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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.62 n.2 São Paulo  2010

     

    PATRIMÔNIO

    PRESERVAÇÃO DA HISTÓRIA PARA ALÉM DA ATRAÇÃO TURÍSTICA

     

     

     

    Fincada no Vale do Paraíba, em terras paulistas, a estância turística de São Luiz do Paraitinga é famosa pelo belo casario preservado, parte dele tombado por institutos governamentais de defesa do patrimônio histórico, e por um carnaval animado com marchinhas que todos os anos faz sua população de pouco mais de 10 mil habitantes aumentar em até 10 vezes. No começo de 2010, no entanto, o que levou São Luiz para os noticiários não foram esses atrativos, mas o transbordamento do rio que dá nome à cidade, que a inundou e destruiu ou danificou grande parte dos prédios históricos. A Igreja Matriz, construída no século XVII e símbolo da cidade, desabou com as fortes chuvas e terá que ser totalmente reconstruída. Além dela, mais oito edifícios foram perdidos e cerca de oitenta terão que ser restaurados. Várias outras localidades que concentram importantes conjuntos arquitetônicos de valor histórico, como Ouro Preto e Diamantina, também são cidades com grande fluxo turístico. Tanto o desastre que se abateu sobre São Luiz do Paraitinga como os desafios colocados pelas atividades turísticas nesses centros históricos, trazem à tona a capacidade de manter e preservar prédios históricos por parte do poder público, seja na esfera municipal, estadual ou federal.

    São Luiz do Paraitinga foi declarada estância turística em 2002, elevando para 29 o número de cidades com tal qualificação no estado de São Paulo. Essa condição garante ao município uma verba maior por parte do estado, em geral usada para promoção do turismo. Além de estar perto do litoral, São Luiz tem um conjunto de casas e sobrados tombados pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e/ou pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico), órgão ligado à Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo. Também abriga a casa onde nasceu Oswaldo Cruz, hoje um centro cultural. Segundo Maria Tereza Paes, geógrafa da Unicamp e também conselheira do Condephaat, é um acervo representativo de um período importante da história do Brasil, o período áureo da produção de café. "São Luiz apostou no turismo desde o tombamento", afirma ela. "E essa opção se deu exagerando os traços para tornar o lugar atrativo, sobretudo no período do carnaval. Trata-se de uma direção um tanto equivocada dessa e de outras cidades brasileiras que acabam tornando esse patrimônio monofuncional, como se tais bens servissem apenas ao turismo. Foi o que aconteceu no Pelourinho, que virou um cenário para o turista. Isso entra em contradição, por exemplo, com a vida local", afirma a geógrafa.

    Nesses casos o selo de patrimônio cultural tem a função de agregar valor para a atividade turística. A partir daí ele passa a ser divulgado, sobretudo, por meio de imagens. De acordo com Tereza, ocorre uma espetacularização para o turismo. Por isso o restauro e os procedimentos de manutenção desses bens nem sempre são feitos obedecendo a concepção original dos projetos, mas sim, para forçar a atratividade do olhar turístico. "É como se fosse uma maquiagem", aponta a geógrafa. "A cidade ganha valor e isso é importante, principalmente se você pensar que muitas economias no Vale do Paraíba foram desestruturadas e as cidades empobrecidas por conta da decadência do café. São cidades que ficaram isoladas. Só que, por conta disso, elas também tiveram seu patrimônio preservado. Isso acontece muito no Brasil, inclusive nas cidades históricas mineiras. Boa parte do patrimônio cultural preservado só ficou intacta porque as cidades ficaram marginalizadas do processo de modernização", explica a pesquisadora.

    Para o chefe do escritório técnico do Iphan em Pirenópolis (GO), Paulo Sérgio Galeão, não se pode negar que a turistificação traz riscos para o patrimônio. Na medida em que o município passa a ser assediado pelo turismo é natural que haja especulação imobiliária, alterações nas taxas de ocupação e na natureza de uso dos imóveis já que muitos passam a ser aproveitados para fins comerciais. Em geral, é mais fácil lidar com imóveis públicos pois aí a preservação pode seguir sem tantas interferências nos elementos arquitetônicos. No entanto, quando um imóvel tombado pertence a iniciativa privada é necessário fazer concessões. Foi o que aconteceu recentemente no Palacete Lellis, construção de 1920, que fica no centro velho da cidade de São Paulo, área em processo de revitalização. Pela nova determinação do Condephaat, o prédio poderá sofrer modificações internas, desde que sua fachada seja mantida intacta. A ideia é que, por meio da fachada, seja possível conhecer a história de um bem como um todo. "Nosso objetivo é proteger o essencial de determinada ambiência. Quando se trata de um bem privado temos que, ao mesmo tempo olhar com muita parcimônia os objetivos dos proprietários em relação aos nossos objetivos preservacionistas", diz. "Não podemos esquecer que a movimentação trazida pelo turismo também é positiva, traz benefícios para a comunidade. A gestão de um bem coletivo é uma arte", complementa.

    EQUILÍBRIO NECESSÁRIO O turismo agrega valor econômico, trazendo recursos para essas cidades, até mesmo para o restauro dos bens arquitetônicos, e gera empregos para população local. Porém, há impactos como vandalismo e pressão na infraestrutura local, além, é claro, de usos equivocados desses bens culturais. "Grandes faixas ou letreiros comprometem a visualização do bem tombado", exemplifica. E é aí que entra a fiscalização. Muitas vezes o Iphan e o Condephaat têm regulamentação específica para uso de bens tombados, mas o poder municipal não tem, causando prejuízos para o patrimônio como um todo. O que se configura, então, é um jogo que tenta equilibrar o valor econômico e o valor cultural, questão presente nas discussões sobre patrimônio, não só no Brasil, mas em todo mundo.

    O trabalho de reconstrução em São Luiz do Paraitinga segue a tendência fachadista, que remete à cenarização do patrimônio. Somente as fachadas do casario não podem ser modificadas, a parte interna dos imóveis sim. Já a Igreja Matriz está sendo reconstruída seguindo exatamente o que havia antes das enchentes. "Estamos tentando salvar o maior número de elementos da igreja para configurar originalidades para esses prédios acidentados", conta Sérgio Galeão, que coordena a reconstrução na cidade. Ele ressalta, entretanto, que esse processo é, sobretudo, um trabalho de reinterpretação que tem que considerar o acidente e outras mudanças. "Não é nosso objetivo suprimir as marcas do tempo. Vamos tentar reproduzir os cenários de antes, mas com as devidas cicatrizes", disse ele. A pesquisadora da Unicamp, Maria Tereza Paes, questiona até que ponto é correto fazer modificações em um bem tombado. "É difícil definir o que é real e o que é autêntico. O patrimônio cultural pode ser considerado em risco quando é muito alterado mas, por outro lado, temos uma tendência a nos aceitar como uma sociedade híbrida, com vários elementos misturados", diz ela. Os famosos castelos medievais na Europa são resultado de várias alterações para chegar ao que vemos hoje. A história é dinâmica, não é algo congelado.

    ALÉM DO TURISMO O retorno a um processo de valorização dos núcleos históricos brasileiros ocorre em um momento em que esses núcleos já são vistos também como produtos comerciais de consumo cultural. Por isso a associação com o turismo parece natural para localidades como São Luiz do Paraitinga. Um exemplo disso são algumas festas ligadas à religiosidade rural que começam a atrair turistas. "Há o risco aqui de forçar a população envolvida nesses rituais a se adaptar ao tempo do turismo, mudando até mesmo o calendário original das festas. Elas entram também em processo de falseamento e espetacularização", conta Tereza. Uma alternativa, que já ocorre em alguns lugares, é fazer duas festas, sendo uma exclusivamente para atender ao turista. "Acredito que é uma boa saída porque não há perda de sentido. Não podemos descartar soluções que insiram um bem cultural, com conhecimento local, na forma de produção capitalista. Se a partir dele a população conseguir um canal para se desenvolver, tanto melhor", defende Tereza.

    No fim do ano passado o Iphan organizou o I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural, na cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais. Uma das questões discutidas foi buscar outros modos de incentivar o desenvolvimento econômico de localidades ricas em patrimônio, além do turismo. Um exemplo seriam atividades ligadas à população local como capacitação para os ofícios do restauro ou criar novas atividades econômicas para essa população, além do trabalho de conscientização para valorização do patrimônio. "O bem tombado só ganha legitimidade quando o valor atribuído a ele tem ressonância na população e não só na política pública", afirma Maria Tereza Paes.

     

    Patrícia Mariuzzo