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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.62 no.2 São Paulo  2010

     

     

    Leila Guenther

     

    O DOM DO JASMIM

     

     

    Ela era destruição. Não podia negar que não fosse. Que não carregasse, como uma cicatriz, o sinal dos párias. O toque de Midas ao contrário, de modo a arruinar tudo o que tocasse. E ela não sabia não ser assim. Por várias vezes tentara, mas, antes de olhar para baixo, vinha a vertigem que lhe roubava a corda sobre a qual se equilibrava. E, quando dava por si, já tinha posto tudo a perder. Não era como uma tentação que se acercava: era como se ela fosse o próprio diabo caído. Tinha uma necessidade brutal de chacoalhar tudo, de tornar as coisas vivas a seu modo, pela violência, pela crueldade, pela dor. Para sobreviver a isso, alguns fugiram, mas, quando davam por si, tudo o que desejavam era ter de volta aquilo que os matava, buscando, de forma patética, o que haviam desdenhado com horror. Porque o extremo das coisas sempre fascina. Porque os vivos preferem existir no limite. Ele, ao contrário dos outros, tinha permanecido, mas, para compor a frágil estabilidade que lhe permitisse viver dela sem morrer disso, viajava com frequência sob diversos pretextos. Ela fingia acreditar neles. Quando ele partia, ela punha o perfume que ele tanto odiava porque lhe lembrava o cheiro da morte, dos cemitérios abandonados onde algumas plantas secam e outras vicejam em desordem. Ela punha o perfume para si mesma, sem saber que com isso realçava sua sina. Ela o usava até que ele voltasse. E ele voltava, pois sabia afinal que o espetáculo de um vulcão em erupção não era menos belo só porque assolava uma cidade.

     

    TRIUNFO

    Quando Narciso nasceu, o cego Tirésias, que já vira o que era ser homem e o que era ser mulher, anunciou aos pais do belo menino que este viveria bastante e que durante muito tempo só saberia enxergar a si mesmo. Os pais, o deus Cefiso e a ninfa Liríope, não ficaram surpresos com o destino: com uma origem tão nobre, seria difícil que Narciso não se achasse, em sua longa existência, o centro do mundo.

    As épocas transcorreram sem que Narciso fosse tocado pelo amor, que, no entanto, despertava tragicamente nos outros: a ninfa Eco, desesperada de paixão não-correspondida, enlouqueceu, passando a repetir o nome do amado para qualquer coisa que lhe dissessem, o jovem Amínias se suicidou com uma espada dada pelo próprio Narciso. Santos, pecadores, pintores e outros artistas o amaram sem que ele percebesse, tão concentrado estava na imagem de si mesmo. Até que, um dia, ao buscar seu reflexo numa fonte, como costumava fazer no exercício do amor-próprio, viu lá dentro o corpo de uma jovem afogada. Foi a primeira vez que Narciso viu algo mais bonito que ele próprio. Não se sabe se por amor àquela imagem ou por ódio de sua beleza, ele se matou, afogando-se ali também.

    Nesse lugar nasceu uma flor, a que deram o nome de ofélia.

     

    Leila Guenther nasceu em Blumenau, Santa Catarina. Formou-se em letras pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente trabalha como revisora de texto em Campinas, onde mora. Em 2006 publicou o livro de contos O vôo noturno das galinhas (Ateliê Editorial). Com Paulo Franchetti, contribuiu com o conto "Inscrição" para o livro Quartas histórias: contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa (Garamond, 2006). Em 2008, participou do livro Capitu mandou flores: contos para Machado de Assis nos cem anos de sua morte (Geração Editorial) com o conto "A outra causa", uma releitura de "A causa secreta". Desde o começo de 2009, mantém o blog http://nalinhadavida.blogspot.com/.