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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.62 no.2 São Paulo  2010

     

     

    O DESIGN PARA CALÇADOS MASCULINOS E A MODERNIDADE

     

    Luis Fernando Campanella Rocha

     

     

    Escolher um calçado para homens, tem significado diferente do que para mulheres? Quais as razões para que a oferta e diversidade de calçados masculinos, no mercado brasileiro e internacional, sejam bem menores que a de calçados femininos? Considerações de gênero como a preocupação dos homens com peças do vestuário ser vista como comprometimento da sua masculinidade pode ser uma primeira abordagem?

    As vitrines das lojas especializadas estão lotadas de sapatos, em sua maioria nas cores preto e marrom (1). Os modelos variam entre poucas versões, todas parecidas. Qual o real motivo dessa limitação? Designers, industriais, varejistas e consumidores não são sensíveis a tais diferenças?

    Paradoxalmente, a compra de um belo par de calçados, há muito tempo, é realizada com extremo cuidado pela maioria dos homens, embora os motivos que chamem a atenção tenham diferenças importantes entre os gêneros. Para os homens, a qualidade do sapato não é sempre norteada pelo conforto que possa ocasionar, como se justifica na maioria das vezes, mas sim, pelo valor que essa peça do vestuário signifique para a sociedade em geral. Dessa maneira, na Europa dos séculos XIX e XX, se estendendo até hoje, (principalmente Inglaterra (2) e França), um belo calçado masculino indica o grau de civilidade, a segurança econômica e o gosto impecável de quem o calça.

    A crença de que esses calçados masculinos de origem europeia refletem a supremacia moral dos homens bem sucedidos tem sido sustentada por mais de dois séculos. Por outro lado, a grande participação dos calçados esportivos com a introdução no mercado masculino do tênis (3), valorizou durante todo o século XX, o ideal norte-americano de competitividade, força e juventude. São essas duas referências, o clássico calçado europeu e o esportivo calçado norte-americano, que vêm dividindo e estruturando os valores do mercado de calçados masculinos até agora, início do século XXI. Nesse sentido, é importante examinarmos como esses dois "tipos" se constituíram historicamente.

    A preocupação que o dandismo (4) trouxe ao quarda-roupa masculino tem sua origem no vestuário da aristocracia inglesa do final do século XVIII, período que marca a decadência da aristocracia francesa e a consequente preocupação em não utilizar o modo de vestir francês como referência. O exagero de rendas e brocados, os abundantes laços e o pesado pó-de-arroz usados pelos aristocratas personagens da pré-Revolução Francesa são banidos.

    O dandismo criou a imagem do novo homem urbano. Agora, o bom corte, o cuidado com o acabamento das peças, a perfeita queda dos tecidos eram vistos como valor, em substituição aos adornos e exageros dos trajes barroco e rococó. O brilho e aspecto natural dos materiais passam a ser notados, enquanto os calçados masculinos são mais apreciados quando limpos e engraxados. Serem bem fabricados e se apresentarem com formas mais simples, puras e menos mutáveis do que os calçados femininos também os qualificam. Tudo para melhor compor o vestuário masculino. O ideal do período é manter uma postura atemporal, de uma elegância que os modernos irão denominar de anônima, discreta, mas visível.

     

     

    Os calçados masculinos se resumem, desde esse período até hoje, em cinco tipos essenciais: o modelo Oxford (fig 1), um sapato de amarrar original da Inglaterra por volta de 1640; o Derby (fig 2), também de amarrar, mas que difere do Oxford por apresentar na pala uma costura a mão que melhora o calce e que aparece no meio do século XIX; o Monk (fig 3), derivado dos sapatos dos monges do século XV, tem uma fivela no peito do pé como fechamento; o Loafer (fig 4), um sapato mais desestruturado que tem sua origem na Noruega e o Mocassin (5) (fig 5), originário dos índios norte-americanos e canadenses, foi introduzido ao vocabulário dos calçados masculinos durante o século XX, na década de 60.

    Como sabemos, o início do século XX é o período de sedimentação dos processos advindos da Revolução Industrial, e características de padronização e simplificação serão bastante valorizadas juntando-se aos ideais das vanguardas modernas.

    Na Exposição Internacional de Paris em 1925, Le Corbusier escrevendo o manifesto L`Art decoratif d`aujord`hui, contesta o valor social dos itens com excesso de adornos e defende urgência na mudança dos padrões morais e estéticos dos produtos que eram exibidos nos salões da Exposição (6), onde o arquiteto apresentou o seu Pavilhão do Espírito Novo. Estávamos diante de uma polêmica que se assemelhava à levantada pelo período Dandi. Le Corbusier chama a atenção para a importância de percebermos e considerarmos as novas condições de produção oferecidas pela indústria. As mudanças devem incorporar as novas formas de produção e o grau de finalização dos produtos que se tornam mais perfeitos a cada dia, exigindo concepção prévia, pureza de execução, eficiência funcional, enfim, a totalidade dos valores que estruturaram a nova época. Em seu manifesto, Le Corbusier aponta a importância da nova classe social que se forma com a industrialização, o proletariado moderno, e defende que ele possa se beneficiar das transformações positivas proporcionadas pela produção em massa.

    O exemplo dos calçados masculinos que tanto entusiasmaram Corbusier é considerado por Breward como não totalmente original. Adolf Loos (7) já tinha feito relações interessantes a respeito dos sapatos e do vestuário masculino nos seus escritos da época. Loos acredita que as vestes masculinas, principalmente os calçados, alcançaram uma condição de padronização e funcionalidade convenientes às mudanças econômicas e sociais que estavam ocorrendo enquanto, ao contrário, as vestes femininas se repetiam de maneira cíclica. Essas conclusões são levantadas por Loos após sua visita a exibição do Jubileu Vienense, no mesmo ano que a Exposição Internacional de Paris, 1925. Segundo Breward (8), as observações do arquiteto sobre os calçados exibidos durante a exposição vienense podem ser sintetizadas em três considerações.

    Em primeiro lugar, os calçados masculinos, ao contrário dos inúmeros modelos femininos, se restringiam a uma quantidade limitada de tipos, onde facilmente se reconhece o respeito pela fabricação padronizada. Loos entende que esse cuidado em limitar os tipos tem o claro objetivo de encontrar soluções que atendam ao que ele chamou de necessidade natural de conformidade ou seja, de adequação aos processos de fabricação em ritmo industrial. Em segundo lugar, devido ao fenômeno de valorização funcional, os calçados contemporâneos a um mundo mais rápido e veloz deveriam priorizar o conforto ao invés da aparência. Em terceiro, o calçado do período que se iniciava deveria se adaptar às novas condições de saúde e higiene, resultado da rápida urbanização; subentendia-se uma nova maneira, agora moderna, de viver nas cidades.

    Interessante é a maneira como Breward faz a leitura do texto de Loos (9), entendendo que ele considera os calçados masculinos como oportunos para explicitar a nova faceta do homem moderno. Loos elabora uma crítica consciente dos mecanismos de manipulação sociológica quando da escolha das formas para calçar os pés. Essas preferências são regularmente formatadas para exaltar um determinado grupo social e o consequente reconhecimento do seu poder sobre os outros. Loos identifica neste objeto, o calçado masculino do período, uma capacidade de síntese difícil de encontrar. Síntese entre a forma predominante dos calçados, as exigências modernas de padronização, a aceitação para uso universal, a aprovação estética dos grupos sociais dominantes e o diálogo com a condição racional e biológica dos pés.

    Ser ágil no mundo moderno é condição essencial. Nossos pés crescem porque praticamos muito mais atividades físicas: percorremos maiores distâncias a pé, andamos de bicicleta, escalamos montanhas etc. Tais atividades geram tamanhos de pés maiores, e o ideal de elegância baseada em tamanhos pequenos vai desaparecendo lentamente, especialmente para os homens. Os efeitos de valorização pela cultura feminina baseada na sexualidade, distinguem as mulheres no conjunto social e as difere na nova classe proletária moderna que se forma. Não é interessante, nesse período, valorizar as diferenças e, sim, ressaltar as afinidades.

    Loos, no início do século XX, foi o responsável por colocar o calçado com importância fetichista ou produto de moda, introduziu-o como produto de valor econômico, indicador antropológico, sinal semiótico e objeto artístico. O comércio calçadista recebeu essas críticas e se posicionou. Alguns sapateiros, antes mesmo de Loos, já defendiam a importância do calçado como objeto do design e seu consequente compromisso como produto de uso racional e resistente aos efeitos de moda (10).

    Impossível concorrer com um produto como o calçado, fabricado somando o melhor do artesanato com o melhor da tecnologia industrial. Esse é o motivo dele permanecer, do início do século XX até hoje, unindo esses dois universos e sem grandes mudanças.

    Nathan Brown (11), americano de Oregon, nos Estados Unidos, depois de trabalhar por anos em negócios de calçados esportivos tradicionais como a Adidas e a Nike tem uma ambição transformadora para o século XXI nos calçados masculinos, comparada às ambições de Le Corbusier para o início do século XX. Brown sempre se reunia com amigos do segmento e juntos celebravam a paixão pelos sapatos clássicos ingleses e italianos. Depois de fazer parte das equipes desses dois grandes conglomerados, voltou-se ao empreendorismo e estruturou seu próprio negócio perseguindo a reunião do melhor destes dois mundos: o conforto dos calçados esportivos e a aparência elegante dos sapatos tradicionais ingleses e italianos. Como realizar essa tarefa?

    Estruturou em Londres, exatamente em Savile Row (12), a Lodger Shoes, empresa que tem como missão oferecer um sapato masculino com calce perfeito, aliado à melhor matéria-prima (subentende-se o melhor couro) e somado ao máximo de cuidado durante a produção. Em entrevista a revista Wallpaper, Nathan explica que a diferença entre um bom sapato e um excepcional é o tempo gasto na produção com os seus detalhes. Essa tarefa não significa utilizar produção 100% à mão. A tecnologia industrial é extremamente necessária. Por exemplo: algumas partes dos mocassins, como as gaspias podem ser muito bem executadas a mão (13), enquanto em outras a máquina é que oferece as melhores opções de qualidade, como na costura dos solados às palmilhas, nas condições de flexibilidade oriundas das novas matérias que utilizam processos químicos complexos, na resistência ao desgaste pela colagem, no amortecimento de impactos e muitas outras operações.

    Esse apanhado de experiências pretendeu oferecer uma boa oportunidade de reflexão: é o design aplicado ao calçado que, hoje, no Brasil (14) e no exterior, deve refletir a continuidade dessa dicotomia. Por um lado, o consumidor masculino se mantém fiel à tradição e ainda escolhe os mesmos modelos em aparência desde o início do século XX. Por outro, diferentemente da escolha daquele período, hoje ela reflete os valores sociais da nossa época, cada vez mais complexa. Afinado com a cultura contemporânea, o consumidor do século XXI explora ao máximo tudo o que possa ser oportunidade de diferenciação; quer medidas exatas (mas exatas mesmo!), quer conforto, o máximo que possa ser oferecido, quer acabamento, durabilidade, preço justo, bom atendimento, manutenção, originalidade, novos materiais, flexibilidade, leveza, facilidade de reposição, enfim…tudo e mais o que puder ser incorporado ao produto. Desafio e tanto para o design de calçados masculinos do nosso tempo.

     

    Luis Fernando Campanella Rocha é arquiteto, designer de produto, mestre pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (Puccamp), professor pesquisador do Grupo de Pesquisa em Artes, Design e Moda do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Email: lfcampanella@uol.com.br

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Preto e marrom nas suas variações, mais claro, mais escuro, mais avermelhado, mais brilhante etc.

    2. Os ingleses assumem, durante o final do século XVIII, a responsabilidade em criar para produtores e consumidores de calçados a referência para a indumentária masculina do período. A difusão desses calçados se faz pelos artistas da época em todo o globo.

    3. Tênis, denominação de calçado com solados de borracha natural desde 1800 até hoje e que muito se beneficiou da industrialização em seu desenvolvimento, são considerados os produtos que mais incorporam o uso e desenvolvimento tecnológico no início do século XXI.

    4. Dandismo: derivado do termo inglês "dandy", trata-se de um fenômeno cujos contornos sociopolíticos começam a se delinear na virada do século XVIII para o XIX. É o período da regência inglesa (1800-1830), onde a afetação no traje masculino se torna sinônimo de uma postura ideológica pró-aristocrática e da concomitante rejeição dos códigos de conduta e dos valores burgueses. Enquanto estes enfatizam a igualdade, a responsabilidade e a perseverança, o dandy opõe-lhes um sentimento de superioridade elitista, cultivando a irresponsabilidade no decurso de um dia a dia votado ao ócio. Favorece também um intercâmbio de influências com a França, o país mais permeável, nessa época, à voga da "anglomania" e do dandismo. A partir de então, e a fim de sobreviver, o dandismo necessita ganhar novos contornos. E cabe a um dandy francês, na década de 1860, esse papel de revitalização, orientada no sentido da aproximação à arte e da conquista de uma dimensão eminentemente intelectual. Charles Baudelaire é a figura responsável por essa nova configuração do dandismo que, daí em diante, se apoia e se reforça na doutrina da arte pela arte e no esteticismo. 

    5. A maior diferença entre o loafer e o mocassin está no tipo de fabricação e acabamento: o mocassin é construído em uma única peça de baixo para cima, e a sua pala é costurada a mão com pontos largos; já o loafer é fabricado de cima para baixo e tem uma tira com um losango vazado no peito do pé.

    6. Le Corbusier, A arte decorativa, São Paulo: Martins Fontes, 1996.

    7. Arquiteto austríaco,(1870-1933) pioneiro da arquitetura moderna. Sua maior contribuição foi ter confiado nas formas fundamentais utilizadas pelo homem nas suas construções desde os primórdios como solução para a arquitetura. Foi o precursor da nova objetividade e procurou sempre soluções arquitetônicas simples para seus projetos e métodos de construção.

    8. Breward, Christopher; em Fashioning masculinity, Footnotes, pg 125.

    9. Loos, Adolf; Spoken into the void: Collection Essays, 1897-1910, introdução de Aldo Rossi, Cambridge: MIT Press, 1982.

    10. Moda como uso, hábito ou estilo geralmente aceito, variável no tempo, e resultante de determinado gosto, ideia, capricho, e das influências do meio. Novo Dicionário Aurélio.

    11. Wallpaper Magazine, janeiro 2009. http://www.wallpaper.com/fashion/nathan-brown-qa/3008

    12. Savile Row é uma rua comercial situada em Mayfair, centro da capital inglesa, Londres, famosa pela presença dos melhores e mais conhecidos alfaiates por séculos.

    13. Um costurador de palas numa indústria de calçados masculinos é remunerado de maneira diferenciada, com salário dos mais altos na produção, os bons profissionais são muito disputados nos polos calçadistas.

    14. Importante lembrarmos que o Brasil é o terceiro maior fabricante de calçados do mundo.

     

    BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

    1. Benstock, Shari; Ferriss, Suzanne. Footnotes – On shoes. New Brunswick, EUA: Rutgers University Press, 2001.

    2. Carassus, Emilien. Le mythe du dandy.U2. Paris: Armand Colin, 1971.

    3. Eli Adams, James. Dandies and desert saints: styles of victorian masculinity. New York: Cornell University Press, 1995.

    4. Lv, Luo; Huiguang, Zhang; Sneakers. Singapura: Liaoning Science & Technology Press, 2007.

    5. Malcolm. Bradbury and David Palmer. Decadence and the 1890's.New York: Holmes and Meier, 1979.

    6. Moers, Ellen. The dandy: Brummell to Beerbohm. New York: Viking. Press, 1960.

    7. Raymaud, Ernest. Baudelaire et la religion du dandysme. Paris: Editions du Sandre, 1918.