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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.62 n.3 São Paulo  2010

     

     

    MEDICAMENTOS

    Fitoterápico não é panaceia

     

    Na mitologia grega, Panacea era a deusa da cura, filha de Asclépio (Esculápio, na mitologia romana), o deus da medicina, tão hábil em cirurgia e no uso de plantas para curar doenças que Zeus o matou com um raio, achando que mortos estavam sendo ressuscitados. Panacea aprendeu com o pai o poder curativo das ervas. A palavra panaceia, hoje, significa remédio para todos os males e, para muitos, sinônimo dos medicamentos produzidos a partir de plantas e utilizados no mundo inteiro.

    O uso indiscriminado dos fitoterápicos, porém, pode trazer consequências graves para a saúde. Afirmações do tipo "fitoterápico não faz mal porque é remédio natural" ou "planta medicinal se bem não faz, mal também não faz", não são verdadeiras. A lista de exemplos que as desmentem é longa. Plantas como aroeira brava (Lithraea brasiliensis March), avelós (Euphorbia tirucalli L.) e buchinha (Luffa operculata Cogn) possuem substâncias que se ingeridas podem causar intoxicação.

    No Brasil, para ser comercializado um fitoterápico deve ter registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), responsável pela qualidade, segurança e eficácia do produto, utilizando requisitos similares aos requeridos para os medicamentos convencionais. "O controle de fitoterápicos é até mais rígido do que de medicamentos convencionais para desvinculá-los da ideia de que são produtos de qualidade inferior ou sem risco", afirma o professor Wagner Luiz Barbosa Ramos, da Universidade Federal do Pará (UFPR), farmacêutico de formação, com mestrado em química e doutorado em ciências naturais.

     

     

    Conforme dados de Andréia de Freitas no estudo "Estrutura de mercado do segmento de fitoterápicos no contexto atual da indústria farmacêutica brasileira", o segmento brasileiro de fitoterápicos faturou, entre novembro de 2003 e outubro de 2006, em torno de R$ 1,8 bilhão. Esse valor refere-se somente aos fitoterápicos industrializados, não envolvendo o mercado total de produtos obtidos de plantas medicinais. Existem ainda os fitoterápicos manipulados, os produtos cadastrados na Anvisa como alimentos ou cosméticos, além dos produtos artesanais e planta medicinal in natura, utilizados amplamente na medicina popular. Conforme salienta Antonio José Lapa, professor da Universidade Federal de São Paulo, "ninguém sabe ao certo qual o valor total do mercado de fitoterápicos; o que temos são estimativas, a partir das vendas feitas pelas indústrias". Lapa, especialista em farmacologia, destaca que grande parte do mercado de fitoterápicos no Brasil se dá de modo informal. "O que em geral se considera é que o mercado de fitoterápicos movimenta algo em torno de 10% do mercado de fármacos", acrescenta Lapa.

     

     

    Dentre as plantas que mais possuem registro na Anvisa na forma de seus derivados para obtenção de fitoterápicos estão o gingko (Ginkgo biloba L. ), ginseng (Panax ginseng A.A.Mey), boldo-do-chile (Peumus boldus Molina), maracujá (Passiflora incarnata L.) e arnica (Arnica montana L.). Essas espécies figuram entre as 34 previstas na lista de registro simplificado de fitoterápicos (RE nº 89/04), ou seja, não precisam comprovar critérios de segurança e eficácia terapêuticas, e são reconhecidos pela comunidade científica.

     

     

    O uso de plantas em comunidades tradicionais está apoiado em um conhecimento consolidado por séculos de observação. Maria de Fátima Barbosa Coelho é agrônoma e professora da Universidade Rural do Semi-Árido (Ufersa), no Rio Grande do Norte, e desenvolve pesquisas com etnoconhecimento e conservação de recursos genéticos. Trabalha com plantas medicinais e já conviveu com populações tradicionais de diversas regiões brasileiras. "As pessoas com quem mantive contato não fazem uso indiscriminado de plantas. Em geral, são os mais velhos que detêm conhecimentos sobre as diferentes respostas a plantas de indivíduos da comunidade com o mesmo problema de saúde".

    Para Maria de Fátima, aspectos como dosagem, época e cuidados na coleta da parte da planta a ser usada, horário para ingerir o remédio e como se resguardar após tomá-lo, são indicados quase sempre com muita ênfase. E salienta: "no Cerrado de Mato Grosso, onde populações tradicionais usam mais de 550 espécies, os efeitos colaterais são conhecidos, mesmo quando não existe pesquisa oficial sobre a planta".

    O mesmo não pode ser dito de pessoas que ouvem falar de uma planta e, sem saber de detalhes de uso, fazem um chá e acham que isso resolve.

    Nas últimas décadas, a ampliação do consumo de fitoterápicos e a crescente participação da indústria farmacêutica geraram a necessidade de se normatizar a produção e comercialização em larga escala. Wagner Luiz Barbosa Ramos, professor da Universidade Federal do Pará, explica que hoje existe um grande esforço por parte de órgãos governamentais brasileiros para formular diretrizes para registro de medicamentos fitoterápicos e para revisar normas técnicas de produção e comercialização desses produtos, levando em conta os avanços científicos na área.

    Valdir Veiga Jr., engenheiro químico e professor na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), assinala que os fitoterápicos devem ser padronizados, suas atividades farmacológicas devem ser estabelecidas conforme sua composição e somente então as doses terapêuticas podem ser definidas, para evitar uso em quantidades tóxicas.

    Na literatura científica são relatados inúmeros casos de toxicidade de plantas medicinais. Nos grandes centros urbanos do Brasil, parte da comercialização desses produtos é feita em mercados e feiras populares, de difícil fiscalização, e na crença de que não possuem efeitos colaterais. Em artigo publicado em 2004 na revista Química Nova, Veiga Jr. e colaboradores destacam que plantas medicinais, como ginkgo e o alho (Allium sativum L.), podem influenciar negativamente no tratamento de doenças como Aids e câncer.

    RESPONSABILIDADE A mídia tem um papel importante na divulgação rigorosa e cuidadosa do conhecimento científico disponível sobre fitoterápicos. Recentemente, por exemplo, matéria com chamada na primeira página de um jornal paulista de grande circulação, apontou o avelós como possível primeiro quimioterápico nacional, eficaz no tratamento de câncer. "Divulgar uma notícia como essa é perigoso, especialmente quando se observa o desespero de pessoas com familiares com câncer em estágio terminal", considera Veiga Jr.. "A formulação errada pode provocar mais estragos que a própria doença".

    O avelós é uma planta de origem africana, encontrada nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, que produz uma seiva semelhante ao látex. A pesquisa visando sua aplicação no tratamento de câncer é do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa (IIEP), associado ao Hospital Albert Einstein, em São Paulo. A Anvisa estabelece que um estudo clínico deve ser feito em cinco fases. Os testes da fase pré-clínica, com diversos tipos de tumores sólidos, apontaram resultados positivos. Atualmente, a pesquisa está na fase 2, de estudo terapêutico piloto, cujo objetivo é demonstrar a atividade e estabelecer, em grupos de 100 a 200 pessoas doentes, a segurança a curto prazo do princípio ativo. Pesquisas desse tipo geram muitas expectativas. "O que está sendo estudado", esclarece o professor Valdir, "é a atividade de uma substância que está presente no látex". Ele salienta: "há diversas outras substâncias presentes no latex do avelós, várias delas muito tóxicas". As plantas medicinais fazem parte da cultura de comunidades do interior do Brasil. Para Maria de Fátima, em comunidades isoladas dos grandes centros, o acesso a médicos é inexistente ou muito precário, o acesso ao SUS é difícil e fitoterápicos são praticamente a única alternativa. Ela alerta que "um dos grandes problemas que as comunidades enfrentam hoje é o desinteresse dos jovens em relação ao uso de plantas. Muitas vezes, se deslocam para as cidades maiores, em busca de empregos ou de educação formal, e passam a encarar sua cultura como inferior e a considerar o uso de plantas um atraso".

    Veiga Júnior acrescenta que o conhecimento tradicional do uso de plantas medicinais tem sido perdido com essa aculturação. Não há mais a identificação inequívoca da planta; do local em que deve ser cultivada, se no sol ou na sombra; do horário e época do ano em que deve ser coletada; da forma de preparo, etc. "A perda desse conhecimento aumenta enormemente a possibilidade da planta medicinal não surtir efeito ou, ainda, ter um efeito deletério".

     

    Leonor Assad