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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.62 n.3 São Paulo  2010

     

     

    ENTREVISTA: LEO BURD

    Uso de tecnologias prepara crianças a se tornarem cidadãs do mundo moderno

     

     

    O brasileiro Leo Burd assumiu recentemente o cargo de pesquisador no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos, com a meta de concretizar um sonho: criar e implementar tecnologias para estimular crianças a participar efetivamente como cidadãs em suas comunidades, especialmente as carentes. Interligando mapas, internet e telefonia, Burd acredita que a tecnologia, aliada a outras ações, é uma ferramenta importante de empoderamento social desse grupo que, segundo ele, é marginalizado de maneira não óbvia. "Colocamos muita expectativa em cima dos jovens, o futuro está em suas mãos, mas nunca ajudamos a prepará-los para que se tornem cidadãos do mundo moderno".

    Formado em ciências da computação pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), Burd desenvolveu softwares para educação durante o seu mestrado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e buscou novos métodos para pensar tecnologias para crianças em seu doutoramento pelo MIT. Nesta entrevista, realizada em seu escritório no Media Lab, em Cambridge, ele conta sobre o recém lançado Department of Play (DoP) – aqui traduzido como Secretaria do Brincar – do qual ele é co-fundador. Destacou como as ideias do arquiteto Nicholas Negroponte, cofundador do Media Lab, se concatenaram para criar um ambiente de estímulo à criatividade e experimentação, em um local que inova nos métodos de desenvolvimento de novas tecnologias e novas mídias.

    Quais são os objetivos do Ministério do Brincar?

    O DoP é recente, foi fundado em novembro do ano passado. Nosso objetivo é criar incentivos para ajudar crianças a se tornarem cidadãs ativas em suas comunidades locais, redescobrindo a rua, explorando o bairro de uma forma que seja interessante para elas e que contribua para que tenham uma participação ativa nas decisões não só do bairro, mas também de suas vidas. Acreditamos que a tecnologia pode ajudar nisso, de muitas maneiras.

    Por que o foco em crianças?

    As crianças, hoje em dia, são muito oprimidas ou deixadas de lado, tanto em famílias de baixa quanto de alta renda. São marginalizadas de uma maneira não óbvia. A criança vai para escola de manhã, faz alguma atividade e depois volta para casa. O tipo de contato que ela tem com o mundo externo e com a sociedade de uma forma mais ampla é muito restrito. E o contato com os adultos tende a ser muito de cima para baixo, muito dirigido. A criança que sempre teve que obedecer ordens e ficar em ambientes condicionados, de repente completa 18 anos e é considerada cidadã do mundo. Que opinião essa pessoa vai ter se nunca teve oportunidade de testar suas próprias ideias no mundo? Colocamos muita expectativa em cima dos jovens, o futuro está em suas mãos, mas nunca ajudamos a prepará-los para que se tornem cidadãos do mundo moderno; é uma área muito deficiente.

    Quais ferramentas vocês estão desenvolvendo para as crianças e quais os impactos observados?

    É tudo muito recente, não podemos falar em impacto ainda. Estamos focando o nosso trabalho principalmente em duas ferramentas. Uma delas, desenvolvida por Jeffrey Warren, do Grassroots Mapping [mapeamento "do povo"], permite que as próprias crianças façam o mapeamento do bairro em que moram. A outra, chamada "What's Up?" [e aí?], vem sendo desenvolvida desde o meu doutorado, e é um sistema de notícias do bairro combinando telefone com computador.

    Para o mapeamento do bairro, uma câmara fotográfica de baixo custo é presa a um balão ou a uma pipa, a criançada sai carregando o balão ou a pipa pela comunidade e a câmera tira fotografias a cada 10 segundos. Depois elas baixam o balão, pegam as fotografias e põem no computador. Desenvolvemos um software que as ajuda a organizar as fotos e a criar mapas das comunidades. Elas podem fazer anotações dos lugares que gostam ou não, onde moram, onde é a escola. O enfoque que estamos trazendo para o trabalho do Jeff, por meio do DoP, é como tornar essas ferramentas acessíveis para as crianças, principalmente por meio de um editor de mapas para crianças que seja fácil de ser usado, icônico, que permita que elas marquem pontos no mapa, gravem histórias, associem histórias com os diferentes lugares usando a voz. A voz é subutilizada em computação hoje. O fato de você poder gravar sua voz e ouvir seu sotaque, os ruídos do ambiente, é algo muito pessoal e significativo.

    Jeffrey trabalhou muito com uma favela em Lima, no Peru, e era uma favela que pelo mapa oficial da cidade só tinha duas ruas, mas entre essas duas ruas moram dez mil pessoas. Os líderes comunitários começaram a ver os mapas como um ótimo recurso para organização da comunidade e marcação das áreas que precisam de maior enfoque. É divertido, simples e fácil de montar.

    E como funciona o sistema de notícias do bairro?

    A ideia do "What's Up?" é desenvolver uma ferramenta que não exija que as crianças tenham acesso frequente ao computador nem que sejam alfabetizadas. Ligando para um número gratuito ou acessando o site, as crianças podem organizar eventos no bairro, como festas, jogos, apresentações, discussões políticas, justamente para quebrar a barreira de que não sabemos o que está acontecendo no bairro. Queremos colocar as crianças não só como repórteres, mas também como agentes da organização desses eventos. Acreditamos que nesse processo, a criançada é forçada a entender como a comunidade funciona. Precisam entrar em contato com o governo local se querem bloquear a rua, com os comerciantes para conseguir materiais emprestados para a festa. Acabam se expondo mais, mas de uma maneira positiva. Há muitos projetos em que as crianças identificam problemas no bairro, mas isto tende a colocá-las em uma posição de confronto e relatam problemas. Se a criançada gosta de jogar bola, então vamos organizar um campeonato; tudo em cima de atividades que elas já estejam interessadas, mas ampliando para o resto da comunidade.

    O sistema pode ser acessado tanto via telefone comum, como via computador. Todos que se registram ganham uma conta, um ramal pessoal e uma caixa de mensagem de voz. Ao acessar o sistema, a criança entra no menu principal, que apresenta uma série de possibilidades: deixar um recado gravado para um amigo ou para um grupo, gravar anúncios para a comunidade, divulgar eventos. O sistema é interligado, ou seja, se a criança gravar um anúncio de evento via telefone, a mesma informação ficará também disponível no site.

     

     

    Quando comecei a desenvolver a tecnologia, minha ideia era criar um sistema de telefonia para crianças, mas a criançada quis um portal na internet, algo mais concreto, que pudessem fazer referência. Criamos um site com um mecanismo para gravarem suas próprias vozes. Ficaram muito contentes até que descobriram que o sistema tinha mais de mil mensagens para serem gravadas. Começaram a gravar, ficaram cansados, e no sistema final o resultado foi a combinação de diversas vozes. Menina, rapaz, computador: a voz da comunidade, o que foi muito interessante. Um efeito colateral disso é que hoje fica relativamente fácil traduzir o sistema para várias línguas. Crianças com dialeto na Índia, índios mexicanos usando o sistema com a voz deles, gente no Brasil falando tupi, e por aí vai.

    Estamos revivendo o "What's Up?" e pretendemos integrá-lo ao sistema de mapeamento. Será possível, por exemplo, mandar mensagem para todos que moram em uma determinada rua, ou que moram a uma certa distância da sua organização. Há uma série de aplicações. A mensagem pode ser de texto (via torpedo de celular), email, pode ser um telefonema ou uma mensagem de voz. O sistema vai mostrar no mapa quem recebeu as mensagens de voz, possibilitando identificar se é preciso alterar a forma de comunicação. Um sistema que virtualmente alcance todos na comunidade e que incentive a participação.

     

     

    A ideia é que tudo seja feito em software aberto e que possamos demonstrar o uso dessa ferramenta, mas que seja um convite para que outras pessoas possam colaborar e criem novas funcionalidades em cima da tecnologia.

    Você sonha com uma geração mais cidadã, mais participativa?

    As tecnologias de hoje ajudam, de certa forma, a quebrar as barreiras de espaço e tempo. É fácil receber notícias do Japão, saber o que está acontecendo nos Estados Unidos, mas saber o que está acontecendo no seu bairro é muito difícil. E as crianças estão cada vez mais confinadas às suas casas, escolas, centros comunitários. Existem muitas iniciativas de governo e fundações que focam na ideia de se trazer tecnologias para comunidades carentes, disponibilizando acesso à internet, por exemplo, mas a maior parte das ferramentas são ou muito complexas e difíceis de serem usadas, ou não oferecem funcionalidade que seja apropriada para crianças. O foco normalmente é em adolescentes para cima. E o que acontece com a criançada? Ela se perde. Iniciativas recentes como a do computador de 100 dólares, a do "um laptop por criança" (one laptop per child, OLPC), e outras, ajudaram a trazer um pouco mais de atenção para as crianças, mas precisamos fazer muito mais para vermos um real impacto. Pensando em desenvolvimento de sociedades democráticas, é vital que a gente foque em crianças.

     

    Cristina Caldas