais "teriam" caso tais mercados existissem. Como os elementos ambientais possuem valores econômicos a despeito de não terem preços de mercado, eles assim constituem externalidades, ou seja, valores transferidos, externalizados, para a sociedade: externalidade negativa no caso de danos ambientais, custos sociais, portanto; ou externalidades positivas no caso de bens e serviços ambientais obtidos gratuitamente, benefícios sociais, portanto. Com isso, os métodos neoclássicos se voltam a identificar esses "valores ambientais" específicos, microeconomicamente.

    E o todo? A essa fundamentação utilitarista, agrega-se o individualismo metodológico. O todo é a soma das partes e o valor global de um bem ou serviço ambiental se dará agregando-se os valores parcialmente atribuídos por cada indivíduo envolvido e a cada componente valorado, correspondentes às suas "preferências" ou "disposição a pagar".

    Muito embora seja clara e atraente ao bom senso a ideia de que danos ambientais e bens/serviços ambientais são respectivamente custos e benefícios sociais, o mesmo não se passa no momento em que se busca definir e mensurar tais custos e benefícios ambientais pela visão neoclássica. Se, por um lado, a economia neoclássica entende que o mercado "falha" em revelar os "valores ambientais" sendo, portanto, necessário a intervenção do poder público para fazê-lo, por outro lado, não abandona o sentido ontológico dos valores de mercado, em geral, para definir os valores ambientais. Ou seja, um bem ou serviço ambiental vale o quanto os agentes econômicos individualmente sentem mais "utilidade" e, portanto, o quão mais estes estão dispostos a pagar monetariamente por ele (ou, no caso de já terem direitos de propriedade sobre ele, o quanto estariam dispostos a receber por abrir mão dele).

    Não é difícil perceber a limitação dessa visão utilitarista e individualista. Definir o valor de um bem ou serviço ambiental em termos do quanto as pessoas individualmente estariam "dispostas a pagar" por ele desconsidera, primeiro, que o conhecimento dos indivíduos é limitado, não considerando elementos complexos e sistêmicos que a ciência luta por compreender; segundo, que os indivíduos não são necessariamente altruístas, e que a manifestação de sua "utilidades e "disposição a pagar" diz respeito ao bem-estar percebido em sua perspectiva individual, não correspondendo ao bem-estar de um ponto de vista coletivo e sistêmico, que ensejasse como princípio a igualdade e justiça entre os diferentes indivíduos, coletividades, nações e gerações, especialmente as gerações futuras; terceiro, ainda que os indivíduos fossem perfeitamente conhecedores e perfeitamente altruístas, a abordagem neoclássica é limitada pois assume que tudo o que possui valor é comutável, intercambiável, compensável, ou seja, que o julgamento das coisas é do tipo compensatório, e que, portanto, tudo pode ser traduzido no numerário monetário como equivalente geral, que todos os bens e serviços são vistos como tendo um preço pelo qual podem ser trocados; não se apercebe que em meio ambiente há valores incomensuráveis ou insubstituíveis que correspondem a "julgamentos não compensatórios", i.e., coisas cujo valor não pode ser compensado ou trocado por algum equivalente (5;6) .

    Na formulação convencional, um ecossistema tem o seu valor econômico total dado pela soma de seu valor de uso (direto, indireto e de opção) e seu valor de não uso. O valor de uso direto corresponde aos valores derivados do uso econômico direto de seus recursos, como o uso extrativista de produtos florestais madeireiros e não-madeireiros. O valor de uso indireto consiste no valor econômico gerado na forma dos serviços ambientais, como o provimento de mananciais de água, estabilização microclimática, espécies polinizadoras, etc, que seriam perdidos com a remoção do ecossistema. O valor de opção consiste em valores de uso direto ou indireto cuja realização dar-se-á em tempo futuro, e que devem ser computados para os cálculos presentes, como, por exemplo, valores de novos produtos a serem desenvolvidos a partir da biodiversidade, como novos fármacos, alimentos e outros bioprodutos e bioprocessos. O valor de não uso, também identificado como valor de existência, corresponde ao valor que esse ecossistema possuiria "em si", ou seja, o valor advindo apenas do fato de existir, independentemente de qualquer uso direto ou indireto, presente ou futuro, que esse oferecesse.

    É, sim, razoável que os valores de uso e seus correspondentes métodos de valoração, uma vez que referidos a valores econômicos que se manifestam concretamente, no mínimo estes, devam ser considerados (embora não captem o conjunto valorativo de todo o sistema). Ademais, nada obriga que esses sejam interpretados enquanto "utilidades" abstratas que lhe dariam conteúdo, muito embora assim a visão neoclássica os interprete.

    Todavia, o aspecto mais delicado e controverso está nos valores de não-uso ou valor de existência. Muito embora seja, de fato, tocante ao bom senso e ao sentimento ético de que as formas de vida, sejam elas individuais ou estruturadas como ecossistemas, possuem valor intrínseco, por serem o que são, por existirem enquanto vida, no entanto, é absolutamente questionável o modo como a visão neoclássica procura definir e estabelecer substantivamente tais valores de existência. Paradoxalmente, o valor de existência que, por princípio, deveria ser aquele intrínseco a dado elemento natural, por sua existência em si mesmo, portanto objetivo e independente de qualquer utilização, é, contudo, justamente aquele tratado da forma mais radical pelo subjetivismo utilitarista e individualista da economia neoclássica. Pura e simplesmente, a "mensuração" de tais valores de existência é feita interrogando-se os indivíduos, por meio de questionários (método de valoração contingente) sobre sua utilidade, isto é, o quanto esses estariam "dispostos a pagar" para que certo elemento ambiental "exista". Registrados esses valores monetários, subjetivamente e hipoteticamente declarados pelos indivíduos, os dados são então compilados e extrapolados para o conjunto da população, e ponto. E eis aí o valor da natureza "em si mesma", na visão neoclássica.

     

     

    APLICAÇÕES DA VALORAÇÃO ECOLÓGICA NEOCLÁSSICA Nos estudos de valoração de ecossistemas e áreas protegidas, embora vários desenvolvimentos de conceitos e métodos no campo da economia ecológica (7) venham sendo realizados, buscando-se análises sistêmicas de balanços e fluxos ecossistêmicos (5;8;9), há um grande predomínio da abordagem neoclássica. May, Veiga Neto e Pozo apontam 56 estudos realizados no Brasil, até 2000, relativos à valoração econômica da biodiversidade, bastante dispersos em biomas, objeto e método, e poucos em áreas protegidas (10). Posteriormente, novos trabalhos sobre áreas protegidas foram realizados (11;12;13). Entretanto, a valoração de ecossistemas e áreas protegidas revela ampla utilização do método de valoração contingente, dado o anseio de se encontrar seus valores de existências.

    É desejável e possível a identificação e quantificação de valores ambientais relativos a custos ou benefícios específicos gerados a esse ou àquele segmento definido da sociedade. Tais valores, uma vez concretamente existentes, cabem então ser administrados pelo poder público para que, em termos éticos de justiça, seja promovido o pagamento ou recebimento por eles. Todavia, tais formas de valoração não são suficientes para se identificar a efetiva contribuição de determinado recurso ecológico ou ambiental na perspectiva sistêmica e evolutiva da dinâmica do desenvolvimento econômico. A economia, assim como a ecologia, é um sistema complexo, cujo funcionamento estabelece condições, conexões e resultantes que, de longe, extrapolam a simples agregação dos comportamentos dos indivíduos consumidores e produtores. Não é recente e sim bem conhecida entre os economistas a denúncia dessa "falácia da composição", especialmente a partir da obra de Keynes, muito embora frequentemente desconsiderada pelo mainstream econômico.

    A análise de fenômenos sistêmicos requer visão ontológica e procedimentos metodológicos sistêmicos. Embora a economia ecológica seja um caminho que busca a construção de abordagens analíticas sistêmicas, um caminho complementar pode ser encontrado com o método histórico, por meio do qual o sentido econômico dos elementos ecológicos nas trajetórias de desenvolvimento pode ser encontrado. Na recuperação histórica do desenvolvimento do país, a própria natureza estratégica do desenvolvimento econômico possuía corte com fundamentos ecológicos. E, nesse cenário, os jardins botânicos historicamente ocuparam uma importância estratégica econômica e geopolítica.

    A história econômica do Brasil se encontra intimamente associada à sua história ecológica e territorial: desde o ciclo do pau-brasil, estritamente ligado aos ecossistemas originais de floresta, passando pela ocupação da terra pelos canaviais, a interiorização bandeirante, as drogas do sertão e a borracha na Amazônia, a expansão dos cafezais, chegando-se, já na moderna era industrial, o país tendo ainda fortes vetores de desenvolvimento econômico apoiados nas suas condições ecológico-territoriais, de corte primário-exportador ou "recomoditizado", como com a expansão da soja e do gado e, mais recentemente, com a cana e os biocombustíveis.

    Todavia, em nossa fase pré-republicana e pré-industrial, nítida se fazia a face ecológica das estratégias de desenvolvimento econômico. A expansão ultramarina, que fez com que Portugal e Espanha fossem os primeiros a se lançar além-mar, chegando a descobrir o "novo mundo" e tornarem-se as grandes potências de então, motivou-se exatamente pela busca por determinadas plantas, as especiarias. A lógica da colonização, do Oriente e do Novo Mundo, passa a ser então a do controle econômico, político e ecológico de espécies exóticas à Europa e portadoras de ampla aceitação e demanda econômica nesse continente. Diferentes medidas eram implementadas como mecanismos de controle, como o estímulo ao transporte, plantio e comercialização de determinadas espécies, assim como a proibição de outras. Dentre as iniciativas mais estratégicas, encontrou-se a criação dos jardins botânicos, com destaque ao Jardim Botânico D'Ajuda, em Portugal. À semelhança da importância estratégica que hoje instituições de pesquisa de ponta representam para o desenvolvimento econômico, os jardins botânicos foram criados, portando, com o intuito de constituir amplas áreas de vegetação que abrigassem e preservassem espécies autóctones, assim como espécies exóticas de interesse econômico, permitindo desenvolver o estudo, a descrição, a domesticação, o manejo e a aclimatação dessas espécies em novos ambientes e regiões.

    Segundo o historiador Warren Dean (14) a introdução de espécies exóticas no Brasil se inicia desde os primeiros tempos da colonização, trazendo espécies já aclimatadas em Portugal ou suas ilhas atlânticas. As espécies introduzidas de maior interesse comercial deram a sustentação aos séculos de colonização que se sucederam, com destaque à cana e aos couros. Destaca que a transferência de plantas e animais domesticados constituía-se, assim, em uma das mais poderosas armas do imperialismo lusitano, atuando como elemento de "conquista de culturas", onde os elementos culturais constituíam mecanismos de controle das sociedades colonizadas (14). Na história brasileira, o desenvolvimento de novas capacidades agrícolas através da domesticação de espécies nativas e de aclimatação de espécies exóticas foi um fator determinante do posicionamento da colônia e, mais tarde, do império brasileiro na economia mundial. Essa estratégia de transferência de espécies entre as colônias portuguesas e outras europeias representou um processo de "cosmopolitização das floras e faunas terrestres" e de "universalização do domínio sobre todos os ecossistemas terrestres". No caso do Brasil, essa cosmopolitização foi de natureza pan-tropical, uma vez que as espécies aqui introduzidas eram geralmente de origem africana ou sul-asiática (14).

    PODER ECONÔMICO E DOMÍNIO DE ESPÉCIES O esforço metropolitano inicial em aclimatar espécies de especiarias orientais no Brasil não teve efeitos significativos, por dois motivos. Primeiro, pelo fato de que a colônia brasileira se encontrava estruturada com base em produtos de alta rentabilidade, como a cana e depois o ouro. Em segundo lugar, pelo fato de que a política de exclusivo metropolitano, se contentando com tais produtos, ao mesmo tempo procurava garantir e prolongar a rentabilidade de suas colônias no Oriente, impedindo que outras colônias suas pudessem ter acesso e cultivo dos mesmos produtos orientais.

     

     

    A invasão holandesa no Nordeste marca nova fase, com forte presença de estudiosos naturalistas e com a decisão de plantar especiarias asiáticas no Brasil, desafiando a Companhia das Índias Orientais (14). A partir de 1671, a política portuguesa acerca das especiarias asiáticas se flexibiliza, liberando a comercialização do gengibre do Brasil para a metrópole e trazendo de Goa sementes de cravo, pimenta, noz-moscada e mesmo gengibre. Todavia, os esforços de transferir e intensificar o comércio de especiarias asiáticas no Brasil foi moroso e se perdeu gradativamente com a descoberta do ouro (14).

    Contudo, no início do século XVIII, surgem novos importantes instrumentos para o intercâmbio de espécies no processo de concorrência comercial colonial: os jardins botânicos e os herbários, que permitiam estudos comparativos de inúmeras espécies de diversas regiões, o intercâmbio de plantas entre as colônias e sua aclimatação, aumentando consideravelmente a geração, sistematização e transferência de informação e conhecimento com base científica sobre as plantas e suas técnicas culturais (14;15).

    No período pombalino, com a penetração de valores científicos da ilustração francesa, deu-se impulso à emergência dos naturalistas em Portugal, com forte destaque à atuação do botânico Domenico Vandelli, que formou a primeira geração de naturalistas e dirigiu o Real Jardim Botânico D'Ajuda. No Brasil foram fundados alguns hortos ou jardins botânicos (14;15). Com os jardins botânicos, estabeleceu-se, ao longo do século XVIII, coordenação à investigação e transferências de diferentes espécies como índigo, pimenta, canela, fruta-pão, o cravo, cana caiena, e o bicho-da-seda e a cochonilha, destacando novas remessas para o Brasil de canelas, acompanhadas de memoriais científicos, capim colonião, teca da Índia e tabaco, produção do arroz, do trigo, do cânhamo, amostragem e indicação de usos de madeiras nativas (14).

    Esse quadro viria ainda a ter um grande impulso com a vinda da família real, em 1808. Com a nova condição de reino unido, a estratégia geopolítica e econômica para a terra brasilis inflexiona, voltando-se na direção da constituição de uma economia autônoma. Tal autonomia econômica (que depois desembocaria no processo de autonomia política do país) se desenha de imediato com a "abertura dos portos" (autonomia comercial), a criação do Banco do Brasil (autonomia financeira) e a criação do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, como um elemento de autonomia produtiva.

    Com o emergir das ciências naturais, o naturalismo iluminista abre-se no Brasil junto com a chegada da corte e a vinda de naturalistas estrangeiros, os "viajantes". Assim, a botânica, enquanto emergente ciência e arte iluminista, aflora no Brasil enquanto componente estratégico de política econômica. A fundação do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, como um jardim de aclimação, deu-se com a finalidade de introduzir e aclimatar novas espécies (artigo de Peixoto e Guedes-Bruni, página 32). Todavia, a política de aclimação de espécies, que resultou em uma horticultura muito mais diversificada, não trouxe mudanças profundas na pauta de exportações. Gengibre, noz-moscada, cravo, índigo, chá e cana caiena, potencialmente promissores, chegaram a ser produzidos e comercializados, porém com pouco êxito. Curiosamente, o produto que veio a ser o principal produto da pauta de exportação, o café, não foi objeto de grandes atenções oficiais para sua introdução e aclimatação, sendo inicialmente um produto comercializado em pequena escala, apenas posteriormente adquirindo expressão (14;15).

    Dean identifica, ainda, sem perquirir suas razões, que o desenvolvimento das ciências botânicas no Brasil como forma de controle ecológico sobre atividades econômicas esteve associado ao projeto imperial mercantilista português, arrefecendo com o desligamento do Brasil. E que "(...) a transferência de espécies exóticas e a domesticação de espécies nativas são evidentemente atividades que apresentam significados diferentes dentro de contextos mercantilistas e liberais (...)" (14).

    De fato, o fomento do desenvolvimento científico, uma vez que de cunho estratégico e imerso em contabilidades que não se restringem a sinais de mercado dados em horizontes de curto prazo, requer a centralidade da ação do Estado. A política colonial mercantilista, com decisões centradas na metrópole, ensejou tal tipo de iniciativas, com impulso ainda maior quando o Brasil foi alçado à condição de igualdade à metrópole e sede do reino. Contudo, a desarticulação das estruturas do antigo sistema colonial mercantilista provocou a progressiva subsunção à lógica econômica dirigida pelo mercado liberalizado, perdendo o Estado a preponderância de seu papel, que passa a ser dividido com os detentores do capital comercial e financeiro privados.

    Na Europa, o século XIX assiste à consolidação do imperialismo britânico e de seu liberalismo. Com eles, consolida-se também o papel dos jardins botânicos da Inglaterra enquanto potência colonizadora. Os jardins botânicos reais britânicos, com destaque ao Kew Gardens (artigo de Simon Mayo, página 38), se consolidam como jardins botânicos de excelência e de papel estratégico em sua expansão colonial (16). Vale lembrar, foi o próprio Kew que, entre outras iniciativas, financiou em 1876 o clássico roubo no Brasil de 70.000 sementes de seringueira por Henry Wickham, que após aclimatadas para as colônias britânicas na Ásia produziram os grandes plantios comerciais que trouxeram fabulosas riquezas ao império britânico e arruinaram a economia da borracha na Amazônia (17). Por sua vez, no Brasil, a recente ex-colônia do decadente império lusitano tem sua política econômica delimitada pelas forças de mercado dos produtos mais importantes da pauta de exportações, destacadamente o café, perdendo sua capacidade de fomento do desenvolvimento científico.

    Os caminhos econômicos do desenvolvimento brasileiro se afastaram da condição de ter os ecossistemas naturais como a principal forma de riqueza imediata e direta. A visão de "riqueza natural" passa a não mais tomar os ecossistemas como um todo, mas apenas as condições favoráveis de clima, hidrológicas e de fertilidade da terra para a produção de monoculturas de ampla aceitação no mercado externo. Os ecossistemas naturais, especialmente florestais, passam a ser vistos como empecilho a ser removido, o "mato a ser limpo". Com a moderna sociedade industrial, o processo se aprofunda ainda mais, uma vez que a produção rural passa a guardar cada vez menor independência, estabelecendo relações de encadeamento e complementaridade com a atividade industrial.

    Todavia, o imaginário dos ecossistemas naturais enquanto manancial de riqueza jamais se perdeu. E não sem motivo. Ainda que não de forma direta e imediata, ainda que sem gerar receitas a quem os detivesse, a "riqueza", porém, ainda estava lá. Tal percepção, para muito além de simbólica, adquire aceitação e compreensão crescente com a emergência da questão ambiental nos anos 1960-1970, chegando aos dias atuais com o desafio de se identificar, quantificar e realizar os valores econômicos dos ecossistemas.

    Os ecossistemas naturais são portadores de bens e serviços inúmeros que, por serem bens públicos, repousaram sempre sob a veste de "gratuitos" e, portanto, sem valores de mercado imediatos. Dentre os bens de ecossistemas florestais, apesar de públicos em sua origem, a dominação particular de seu acesso sempre fez com que a madeira, a borracha, a castanha e outros bens de valor comercial tenham tido preços de mercado.

    Todavia, novas modalidades de bens e serviços florestais vêm sendo reconhecidas e seus valores perseguidos. A explosão tecnológica e de diversificação dos mercados contemporâneos faz com que recursos genéticos – especialmente produtos florestais não-madeireiros – até há pouco de uso desconhecido, ganhem enorme importância para a produção de fármacos, alimentos e nutrientes, cosméticos, reagentes para indústria química, dentre inúmeros possíveis outros usos. De outro lado, a crescente compreensão do equilíbrio ecológico leva a que sejam reconhecidas inúmeras funções ecossistêmicas vitais para o bem-estar humano, designadas por serviços ambientais, que se encontram ameaçadas pela expansão econômica desregulada e que devem ser sustentadas.

    Nesse sentido, a conservação de ecossistemas vem paulatinamente se reencontrando com sua importância enquanto elemento de um desenvolvimento humano sustentável, e consequentemente se reencontrando com o seu valor. Para além de exercícios de valoração monetária, cabe compreender as razões que provocam a sub-valorização da conservação dos ecossistemas e estabelecer estratégias institucionais e técnicas que alavanquem sua valorização e viabilização econômica.

    Reabre-se então importante papel estratégico potencial a ser cumprido pelas unidades que realizam conservação in situ e ex situ. Nesse contexto, os jardins botânicos voltam a ter um potencial papel econômico na sociedade contemporânea.

    OS NOVOS POTENCIAIS ECONÔMICOS DOS JARDINS BOTÂNICOS A atividade da conservação in situ historicamente tem sua economia sub-valorada, por atributos que fazem com que seu uso seja pouco atrativo em termos de rentabilidade de mercado, tornando-se assim uma tarefa pública. Dentre esses atributos, destacam-se a forte incerteza e desconhecimento acerca do potencial econômico futuro dos bancos genéticos dos ecossistemas preservados, o que torna a conservação atividade de alto risco, sendo mais atraente ao interesse privado que sejam conservados pelo poder público e apenas transferidos para formas privadas de conservação ex situ quando demonstrada sua viabilidade econômica. Por contraste, a conservação ex situ lida com espécies de potencial valor econômico, transitando-as da condição de bens públicos para bens de interesse privado de mercado. Nesse sentido, Griffith (18) chama a atenção ao fato de que a valorização da conservação in situ é alavancada por atividades de conservação ex situ, e vice-versa, sendo, portanto, complementares.

    No arranjo normativo e científico brasileiro de áreas de preservação ecossistêmica, os jardins botânicos possuem atributos sistematizados na Resolução Conama 266, amparados no Constituição Federal, art. 255, e na Convenção para a Diversidade Biológica (19) que lhes distinguem de Unidades de Conservação. Primeiro, por serem entidades tipicamente de pesquisa; segundo, pela liberdade científica que possuem em realizar investigação na interface entre a conservação in situ e ex situ.

    O ramo de conhecimento recente denominado por "ecologia molecular" vem justamente buscar compreender como as características moleculares das espécies se comportam e se alteram em diferentes condições ecossistêmicas, buscando identificar as variáveis que melhor propiciem a produção de princípios ativos e outras características de interesse econômico. Tal frente de interesse e investigação, a bioprospecção, move atualmente vultuosos interesses econômicos e, não sem razão, o governo brasileiro criou em 1998 o programa Programa Brasileiro de Ecologia Molecular para o Uso Sustentável da Biodiversidade da Amazônia (Probem), o qual contudo não teve o andamento inicialmente esperado em virtude da sensibilidade que a questão da bioprospecção representa em termos de direitos de propriedade sobre a biodiversidade, agravado ainda mais pelo conflito gerado em torno de um grande contrato firmado, e em seguida suspenso, entre a Organização Social Bioamazônia e a empresa Novartis Pharma (20;21;22;23).

    Em que pese os esforços realizados no âmbito do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (Cgen), a lacuna normativa e de iniciativas de política pública para a bioprospecção abre uma janela de oportunidade para que novas definições sejam construídas, tendo-se como centro as instituições públicas de pesquisa comprometidas com a conservação da biodiversidade. Um novo quadro normativo e político é requerido para a problemática e esse papel de destaque, seguramente, deverá caber aos jardins botânicos. Isso, desde que correspondentemente estruturados e aparelhados (com ampliação de seu marco normativo para além da Resolução 266) para a ação nesse campo onde a conservação da biodiversidade se reencontra com seu uso econômico, porém com toda a aridez do choque entre interesses conservacionistas, científicos e econômicos.

     

    Maurício de Carvalho Amazonas é professor adjunto do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (CDS/UnB).

     

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Bentham, J. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. Abril Cultural, 1979. Coleção "Os Pensadores". Título original: An introduction to the principles of morals and legislation, 1789.

    2. Mill, John Stuart. Princípios de economia política: com algumas aplicações a filosofia social. Nova Cultural, 1986. 431 p. Coleção "Os Pensadores". Título original: Principles of Political Economy, with some of their applications to Social Philosophy, 1865.

    3. Hunt, E. K. História do pensamento econômico. Campus, 1989.

    4. Pigou, A. C., The economics of welfare, transaction publishers, New Jersey, 2002. Primeira edição original de 1920.

    5. Amazonas, M. de C. "Economia ambiental neoclássica e desenvolvimento sustentável. O desenvolvimento sustentável e a perspectiva das teorias econômicas 'institucionais'. Desenvolvimento sustentável e a economia ecológica". In: Nobre, M. & Amazonas, M. de C. (Orgs.) Desenvolvimento sustentável: a institucionalização de um conceito. Brasília, Edições Ibama. 2002.

    6. Spash, C.L. & Hanley, N. "Preferences, information and biodiversity preservation". Ecological Economics, Vol.12, n.3, PP.191-208. 1995.

    7. A economia ecológica constitui campo transdisciplinar a partir da integração de conhecimentos e conceitos oriundos das áreas da economia e da ecologia, com o objetivo de estabelecer análises do sistema ecológico-econômico integrado, diferenciando-se tanto da "economia convencional" quanto da "ecologia convencional".

    8. Costanza, R. "Economia ecológica: uma agenda de pesquisa". In: May, P. H. e Serôa da Motta, R. (Orgs.). Valorando a natureza: análise econômica para o desenvolvimento sustentável. Editora Campus. 1994.

    9. Norgaard, R. "The case for methodological pluralism". Ecological Economics, Vol.1, pp.37-57. 1989.

    10. May, P.H., (Coord.); Veiga Neto, F.C.; Pozo O.V.C. Valoração econômica da biodiversidade: estudos de caso no Brasil. Pronabio, SBF – Ministério do Meio Ambiente. 2000.

    11. Motta, R.S.; Ferraz, C. & Ortiz, R.A. Estimando o valor ambiental do Parque Nacional do Iguaçu: uma aplicação do custo de viagem. Ipea. 2001.

    12. Peixoto, S. & Willmersdorf, O.G. Modelo de valoração econômica dos impactos ambientais em unidades de conservação: empreendimentos de comunicação, rede elétrica e dutos. Ibama. 2002.

    13. Adams, C.; Aznar, C.; Motta, R. S.; Ortiz, R. & Reid, J. Valoração econômica do Parque Estadual Morro do Diabo. São Paulo. 2003. Disponível em: http//:www.worldbank.org (acesso em 10/12/2006).

    14. Dean, W. "A botânica e a política imperial: a introdução e a domesticação de plantas no Brasil". Estudos Históricos, Vol.4, n.8, pp.216-228. 1991.

    15. Sanjad, N.R. "Nos jardins de São José: uma história do Jardim Botânico do Grão Pará, 1796-1873". Dissertação de mestrado, Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP. 2001.

    16. Brockway, L.H. Science and colonial expansion: the role of the British Royal Botanic Gardens. Academic Press, New York. 1979.

    17. Jackson, Joe. The thief at the end of the world: rubber, power and the obsessions of Henry Wickham. Gerald Duckworth & Co Ltd. 2009.

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