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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.62 no.2 São Paulo  2010

     

     

    ENTREVISTA Massimo Canevacci

    Por um mapa antropológico da moda

    Tarcísio D'Almeida

     

     

    O ANTROPÓLOGO ITALIANO MASSIMO CANEVACCI QUE, ALÉM DA MODA, TEM SE DEDICADO AOS ESTUDOS DOS COMPORTAMENTOS CULTURAIS CONTEMPORÂNEOS, DEFENDE UMA AMPLIAÇÃO DOS DEBATES EM TORNO DA MODA.

    Entender a moda pelo enfoque antropológico. Esse é um dos roteiros de reflexão que permeia a atual trajetória intelectual do antropólogo italiano Massimo Canevacci, autor de Culturas extremas: mutações juvenis nos corpos das metrópolis (DP&A, 2005). Titular da cadeira de antropologia cultural na Faculdade de Sociologia da Universidade La Sapienza de Roma e professor visitante nas universidades de Frankfurt e de Nova York, Canevacci é autor de inúmeros livros que abordam estudos sobre antropologia das artes visuais, do cinema e das culturas urbanas.

    Em sua primeira visita ao Brasil (1), Canevacci discutiu quais são as articulações existentes na moda, que atuam desde sua produção imaterial, seu consumo, as redes de contradições da mesma, além de enfocar ideologia e modismos. Para o antropólogo, o estudo sobre o tema, a partir de vários enfoques e correntes de pensamento, só melhora a sua compreensão.

    A seguir, entrevista exclusiva realizada com Canevacci, onde sua perspectiva antropológica da moda pode ser amplamente debatida durante o seminário na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP) (2).

    Tarcisio D'Almeida Sua trajetória intelectual tem sido voltada à antropologia do cinema, dos estudos de cultura visual nas metrópoles. Como surgiu esse interesse pela moda?

    Massimo Canevacci Nesses últimos anos fiquei interessado pelos estilos da cultura juvenil e a moda está inclusa nesse interesse também, sobretudo pela forma figurativa e a expressão de linguagens do corpo que contribuem nas concepções de comunicação visual desse fim de século.

    Você acha que, no caso da moda das tribos urbanas dos anos 1990, há uma profusão de imagens dialéticas nessa cultura tipicamente urbana em busca da liberdade de estilos?

    Acho isso extremamente importante. É esse sistema de comunicação específico dos jovens, que surgiu com o hip hop [movimento musical dos negros dos subúrbios norte-americanos], que fez mudar os estilos de se vestir. Funcionou como um movimento contrário, saindo das periferias para os grandes centros. Com isso, temos uma comprovação de que a moda não é só produzida do centro para as periferias. A criação estética de estilos pode ser proveniente das camadas menos privilegiadas também.

    Em quais direções apontam as abordagens de moda da fase posterior às contribuições sociológicas de René König e Georg Simmel e da semiologia de Roland Barthes?

    A questão fundamental da relevância das contribuições desses autores, pelo menos para minha abordagem, é a de que a distinção do dualismo entre o orgânico e o inorgânico (o material e o cultural) perdeu espaço. Gosto das tendências surgidas com a mescla entre moda e arte na contemporaneidade, pois experimentar fusões entre dois estilos (expressões) é uma marca de comunicação visual pós-dualista. O trabalho dos estilistas e artistas fica mais enriquecido com essa fusão de visões e estéticas criativas no mundo da moda; o emprego de tecnologias, como a cyber, cria toda uma rede de trocas constantes entre os dois campos. Os limites da moda são invisíveis.

    Além de forte polo de criação, como a Itália reflete moda atualmente?

    Sem sombra de dúvida, Milão é um dos centros financeiros mais importantes no mundo da moda. É a capital pós-industrial da moda na Itália. Existem os vários conglomerados de empresas, como Prada, entre outras, que respondem por boa parte da produção econômica nacional. Em contrapartida, a produção acadêmica italiana sobre moda também tem seu destaque, sobretudo a partir dos anos 1960/70.

    Qual seu diálogo com as obras de Gillo Dorfles (com seus dois livros sobre moda) e outros autores como Francesca Alfano Miglietti (ou FAM) e seu estudo sobre as mutilações no corpo contemporâneo?

    Realmente, Gillo Dorfles é um autor fundamental na Itália. Ele aborda as formas estéticas e da mídia italiana. Sou bastante interessado também na relação entre as formas comunicativas, da arte e da moda. Com isso tento fazer um estudo da produção e interrelação construída na mescla desses campos a partir de uma visão dos conflitos semióticos. Meu enfoque está mais centrado na constituição da vida nas metrópoles na comunicação (ambas marcadas pela pós-modernidade) do que no trabalho tradicional. Tento acompanhar o trabalho da FAM, pois ela consegue convergir exatamente essa visão caótica das problemáticas da contemporaneidade, sobretudo na sua revista Virus, sobre os vários processos de mudanças/mutilações no corpo e na moda.

    O sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, no livro Modos de homem & modas de mulher (1987), apontou as ideologias, as modas, os modismos, os costumes e comportamentos do Brasil desde o século XIX. E, hoje, como você vê essas (inter)relações?

    Normalmente muitos antropólogos não se interessam pela moda, acham-na um tema frívolo e efêmero demais para a academia. Mas é um objeto de estudo relevante sim, como qualquer outro, pois tem a ver com comportamento e atitudes psicossociais dos indivíduos. Precisa dos vários enfoques científicos e se Gilberto Freyre já fez sua contribuição intelectual porque nós não damos continuidade? A minha única advertência é de que a antropologia e a sociologia têm de tomar certo cuidado com a produção imaterial na pós-modernidade.

    A produção de moda está mais voltada à identificação de estilos, estéticas, ou meramente ao consumo de bens?

    Os estilos de vida são muito interessantes e pluralizados no mesmo indivíduo, que pode vestir-se e se travestir várias vezes durante um mesmo dia. E é essa capacidade e liberdade que traz o significado da amplitude da contemporaneidade. Isso significa que a identidade não é mais parada, fechada, mas sim aberta para a experimentação das "identidades"; ela é mais fluída, líquida.

     

    Tarcísio D'Almeida é pesquisador e professor do Curso Design de Moda da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (EBA-UFMG). Pertence ao conselho editorial da revista acadêmica de moda Dobra[s] e é pesquisador-associado do Groupe d'Étude sur la Mode, da Université de Paris V, Sorbonne. Escreve sobre moda para os jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo. Email: tarcisio.dalmeida@gmail.com

     

     

    NOTAS

    1. Entrevista inédita, realizada durante o seminário ministrado pelo antropólogo, em 19 e 20 de novembro de 1999 —" Cultura da moda: panorama antropológico da moda como produto"— no Centro de Estudos da Moda, da Escola de Comunicações e Artes da USP
    2. Além do pensador italiano, o Centro de Estudos da Moda da ECA-USP já havia acolhido, em abril de 1999, o filósofo francês Jean-Louis Santoro, no seminário avançado sobre "Moda e literatura". No ano seguinte, foi a vez da professora Lesley Miller, coordenadora da pós-graduação em história de têxteis e do vestuário, da Universidade de Southampton (Inglaterra), que debateu a "Perspectiva histórica e mercadológica da alta costura". O filósofo e ensaísta francês Gilles Lipovetsky, da Universidade de Grenoble (França), abordou "A moda e a mulher nas sociedades pós-modernas", e a pesquisadora Ana Martínez Barreiro, da Universidade de La Coruña (Espanha), ministrou um seminário avançado sobre "Uma nova cultura da moda". Com essa agenda, conseguiu-se estabelecer uma sinergia com vários intelectuais do exterior para enriquecer o debate sobre moda no, hoje inexistente, Centro de Estudos da Moda da ECA-USP, projeto sob a batuta do professor Victor Aquino, na época, diretor da ECA-USP e do Centro de Estudos da Moda. De certa forma, tais eventos contribuíram, junto à reitoria, para o projeto que resultou na criação do Curso Tecnologia Têxtil e da Indumentária (recentemente modificado para Têxtil e Moda), da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP. No início, havia a intenção da ECA sediar o curso de moda mas, com o projeto de expansão universitária, esse, assim como outros novos cursos, acabaram incluídos na nova unidade da universidade, localizada na Zona Leste da capital paulista.