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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.62 n.2 São Paulo  2010

     

     

    RESENHA

    Vida, morte e imortalidade: desvendando a história das células HeLa

     

    HeLa é a sigla de uma linhagem celular bem conhecida de pesquisadores das ciências biológicas e médicas. No entanto, poucos sabem a origem da sigla e, tampouco, a história de Henrietta Lacks, uma mulher negra que viveu entre os anos de 1920 e 1950, nos Estados Unidos, da qual foram extraídas células cancerosas que originaram a primeira linhagem imortal de células humanas. O impacto de tal façanha na ciência médica moderna foi profundo e vasto, muito embora a família de Lacks tivesse vivido um enorme silêncio (e falta de informação) sobre sua importante contribuição.

    Rebecca Skloot conta tal trajetória em seu livro, The immortal life of Henrietta Lacks, publicado este ano pela Editora Crown. A jornalista deixou a plateia da livraria de Harvard – um dos centros de referência mundial em pesquisa médica – quase sem fôlego ao ler o tocante primeiro capítulo do livro, que trata do exame que levou ao diagnóstico do tumor em Henrietta – ocorrido na ala para pacientes "de cor". Se hoje a história escrita por Rebecca choca por considerar pacientes meros doadores de material biológico, é preciso cuidado, recomenda a autora, para não se transpor as leis atuais para os anos 1950. "Na época, era considerado justo usar pacientes como sujeitos de pesquisa, mesmo sem serem informados, como forma de retribuição ao tratamento gratuito que recebiam", disse. A legislação avançou e hoje os comitês de ética em pesquisa são rigorosos em relação ao consentimento informado, embora haja espaço para melhorias.

     

     

    Foram dez anos de pesquisas, entrevistas, viagens e contatos com os familiares de Lacks – um belo exemplo do cada vez menos presente jornalismo investigativo –, até que Rebecca Skloot conseguisse condensar tudo em uma obra sobre ciência e seus bastidores, e que levanta questões sérias sobre a relação médico-pesquisador-paciente, os impactos da precária comunicação dos cientistas com a sociedade, consentimento informado, propriedade intelectual e patentes de células, entre outras. Entremeada ao criterioso conteúdo científico está a história da perda de uma mãe. E por isso, emociona.

    Henrietta teve dois pedaços do colo do seu útero removidos antes do início da radioterapia para tratar um câncer no prestigioso hospital Johns Hopkins. Colocadas em condições especiais para cultivo em laboratório, suas células de tecido canceroso, ao contrário das isoladas do pedaço saudável, se multiplicaram em uma velocidade nunca antes vista pelos cientistas, e por isso chamaram atenção de nomes como Howard Jones, Richard Wesley TeLinde e George Gey, e que seriam responsáveis por uma verdadeira revolução científica.

    Jones foi o primeiro médico a atender Henrietta após ter sido diagnosticada com câncer; TeLinde, autor de um livro texto referência em cirurgia ginecológica, na época lutava contra o excesso de histerectomias em função de diagnósticos errôneos de câncer cervical. Gey era o chefe do laboratório de cultura de tecidos no mesmo hospital e trabalhava há três décadas tentando fazer crescer células malignas fora do corpo, em placas e tubos, em busca da causa e cura do câncer. Mary Kubicek, técnica do laboratório de Gey, recebeu as amostras retiradas de Henrietta e as manipulou sem muita esperança, como mais uma entre tantas. Cortou o tecido em pequenos quadrados, colocou-os em tubos de cultura e escreveu HeLa usando uma caneta preta. A surpresa veio após poucos dias: a olho nu foi possível enxergar uma nuvem branca no fundo do tubo, indicativo de que as células haviam se multiplicado em "intensidade mitológica".

    George Gey, entusiasmado com o resultado, começou a distribuir células HeLa para cientistas interessados, o que possibilitou o uso dessa linhagem nos mais variados estudos, como para entender as infecções por alguns vírus (como HIV e sarampo), descrever os 48 cromossomos humanos, testar produtos cosméticos e farmacêuticos, além de terem sido e serem fundamentais no estabelecimento e padronização de técnicas seminais de cultura de células.

    Antes da indústria com fins lucrativos, a jornalista norte-americana conta que cientistas construíram uma fábrica em Tuskegee para produzir HeLa em larga escala, uma vez que experimentos mostraram que com tais células seria possível testar a efetividade e seguridade da vacina contra poliomielite que acabara de ter sido desenvolvida (1952) por Jonas Salk. Usar a linhagem HeLa para os testes de neutralização do vírus era uma alternativa muito mais barata do que células de macaco, protocolo disponível à época. Cerca de seis trilhões de células eram produzidas semanalmente pela fábrica localizada no estado do Alabama e enviadas para diferentes centros espalhados pelo mundo. O esquema montado foi um sucesso e mostrou que a vacina da pólio era efetiva. Com o aumento da demanda, surgiu o primeiro centro de produção e distribuição de células com fins lucrativos. Devagar nascia a multibilionária indústria de venda de material biológico.

    Lado a lado com os benefícios que as pesquisas com células HeLa trouxeram para a própria ciência e suas aplicações na área de saúde, Rebecca descreve a faceta obscura e triste do tratamento dado aos negros. O contraste entre o sucesso da fábrica HeLa e os infames experimentos de Tuskegee com negros portadores de sífilis, que aconteceram no mesmo local e na mesma época, impressiona. Assim como a descrição das histerectomias em mulheres negras pobres no estado do Mississippi, como forma de controle de natalidade e para a prática da técnica. Segundo Rebecca, conforme os negros foram migrando do sul para o norte dos EUA, as histórias de que hospitais sequestravam negros para pesquisa só aumentaram.

    Mas a força do livro vem mesmo do resgate detalhado que a jornalista faz da trajetória de Henrietta, desde o seu nascimento em 1920, sua infância em Clover, no estado da Virgínia, e sua morte em 1951. Criada por seu avô, Henrietta casou-se com seu primo e teve cinco filhos que, após sua morte, passaram por duros momentos de maus-tratos, escravidão nas lavouras de tabaco e abuso sexual. Esses mesmos filhos, e agora netos, cresceram em um profundo silêncio sobre Henrietta e suas revolucionárias células. A família só soube, por acaso, mais de 20 anos depois da morte de Henrietta, que suas células estavam vivas. A notícia, recebida com choque, levou os parentes a pensarem que a própria Henrietta estivesse viva. Mesmo depois de procurados, anos mais tarde, para doarem sangue para a realização de testes genéticos, não lhes informaram sobre as aplicações das HeLas, sua importância para a medicina, ou sobre as partes que lucraram com as células. A maior contradição apresentada pelo livro é o fato dos Lacks não ter condições para pagar um plano de saúde.

    Rebecca não foi a primeira jornalista a abordar a família interessada em saber mais sobre Henrietta, mas teve o mérito de se preocupar em informar e explicar detalhadamente todas as dúvidas da família sobre a linhagem HeLa. A história de Henrietta Lacks nos leva a uma reflexão sobre a necessidade de aproximarmos meras amostras de células, tecidos, soros, DNAs, RNAs, às mais diversas vidas humanas que as produziram, comunicando claramente os objetivos da pesquisa, por meio de linguagem adequada ao doador da amostra.

     

    Cristina Caldas