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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.62 no.3 São Paulo  2010

     

     

    BIOPROSPECÇÃO

    Burocracia ainda emperra acesso ao patrimônio genético nacional

     

    Thomas Lovejoy, pesquisador do Heinz Center for Science, Economics and Environment de Washington, nos Estados Unidos, começou a sua palestra em comemoração ao Dia Internacional da Biodiversidade, no Palácio dos Bandeirantes, em São Paulo, falando do captopril, um medicamento anti-hipertensivo desenvolvido a partir de um peptídeo isolado do veneno da jararaca. A molécula, descoberta pelos cientistas Maurício Rocha e Silva e Sérgio Ferreira, em 1949 (e publicada na primeira edição da Ciência e Cultura), serviu de base para o desenvolvimento da droga bilionária pela multinacional Squibb, sem que o mérito pela descoberta fosse atribuído aos pesquisadores brasileiros. Um dos mais importantes formuladores do ambientalismo internacional, Lovejoy não tocou no assunto à toa. A bioprospecção, ou seja, a utilização de material biológico com a finalidade de explorar os recursos genéticos de forma a garantir o uso sustentável é um dos temas mais debatidos na atualidade.

    Abrigando cerca de 20% da biodiversidade e 22% das espécies de plantas superiores do mundo, o país não possui legislação que regulamenta de forma eficaz o acesso a esses recursos para fins de pesquisa.

     

     

    "A regulamentação vigente é um tiro no pé da ciência brasileira", diz Vanderlan da Silva Bolzani, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Química (SBQ) e uma das coordenadoras do Biota, Programa de Pesquisas em Caracterização, Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade do Estado de São Paulo financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Lançado em março de 1999, o Biota-Fapesp envolve mais de 1.200 profissionais, entre pesquisadores de São Paulo e colaboradores brasileiros e do exterior. "Não fizemos uma coleta sequer em quatro anos", afirma Vanderlan, referindo-se ao seu grupo de pesquisa. Os estudos só não estão parados graças à extratoteca montada com o material coletado em 1998, quando se conseguiu licença. Segundo a pesquisadora, a burocracia é o principal entrave para o projeto que desenvolve, cujo objetivo é a busca e o estudo de moléculas com potencial farmacológico entre espécies do Cerrado e da Mata Atlântica. "O governo dá dinheiro e ele próprio inviabiliza que a ciência seja feita", lamenta.

    REGULAMENTAÇÃO O Brasil foi um dos primeiros países signatários da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), primeiro marco mundial no sentido de regulamentar o acesso à biodiversidade, assinado durante a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CNUMAD), em 1992 no Rio de Janeiro. Atualmente, a convenção conta com 198 países integrantes.

    Antes considerado como patrimônio da humanidade, o acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais de comunidades locais e povos indígenas passou, depois da CDB, a ser regulamentado por cada país. Para atender às exigências da convenção, foram feitas modificações na legislação brasileira, com a Medida Provisória (MP) nº 2.186-16 de 2001 e o Decreto nº 4.946 de 2003, que criou o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), órgão vinculado ao Ministério do Meio Ambiente (MMA) responsável pela autorização de toda e qualquer atividade de acesso, remessa, uso, desenvolvimento tecnológico, que venha a utilizar recurso genético existente e de origem nacional.

    Apesar das medidas iniciais de regulamentação do acesso ao patrimônio genético brasileiro, muitos estudos não saem do papel ou são interrompidos devido aos entraves burocráticos. "As normas têm que ser claras para que os agentes que pretendem estudar a biodiversidade nacional possam cumprir com as exigências", diz Divina Aparecida Leonel Lunas Lima, a professora da Universidade Estadual de Goiás (UEG) e doutoranda em desenvolvimento econômico na área ambiental pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Como exemplo, Divina aponta a regulamentação referente ao acesso ao conhecimento tradicional. "O conhecimento tradicional facilita muito, porque os povos já sabem para que determinada planta serve, o que economiza anos de pesquisa", afirma. No entanto, as regras vigentes ditam que o pesquisador precisa da autorização de todos que manipulam aquela planta e que detêm aquele conhecimento, o que inviabiliza boa parte das pesquisas.

    Em setembro de 2009, um anteprojeto de lei sobre pesquisa com acesso ao patrimônio genético e à biodiversidade brasileiros foi enviado à Casa Civil, através de um Aviso assinado pelos ministros Sergio Rezende, do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), e Carlos Minc, do Ministério do Meio Ambiente, mas ainda sem prosseguimento. Segundo o documento, a medida provisória, única regulamentação vigente até hoje, "tem criado restrições ao desenvolvimento da pesquisa científica nacional, não atingindo sua finalidade legislativa de regular o acesso, combater a biopirataria e repartir benefícios, estimulando a pesquisa científica".

     

     

    RIQUEZAS O Brasil integra o seleto grupo dos 17 países megadiversos, que concentram 70% das espécies do planeta. Segundo o MMA, a biodiversidade é responsável por cerca de 45% do PIB brasileiro e corresponde à 31% das exportações do país. Na década de 1990, o debate se voltou para as possibilidades que a biodiversidade tinha para gerar riquezas e produtos em vários setores, como medicamentos e cosméticos. "A questão da biodiversidade, para nós economistas, é um novo marco para o desenvolvimento dos países", diz Divina Lima.

    Para a pesquisadora, a criação de uma política nacional de preservação da biodiversidade é fundamental para vencer o excesso de burocracia e entrar com força no mercado mundial, preservando o meio ambiente. Ao não permitir o acesso pela regulamentação formal, incentiva-se o caminho informal, da biopirataria (box).

    "A atividade é lucrativa e as indústrias têm interesse e já começam a provocar alterações na legislação de acesso à biodiversidade", lembra a professora da UEG. A lei de acesso à biodiversidade, nesse sentido, além de facilitar a pesquisa nacional, é também necessária para regulamentar eventuais abusos vindos dos interesses financeiros.

    Alguns avanços recentes foram alcançados no sentido de facilitar o trabalho de instituições que fazem atividades de pesquisa com biodiversidade. O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) foi credenciado pelo CGEN/MMA, em dezembro de 2009, para fornecer autorizações de acesso ao patrimônio genético, desde que exclusivamente para pesquisa científica, assim como já faz o Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Somente o CGEN/MMA pode autorizar o acesso ao patrimônio genético para pesquisas que envolvam bioprospecção ou desenvolvimento tecnológico. Em abril deste ano, após um mês de testes do sistema, o órgão de fomento do MCT colocou no ar o seu formulário online para pedidos de acesso ao patrimônio genético.

    Para Carlos Alberto Pittaluga Niederauer, coordenador do Sistema de Autorização de Acesso ao Patrimônio Genético do CNPq, a demanda por pedidos de licença nesse curto período de funcionamento do sistema "está dentro do previsto". As propostas devem ser remetidas ao CNPq pelo representante legal da instituição, pois a autorização é institucional e não individual. Segundo Niederauer, se a solicitação estiver completa, com toda a documentação exigida, a previsão é que a autorização seja concedida entre 15 e 30 dias. "A expectativa é pelo aumento no número de solicitações de acesso ao patrimônio genético para pesquisa científica. Entendemos que ao incrementar a geração de conhecimento criaremos, com o tempo, maior demanda para bioprospecção", diz.

    A SBPC apresentou, durante a 4ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (CNCTI), realizada no final de maio, em Brasília, um documento propondo a nomeação de uma comissão para coordenar os trabalhos de elaboração de anteprojetos de lei dos diferentes ministérios, com o objetivo de consolidar uma só proposta de nova legislação, simplificando as etapas burocráticas necessárias e capaz de instituir uma Política Nacional de Biodiversidade. Agilizar o processo de bioprospecção no Brasil permitirá maior dinamismo no trabalho de investigação, descoberta, preservação da biodiversidade brasileira, e, com sorte, lançar no mercado novos produtos, como o captopril, mas com o mérito nacional reconhecido.

     

    Ana Paula Morales