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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.62 no.2 São Paulo  2010

     

     

    FALÉSIAS

    As belas e perigosas construções da natureza

     

    O oceano Atlântico banha o litoral brasileiro que se estende por mais de 8 mil quilômetros, predominados por costas baixas. Mas, por vezes, a terra firme se impõe ao mar por meio de escarpas com inclinação acentuada. Surgem, aí, as falésias, esculpidas principalmente pela ação erosiva das ondas do mar.

    Por sua beleza e pela possibilidade de vista panorâmica, essas formações naturais atraem a instalação de grandes complexos hoteleiros, condomínios e turismo predatório que acabam por comprometer sua existência e as transformam em áreas de risco de desmoronamento.

    As falésias no Brasil ocorrem principalmente nas regiões Nordeste e Sudeste, onde se alternam com praias, dunas, mangues, recifes, baías e restingas, e conferem singularidade à paisagem litorânea. José Maria Landim Dominguez, professor titular em geologia costeira e sedimentar da Universidade Federal da Bahia (UFBA), explica que na zona costeira entre Rio de Janeiro e Pará ocorre uma unidade geológica conhecida como Formação Barreiras. "Nos trechos onde existe um déficit no balanço de sedimentos, a Formação Barreiras alcança a linha de costa formando falésias". Essa unidade geológica é constituída de rochas pouco consolidadas, o que as torna muito susceptíveis à erosão pela ação das ondas do mar e das águas da chuva.

     

     

    O potencial turístico da região litorânea, e em especial do Nordeste brasileiro, tem sido apontado em diversos estudos que destacam seus atributos naturais, culturais e a abundância de mão-de-obra com custos baixos. As áreas onde ocorrem as falésias possuem um atrativo especial para o turista: é o mar visto de cima. Ronaldo Fernandes Diniz, professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN), considera que "juntamente com as praias arenosas e dunas locais, as falésias do Nordeste constituem paisagens de rara beleza e, portanto, de grande valor para as atividades turísticas e o desenvolvimento regional".

    Nos últimos anos, o número de empreendimentos turísticos no Nordeste aumentou muito e há um grande crescimento de complexos hoteleiros nas bordas das falésias. Luiz Gonzaga Godói Trigo, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP), aponta que de norte a sul do Brasil as áreas litorâneas têm sido ocupadas intensa e irregularmente e não apenas por empreendimentos hoteleiros. "Hotéis, condomínios privados de difícil fiscalização e grandes centros comerciais ocupam bordas de falésias e manguezais, sabidamente áreas de risco". Entre Recife e o Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, por exemplo, existem muitas falésias com manguezais entre elas. Nessa região estão sendo construídos vários hotéis e condomínios, além da Refinaria Abreu Lima, da Petrobras, e do Complexo Industrial Portuário de Suape. Segundo Luiz Trigo, "tudo isso visa principalmente um desenvolvimento rápido da região, mas sem levar em conta a conservação ambiental". A legislação existe mas é pouco cumprida. Autor de mais de vinte livros sobre turismo, Trigo denuncia: "no litoral do Nordeste o problema maior não são os hotéis. Muitos estrangeiros estão comprando casas de condomínios privados, inclusive em áreas de preservação, e promovem o turismo sexual. Nesses locais, a fiscalização é muito mais difícil". Segundo ele, nos hotéis de grandes corporações, principalmente nos que recebem turistas estrangeiros, a conservação ambiental é uma estratégia de marketing, pois alguns deles não aceitam frequentar hotéis que causam impacto no ambiente.

    Nas falésias, o processo erosivo atua em duas frentes: na base, pela ação das ondas e correntes marinhas; e no topo, pela ação das águas da chuva. As ondas escavam a base das falésias e provocam desmoronamentos. Isto, combinado com a ação das águas pluviais, faz com que as falésias recuem em direção ao continente. O geólogo Landim explica que esse recuo depende dos materiais geológicos. Falésias esculpidas em rochas cristalinas mais resistentes recuam muito lentamente, de modo quase imperceptível. "A cidade de Salvador, na Bahia, por exemplo, está sobre falésias de rochas cristalinas, com a cidade alta no topo e a cidade baixa na base. Existem vários prédios na borda da escarpa, mas como as rochas são resistentes, o risco é pequeno", diz Landim. Por outro lado, falésias esculpidas em rochas sedimentares ou em sedimentos pouco consolidados recuam rapidamente. "Isto é o que acontece em grande parte do Nordeste brasileiro", acrescenta.

    Falésias são naturalmente áreas de risco, pois estão constantemente submetidas ao processo erosivo que favorece desmoronamentos, tanto no topo, como na base da falésia. "Existem casos de banhistas que morreram porque estavam descansando na base de uma falésia, ou caminhando muito próximo à sua borda", afirma Landim, "e qualquer construção ou estrutura humana, seja na base, seja no topo das falésias estará ameaçada pelo recuo erosivo da linha de costa".

    Um exemplo dessa dinâmica é o Cabo Branco, na Paraíba, uma falésia de 40 metros de altura formada por rocha calcária, que já foi considerado o ponto mais oriental da América. Perdeu o título para a Ponta do Seixas, situada 3 km ao sul. Isto porque a erosão marinha promoveu o desgaste do Cabo Branco. Os sedimentos erodidos foram depositados na Ponta do Seixas, fazendo com que esta avançasse uns 200 m no mar.

    As falésias são consideradas Áreas de Preservação Permanente (APP) pela Resolução nº 303/02 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que proíbe qualquer tipo de ocupação numa faixa de cem metros, contados da sua borda. Entretanto, apesar de protegidas pela legislação, existem muitas ocupações irregulares em bordas de falésias, que causam fortes impactos ambientais. Ronaldo Diniz cita como principais a aceleração do processo erosivo natural, o comprometimento do valor estético da paisagem, o acúmulo de lixo e entulhos e a contaminação do lençol freático. "Esses impactos aumentam a incidência de desmoronamentos e de escorregamentos, principalmente em períodos com maiores precipitações pluviométricas", complementa Ronaldo Diniz.

    TURISMO E NATUREZA EM HARMONIA Especialistas consideram que o turismo é uma atividade que deve ser sustentável em termos econômicos, sociais e ambientais. Para evitar impactos ambientais são necessários planejamentos e zoneamentos que considerem a capacidade de carga dos ecossistemas envolvidos. A capacidade de carga é o máximo de uso possível de um ecossistema sem causar efeitos negativos sobre os recursos biológicos, sem reduzir a satisfação dos visitantes e nem produzir efeito adverso sobre a sociedade receptora, a economia ou a cultura local.

     

     

    Para Luiz Trigo, um dos exemplos no Brasil de que é possível conciliar conservação ambiental e turismo em área litorânea é a Riviera de São Lourenço, no litoral norte de São Paulo. Projetada considerando a capacidade de carga, conta com normas rígidas para o uso e ocupação do solo. O mesmo não acontece no Jardim São Lourenço, bairro ao lado onde, por falta de licenças ou atraso na sua obtenção, os condomínios residenciais estão atualmente com a construção atrasada ou embargada.

    Outro exemplo de preservação e turismo sustentável apontado por Luiz Trigo são os parques nacionais dos Estados Unidos e do Canadá: "As comunidades, que estavam nas áreas antes da criação dos parques, permaneceram no local e preservam rigorosamente suas terras, pois possuem consciência ambiental; o retorno é a valorização do patrimônio". No Brasil, esforços têm sido feitos e o Plano Nacional de Turismo (PNT 2007/2010) foi elaborado com a colaboração de diferentes segmentos relacionados com turismo. O objetivo principal é ser um indutor da inclusão social, por meio da criação de novos postos de trabalho, ocupação e renda, e pela absorção de novos turistas no mercado interno. Mas não bastam planos. "Hoje temos política, mas falta fiscalização, agilidade do Judiciário e responsabilidade social do consumidor de turismo", enfatiza Luiz Trigo.

    Falésias podem ser encontradas em várias regiões do mundo e, em muitas, há turismo intenso: Algarves, em Portugal; ilha de Capri, na Itália; Étretat, na França; na falésia de Moher, na Irlanda, e em muitas outras. Em Moher, por exemplo, existe um centro de visitas com uma galeria subterrânea onde fotografias, filmes e textos apresentam a falésia ao público visitante. A área da falésia é considerada, desde 1988, Área de Refúgio de Fauna e, a partir de 1989, passou a ser também um Setor de Proteção Especial para Pássaros.

    A atividade turística em área de falésia é viável, desde que se respeite a legislação vigente. "Em áreas próximas às bordas das falésias devem ser evitados edificações, tráfego de veículos, alterações no fluxo natural de água pluvial, deposição de lixo e entulhos e exploração turística acima da capacidade de suporte local", afirma Ronaldo Diniz. Landim acrescenta que é necessário disciplinar o uso do solo, nas áreas próximas à borda das falésias. É preciso estabelecer faixas de recuo baseadas em projeções de taxas históricas de erosão da linha de costa para uma determinada localidade; proibir intervenções humanas, como jardins e fossas, que provocam aumento da entrada de água no solo e, consequentemente, aumento do risco de desmoronamento; e impedir que se construam obras de estabilização na forma de muros na base das falésias, que afetam a dinâmica de transporte e deposição de sedimentos, exacerbando os processos erosivos nas áreas vizinhas. O professor acrescenta que "o recuo erosivo das falésias é um processo natural, portanto qualquer ocupação humana deve fornecer amplo espaço para que esse fenômeno siga o seu curso".

     

    Leonor Assad