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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.62 no.2 São Paulo  2010

     

     

    Apresentação

    Arte, História da arte, moda

    Luciano Migliaccio

     

     

    A moda é um tema que pode ser abordado sob vários pontos de vista. A proposta de um dossiê com o tema Moda na Ciência e Cultura se dá por compreender que este fenômeno sociocultural, no qual estamos imersos, suscita reflexões e pesquisas nas mais diversas áreas do conhecimento desde o século XIX (1), momento quando esta se consolida como a conhecemos: uma cadeia industrial capitalista que abrange todas as transformações periódicas efetuadas nos diferentes setores da vida social, que tem nas mudanças regradas dos estilos de vestuário e ornamentação seu caso exemplar. Uma de suas faces está claramente ligada à estética, uma estética do cotidiano que dá acesso, nas palavras de Alexandre Eulálio, a "uma apaixonante história das formas". A opinião de Baudelaire, já na primeira metade do século XIX, de que o caráter efêmero da beleza na cultura e na sociedade moderna se expressa na moda tanto quanto nos produtos das artes tradicionalmente definidas como tais, permanece ainda totalmente válida e só é confirmada pelos desdobramentos da nossa história cultural mais recente.

    Ao longo do século XX, no entanto, e particularmente a partir da década de 60, com as transformações da indústria cultural provocadas pela tecnologia dos mass-media nas sociedades industrializadas, arte e moda desenvolveram novas características comuns que colocam às vezes em questão os limites entre as duas. Ambas tendem cada vez mais a se transformarem em sistemas comunicativos autônomos, se legitimando através de formas expositivas cada vez mais relevantes na vida social e cultural das sociedades atuais, e através da afirmação de um discurso crítico que invade os meios de comunicação de massa formando o gosto e as preferências do mercado. Pode ser dito que, na sociedade contemporânea, arte e moda formam um sistema semelhante e interconexo baseado no triângulo produção, comunicação do produto e mercado, que afeta toda a fruição estética atual, colocando em questão as categorias tradicionais da arte. Nesse sentido, é significativa a afirmação cada vez mais evidente na comunicação da moda autoral, dos grandes estilistas. A construção da individualidade única, genial, derivada do universo da arte, é muito útil para a propaganda do produto. Contudo ela oculta as características reais, construídas e planejadas da produção do objeto com valor estético. A moda de autor busca, então, se distanciar cada vez mais do mundo real da produção e buscar suas referências de valor no mundo da criação artística, introduzindo no seu discurso elementos derivados da tradição formal e da crítica das artes visuais.

    A crítica profética de Flávio de Carvalho sobre moda publicada na década de 1950 nas colunas do Diário de São Paulo antecipou algumas dessas temáticas. Polemizando com a padronização imposta pela indústria da época, as maneiras de vestir do passado eram examinadas pelo artista brasileiro, que reivindicava a importância dos elementos lúdicos, de natureza comunicativa e teatral, em particular, das chamadas civilizações primitivas, e convidava a sociedade atual a se apropriar, por esse viés, também dos recursos criativos oferecidos pelos novos meios mecânicos.

    Luis Carlos Dantas, na apresentação da exposição "Dialética da Moda", realizada no Arquivo Alexandre Eulálio da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a partir dos escritos e dos desenhos do artista ali conservados, observou que, para Flávio, "de forma paradoxal, o movimento da moda é ascendente, vem de baixo. Só posteriormente as classes altas tornam-se o foco de disseminação. "Ela nasce no sofrimento e na dor, e seus inventores são o homem em farrapos ou ainda a loucura vagando pela rua, são representantes da revolta e da anti-hierarquia". Sob esse aspecto, o paradoxo de Flávio de Carvalho, ao parodiar as iniciativas de Pietro Maria Bardi e do grupo reunido ao redor do Masp, para criar uma indústria da moda no Brasil, abria um caminho que seria percorrido por algumas correntes da sociologia e da antropologia urbana contemporânea. No entanto, as relações entre a criação da moda e o sistema das artes não se limitam aos aspectos criativos do produto e à busca de um lugar para os criadores de moda no mundo das artes já consagradas. A comunicação comercial do produto é outro setor em que a dialética entre os dois campos tem importantes consequências.

    Muitos grandes artistas contemporâneos têm destacado na sua obra a importância dessa questão que afeta a própria noção de autoria. A moda e suas formas de comunicação visual foram frequentemente o primeiro caminho que levou à reflexão sobre a imagem e as novas configurações do campo da arte na sociedade industrial. Muitos dos maiores artistas da geração "pop" trabalharam como designer na indústria da moda, ou vieram de escolas de design gráfico ou comunicação visual voltadas ao mercado publicitário e da moda. Para muitos, o papel da comunicação visual na sociedade atual, através da imagem e da espetacularização do produto, foi também o próprio tema da obra: famosas serigrafias reproduzindo latas de sopa de tomate Campbell, de garrafas de Coca-Cola, de rótulos de detergente; instalações formadas por caixas de remédios e produtos farmacêuticos. Ao incluir o universo da comunicação comercial na atmosfera rarefeita da arte, essas obras nos sugerem que a nossa relação estética mais próxima e imediata com a imagem não acontece tanto nos museus, quanto nas prateleiras dos supermercados. Mas se pode dizer também o contrário. Cada vez mais nos relacionamos com um produto industrial de maneira semelhante a uma obra de arte.

     

     

    A entrevista do filósofo Lars Svendsen coloca uma série de perguntas muito significativas e controversas sobre tais questões. É possível uma crítica da moda autônoma, separada do marketing do produto? É possível a criação de categorias de análise rigorosas comparáveis às da crítica das linguagens artísticas ou cinematográficas. A estas perguntas tentou responder, já há algumas décadas, Roland Barthes no seu texto O sistema da moda, chegando a conclusões bem diferentes que conservam ainda atualidade: o discurso sobre a moda pode ser estudado como um sistema de signos produtores de significado em relação a um universo de objetos. Sua função é a formação de um gosto do consumidor. É, então, um discurso modelo do sistema do espetáculo moderno descrito por Debord e, como tal, se apresenta como paradigma que afeta o próprio discurso da crítica de arte, enquanto parte do mesmo sistema de comunicação.

    Uma outra abordagem de grande interesse é aquela antropológica proposta por Massimo Canevacci. Fugindo do campo limitado da haute couture, da sua representação imagética e ideológica, remontando aos contributos de Gillo Dorfles, que colocou sem preconceito o tema das novas interrelações entre arte e moda, ou de Francesca Alfano Miglietti que foca o significado das poéticas do corpo na arte, o discurso do italiano visa as raízes da criatividade da moda atual dentro do universo das subculturas urbanas, questionando e talvez subvertendo, as tradicionais relações verticais entre centro e periferia estabelecidas nas sociedades contemporâneas. Os textos de Rosane Preciosa e Suzana Avelar e o artigo de Maria do Carmo Teixeira Rainho enriquecem essa abordagem de um ponto de vista sociológico sob o aspecto da relação entre a moda e o controle social. Se, na primeira contribuição a perspectiva pode ser mais próxima também dos estudos históricos já clássicos de Norbert Elias, destacando a complexa relação entre valores culturais e objetos no processo de construção de identidades sociais, a segunda, utilizando autores pioneiros no estudo das subculturas urbanas dos adolescentes, como David Hebdig, aponta para a relevância desses fenômenos na construção não apenas das relações de poder, como também das identidades individuais e de grupos no universo da metrópole pós-industrial.

    Não menos importantes para a compreensão das possibilidades abertas pelos estudos sobre moda, inclusive como documento histórico, são os textos de Maria Rúbia Sant'Anna, Luiz Campanella e Soraya Coppola. Sant'Anna aponta para a importância dos textos historiográficos como documentação de pesquisa, e para necessidade de ver a linguagem dos manuais de história da moda e dos costumes como uma construção histórica, ela própria documento de particulares relações culturais entre vários campos do saber e da ideologia. O tema adquire uma atualidade candente ao pensarmos no grande aumento de número de cursos de moda e de cultura visual no nível de ensino profissional e de graduação que se está verificando nos últimos anos no Brasil. A este novo interesse não corresponde ainda uma reflexão adequada sobre os instrumentos e as modalidades de ensino, que não seja dirigida apenas por interesses contingentes do mercado. Mais voltados para uma investigação histórica e por uma interpretação de viés semiológico, num sentido bem particular, os escritos de Campanella e de Soraya Coppola partem do exame de produtos para mostrar a permeabilidade entre significados culturais e de aspectos tecnológicos de produção na criação do objeto de moda.

    O dossiê aqui apresentado reúne, portanto, uma pluralidade de temas, de abordagens, de métodos de análise e de propostas cujo denominador comum é partir do fenômeno da moda como documento da história cultural e social. Mais que a tentativa de fazermos um balanço de algumas questões, que permanecem abertas, há aqui o desejo de estimular o leitor a conhecer, de forma mais próxima, os estudos que foram desenvolvidos nas últimas décadas, com grande impulso também em instituições acadêmicas e centros de pesquisa brasileiros, nessa área tão importante para a compreensão da cultura contemporânea. Por isso, foi anexado ao dossiê uma bibliografia básica que pode servir como primeiro instrumento de introdução ao conhecimento desse campo para os interessados não especialistas, e também uma lista de grupos de pesquisa existentes dentro de várias universidades e centros no país. Esperamos assim poder contribuir para estimular a comunicação e os intercâmbios entre os estudiosos, tendo em vista uma maior cooperação e integração, e proposta de atividades conjuntas, projetos e eventos cuja realização seria indispensável para consolidar esse segmento ainda incipiente dentro do panorama acadêmico brasileiro.

     

    Luciano Migliaccio é professor de história da arte da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), professor visitante da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador do grupo e pesquisa Arte, Design e Moda

     

     

    NOTA

    1. Célebres autores dedicaram-se a pensar sobre moda: Oscar Wilde, Charles Baudelaire, Honoré de Balzac, Thornstein Veblen, John C. Flügel, Georg Simmel, Gabriel de Tarde, Edward Sapir, Ruth Benedict, Roland Barthes, C. Willet Cunnington, Richard Martin, James Laver, Pierre Bourdieu, Mike Featherstone, entre outros. E, no Brasil, podemos destacar os escritos e pesquisas iniciais de Gilberto Freyre, Alexandre Eulálio e Gilda de Mello e Souza.