SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.62 issue2 author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

    Related links

    • On index processCited by Google
    • Have no similar articlesSimilars in SciELO

    Share


    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.62 no.2 São Paulo  2010

     

     

    ERA UMA VEZ A MODA… ALGUMAS HISTÓRIAS PARA SE LEMBRAR

    Mara Rúbia Sant'Anna

     

     

    Quem estuda moda e nunca leu James Laver e seu mais famoso livro para nós brasileiros: A roupa e a moda?(1) Qual professor de história da moda, dos mais diferentes níveis de ensino, nunca se apropriou das imagens e descrições que o curador do Victoria and Albert Museum deixou em seus livros e que nos ilustram um passado, descrito como homogêneo e consensual? Certamente, para ambas as questões, a resposta é todos ou quase todos.

    Nada contra os trabalhos de James Laver, de François Boucher, Carl Kohler ou, ainda, o livro de ilustrações de Albert Racinet sobre os costumes dos povos. Cada um contribui a sua maneira para que as aulas e os estudos no campo da história da moda possam ocorrer. Contudo, como qualquer produto humano, ele precisa ser contextualizado por sua autoria, em seu tempo e ao público e objetivos que visava alcançar. Além disso, como a postura científica exige, não se pode tomar como a verdade o que se construiu como conhecimento. É a partir dessas análises e críticas, visando contribuir para um avanço qualitativo no ensino da história da moda, que este texto, pelos limites impostos para a publicação (2), se propõe a suscitar alguns questionamentos aos professores e pesquisadores da moda em nosso país e contextualizar algumas das produções mais usadas nos cursos de moda desenvolvidos presentemente.

    James Laver nasceu no final do século XIX, na cidade de Liverpool em 1899. Educado no Liverpool Institute e no New College Oxford (3), foi um homem do seu tempo e da sociedade inglesa que o cercava. Publicou seu primeiro livro (4) aos 23 anos de idade, demonstrando seu brilhantismo e a cultura erudita que o envolveu em sua educação de filho da elite inglesa. Nessa mesma fase da sua juventude tornou-se curador do Departamento de Gravura, Desenho e Pintura do museu londrino, permanecendo ali até 1959. Veio a falecer em 1975, tendo mais de sete livros publicados, entre outros trabalhos. O seu cargo no Victoria and Albert Museum facilitou enormemente suas possibilidades de pesquisa iconográfica e são exemplares desse acervo que podemos observar fartamente no seu livro traduzido para o português.

    Albert Racinet (5) um grande ilustrador do seu tempo, nasceu em Paris em 20 de julho de 1825 e faleceu em Montfort-l'Amaury em 29 de outubro de 1893 (6). Esse desenhista renomado produziu entre 1875 e 1888, 500 pranchas, 300 coloridas, algumas em ouro e prata, e 200 em preto e branco, mas com a técnica francesa chamada camaïeu. No frontispício da obra vinha descrito que esta trazia os "tipos principais do vestir e do traje, contemplando aqueles do interior das moradias de todos os tempos e de todos os povos, com numerosos detalhes sobre o imobiliário, as armas, os objetos cotidianos, os meios de transporte etc" (7).

    Essa obra contém notas explicativas acompanhando a maior parte das pranchas e uma introdução geral, além de um índice e glossário. Seu lançamento ocorreu pela Editora Firmin-Didot, de Paris, em 1888. Não apresenta qualquer questão relacionada à metodologia empregada para obter as informações sobre os povos antigos que são ilustrados.

    Carl Kohler (8) viveu no século XIX, em um período de fortes transformações na Europa, exatamente entre 1825 e 1876. Seu livro, produzido em 1870, foi publicado somente em 1928. Tem sido reproduzido até hoje, nas mais diferentes línguas e se constitui numa obra de base para a pesquisa, especialmente, da modelagem empregada na confecção de peças antigas. Ele, como seus outros colegas, teve acesso a acervos preciosos, podendo tocar e investigar diretamente as peças que relatava. Algumas de suas fontes foram imagens e relatos das peças, porém boa parte se constituiu do próprio exemplar.

    François Leon Louis Boucher nasceu em Paris em 1885 e faleceu em 1966, na cidade próxima da capital francesa Neuilly-sur-Seine(9). Entre suas profissões é citado como arquivista e paleógrafo e historiador da arte e diretor de jornal. Entre todos os seus trabalhos destaca-se o de conservador e curador do Museu Carnavalet, de Paris e diretor do Centro de Documentação do Costume.

    Coordenou e capacitou dezenas de profissionais da moda no âmbito da pesquisa histórica, entre eles Yvonne Deslandres que possui obras publicadas em sua língua materna sobre a história da moda. Dentre esses livros que citamos, o seu Histoire du costume: en occident de l'antiquite a nos jours (10), publicado em 1965 pela editora Flammarion de Paris, é o único que possui uma introdução na qual é explicado o método de trabalho, a dificuldade do uso das fontes e os recortes temporais e espaciais selecionados, dando ao leitor plenas condições de fazer uma leitura contextualizada empregando o rigor científico em sua produção.

    Com essas breves biografias tínhamos a intenção de insinuar como os escritos, que temos em mãos para o estudo da história da moda, possuem sua própria história. As obras de Kohler e de Racinet, produzidas no século XIX, serviram de inspiração aos seus sucessores e estavam dentro do espírito da época em que foram produzidas. Tinham um forte teor de antiquário e buscavam constituir um arcabouço indiscutível de informação sobre um passado e uma civilidade que a Europa via desaparecer rapidamente, sob o impulso da forte industrialização e modernização de suas instituições. Conjuntamente, nesse cenário europeu, havia a constituição de um discurso nacionalista, ocupado em produzir um passado às nações que se constituíam, homogeneizando suas tradições e aspectos culturais sob a égide de uma nacionalidade compacta (11).

    Renato Ortiz nos fala com propriedade sobre o desenvolvimento de um tipo de pesquisa histórica que começou com os antiquários no século XVIII europeu e que se desenvolveu ao longo do século XIX na proposta romântica de centenas de intelectuais que, buscando resguardar tradições que julgavam ameaçadas de existência e que continham em si a "raiz" das sociedades em que viviam, criaram uma memória social e histórica autorizada e a ser preservada em museus e livros didáticos.

    Gesta-se desta forma uma memória que funciona como um estoque de lembranças. No entanto, nem tudo o que ela abarca é realmente passado; várias de suas manifestações são recentes, mas surgem para as pessoas como algo há muito existentes. Neste sentido, pode-se falar da invenção das tradições (…). O fato de celebrá-las faz com que se esqueça sua idade, sua origem atual, camuflada pelo tempo imaginado. A "tradição criada" confere a ilusão de perenidade, reabilitando o nexo entre o presente e o pretérito reconstruído (12).

    Portanto, o que alguns dos autores citados fizeram foi se imbuir de um espírito de antiquários românticos e produzir, a partir das pesquisas que realizavam sobre os acervos que trabalhavam, uma visão homogênea e pacífica da produção e usos das roupas, como se estas sintetizassem toda a sua época e sociedade.

    Barthes, em seu texto de 1959 "Linguagem e vestuário" (13) também alerta que o trabalho de sintetização de muitos autores sobre as formas e meios das sociedades se vestirem têm uma historicidade precisa e que deve ser analisada antes de acatar os produtos desses trabalhos como verdade.

    Nas palavras de Barthes:

    "A história dos trajes só começou realmente com o romantismo, e entre os teatrólogos; como os atores quisessem representar seus papéis em trajes de época, pintores e desenhistas iniciaram uma pesquisa sistemática sobre a verdade histórica das aparências (vestuário, decoração, mobília e acessório), em suma, daquilo que se chamava justamente costume. Portanto, o que se começou a reconstituir foram essencialmente personagens, e a realidade buscada era de ordem puramente teatral; reconstituíam-se francamente mitos (reis, rainhas, senhores feudais); a primeira consequência dessa atitude foi que o vestuário era apreendido senão num estado antológico: era o atributo de uma raça precisa, selecionada em vista do drama romântico; era como se o povo nunca tivesse se vestido; a segunda consequência – talvez mais importante do ponto de vista do método – é que o pintor colocava toda a sua atenção sobre o pitoresco e não sobre o ordinário, sobre os acessórios e não sobre a sistemática. Talvez, paradoxalmente, as facilidades do desenho tenham prejudicado muito a história dos trajes: a representação gráfica, espontânea, afastava todo esforço especulativo, pois se atualizava imediatamente uma generalidade mal estabelecida. É por isso, a meu ver, que as ilustrações mais corretas metodologicamente são os desenhos claramente esquematizados, aqueles que pretendem entrever um estado ordinário, quase abstrato, do sistema vestimentar de uma época, como por exemplo o de N. Truman em Historic Costuming". (14)

    Tal como Ortiz, Barthes aponta o romantismo como o momento histórico em que as histórias dos trajes se multiplicaram e, bem contextualizadas, essas histórias serviam a um fim cênico que explica suas preocupações com os detalhes, o exagero e a estereotipagem de uma personagem e de uma época. Um exemplo claro entre os autores trabalhados é o de Albert Racinet.

    Segundo Barthes, a partir de 1850 as pesquisas arqueológicas substituíram os trabalhos de cunho romântico e cada traje buscou ser descrito detalhadamente, enquadrando-os numa cronologia que seguia os reinados dos povos europeus. O trabalho de James Laver e Carl Kohler tem esse perfil. Tal como no período anterior as pesquisas careciam de rigor metodológico e se reduziam a descrição, a mais pormenorizada possível, dos trajes encontrados em pinturas, desenhos e relatos. Nessa postura que podemos chamar de historicista, nas palavras de Barthes, "a peça não passa de acontecimento; o problema é datá-lo (…) recensearam-se fatos, não valores" (15).

    Para o fim do século XIX, uma postura de maior sistematização, buscou relacionar o vestuário com a sociedade que o produziu, criando um argumento que se ouve frequentemente, qual seja, "a moda reflete a sociedade na qual foi produzida". Para essa postura teórica, Barthes indica a tentativa de "postular uma transcendência dos trajes"(16), como se houvesse uma impregnação do tempo nas coisas e elas se assemelhassem por uma simples coincidência temporal. Gilda de Mello e Souza em seu livro O espírito das roupas (17) defende essa teoria, descuidando da questão que a forma em si não produz o significado, mas o uso, a função a qual esta forma se aplica que se ocupa de dar sentido e nexo aquele significante. Ou como James Laver faz, afirmando categoricamente no início de seu capítulo 9 "De 1900 a 1939": "A moda, como sempre, era um reflexo da época" (18).

    O engano ou simplificação historiográfica se deu a posteriori, quando pessoas imbuídas da vontade de ensinar ou aprender sobre a história dos trajes tomaram esses desenhos e descrições como fiéis às roupas e trajes de um tempo passado em sua generalidade. E aos profissionais e historiadores da moda da atualidade convém o mesmo engano, o mesmo descuido e as reproduções das mesmas amenidades? E mais, cabe-nos discutir a história da moda estudando prioritariamente a história dos trajes, são essas histórias as mesmas? Somos capazes de distinguir com clareza em nossas aulas que a história dos trajes não é a mesma que a da moda?

    Enfim, cabe aos educadores e pesquisadores constituir uma reflexão crítica sobre o passado nos estudantes e profissionais da moda, fazendo dessa experiência intelectual também uma oportunidade de sensibilização diante das sociedades, além de fazer pensar o passado como uma imagem, que se constitui sempre a partir do presente, a fim de servir aos nossos propósitos, também contemporâneos, como Walter Benjamim (19) nos faz compreender.

     

    Mara Rúbia Sant'Anna é doutora em história, professora titular da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) e membro permanente do mestrado em história da mesma instituição. Coordenadora do Laboratório e Grupo de Pesquisa "Moda e sociedade".

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Laver, J. A roupa e a moda: uma história concisa. Tradução Gloria Maria de Mello Carvalho. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

    2. Num outro trabalho a ser publicado futuramente, esse estudo é ampliado com a discussão da importância do uso de fontes visuais e orais para a construção do conhecimento no campo da história da moda.

    3. http://www.archiveshub.ac.uk/news/0307lave.html. Acesso em 25/02/2008.

    4. His Last Sebastian (1922). In: http://encyclopedia.jrank.org /Cambridge/entries/059/James-Laver.html. Acesso em 25/02/2008.

    5. Racinet, A. Histoire du costume. Paris: Bookking international,   1995.

    6. In:http://catalogue.bnf.fr/servlet/autorite;jsessionid=0000QrF7iHLLxBo4nxEcV1nr7ja:-1?ID=12311305&idNoeud=1.1&host=catalogue. Acesso em 25/02/2008.

    7. Idem. "Le costume historique : cinq cents planches, trois cents en couleurs, or et argent, deux cent en camaieu; types principaux du vêtement et de la parure, rapprochés de ceux de l'intérieur de l'habitation dans tous les temps et chez tous les peuples, avec de nombreux détails sur le mobilier, les armes, les objets usuels, les moyens de transport, etc. Recueil publié sous la direction de M. A. Racinet,… avec des notices explicatives, une introduction générale, des tables et un glossaire"

    8. Kohler, C. História do vestuário. [Editado e atualizado por Emma Von Sichart]. Tradução de Jefferson Luis Camargo. São Paulo: Martins Fontes. 1993.

    9. In: http://catalogue.bnf.fr/servlet/autorite;jsessionid=0000qXZhdKVCdsqWMzVGP-P2xUX:-1?ID=12208951&idNoeud=1.5.2.1.1&host=catalogue . Acesso em 03/03/2008.

    10. Boucher, F. History of costume in the west. [with an additional chapter by Yvonne Deslandres]. London: Thames and Hudson. 1987.

    11. Remond, René. O século XIX: 1815-1914. Tradução de Frederico Pessoa de Barros. 7ª. ed. São Paulo: Cultrix. 1997.

    12. Ortiz, Renato. Românticos e folcloristas. Rio de Janeiro: Olho d'água, 1990. p. 27.

    13. Edição em português em Barthes, R. Inéditos, Vol.3 – Imagem e moda. São Paulo: Martins Fontes. 2005. pp. 282–299.

    14. O trecho foi traduzido da edição francesa - Barthes, R. Le bleu est à la mode cette année. Paris: Éditions de l'Institut Frnaçais de la Mode. 2001. p, 49e 50.

    15. Barthes,R. Op. Cit., p. 51.

    16. Idem, p. 52.

    17. Souza, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: a moda no século dezenove. São Paulo: Companhia das Letras. 1987.

    18. Laver,J. Op. Cit., p. 213

    19. Benjamin, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense. 1994.