SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.62 número3 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

    Links relacionados

    • Em processo de indexaçãoCitado por Google
    • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

    Compartilhar


    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.62 n.3 São Paulo  2010

     

     

     

    O MAR DE AMANHÃ, COM AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS DE HOJE

    Belmiro Mendes Castro
    Frederico P. Brandini
    Ilana E.K.C. Wainer
    Marcelo Dottori

     

     

    As mudanças climáticas, de acordo com o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), referem-se a modificações que podem ser identificadas através de testes estatísticos ou outros métodos. Para o grupo, "mudanças" são o mesmo que "variações de propriedades que persistam por um período de tempo extenso (como décadas ou mais)". Tais mudanças podem ser ocasionadas tanto por efeitos naturais quanto por atividades humanas que geram aumento do efeito estufa.

    O efeito estufa possibilita a existência da vida em nosso planeta tal como a conhecemos. A atmosfera, ao absorver e reemitir parte substancial da radiação infravermelha proveniente dos oceanos e da litosfera, regula as temperaturas superficiais e as mantêm em valores apropriados à vida. O dióxido de carbono, entre os gases existentes na atmosfera, é o que mais contribui para o efeito estufa.

    As atividades agrícolas e industriais, o desflorestamento e, principalmente, a queima de combustíveis fósseis, aumentaram consideravelmente a produção de dióxido de carbono, de metano e de outros gases, no último século. Esse aumento é considerado um dos principais fatores para o desencadeamento de mudanças climáticas induzidas pela intensificação do efeito estufa, conhecidas como aquecimento global.

    O aquecimento global traz consequências e impactos para o clima e para os ecossistemas. O derretimento das calotas polares continentais e a resultante elevação do nível médio do mar, eventualmente, ocasionarão alagamentos e perdas de habitats marinhos e terrestres. Maiores temperaturas alteram a circulação da atmosfera e dos oceanos, aumentando o número, energia e distribuição geográfica de eventos extremos, como furacões.

    ECOSSISTEMAS MARINHOS E CLIMA O mar auxilia no controle do aquecimento global absorvendo parte (cerca de 30%) do excesso de carbono atmosférico através de dois mecanismos: a bomba biológica e a bomba física. A bomba biológica oceânica começa na absorção de dióxido de carbono pela fotossíntese das microalgas marinhas (fitoplâncton), responsáveis por, pelo menos, metade do oxigênio produzido no planeta. A outra metade fica por conta dos vegetais terrestres. A fotossíntese absorve dióxido de carbono, primeira etapa de transformação do carbono inorgânico dissolvido para carbono orgânico particulado, o qual flui constantemente através da teia alimentar gerando detritos que sedimentam e se acumulam no fundo marinho pela ação da gravidade. Boa parte do petróleo mundial foi formada através desse processo. Também as microalgas com carapaças calcárias, os cocolitoforídeos, crescem em enormes quantidades em regiões temperadas do Atlântico Norte e do Pacífico. Quando sedimentam em massa após as florações, suas carapaças de carbonato de cálcio não se dissolvem completamente e depositam-se aprisionando carbono (outrora atmosférico) em áreas extensas dos oceanos. Vale lembrar que a bomba biológica terrestre ocorre através da fotossíntese das árvores nas extensas florestas temperadas e tropicais, que incorporam enormes quantidades de carbono nos troncos das árvores e nos detritos que caem acumulando carbono orgânico nos solos. Entretanto, a bomba biológica é limitada pela falta de outras substâncias químicas necessárias para a produção de matéria orgânica através da fotossíntese, como nitrogênio, fósforo e ferro.

     

     

    Além da fotossíntese, existem outros mecanismos de sequestro de carbono atmosférico pela bomba biológica. Trata-se da precipitação biogênica de carbonatos, um mecanismo intracelular que ocorre em grande escala em animais marinhos, necessitando de carbono e íons de cálcio em condições de alta temperatura e pH. O processo é comum em, por exemplo, macroalgas calcáreas. No Brasil são elas que compõem a maior parte dos recifes da região de Abrolhos, em frente ao litoral da Bahia. Vale lembrar que o mesmo mecanismo ocorre na formação de conchas de moluscos, foraminíferos e carapaças de equinodermas (estrelas e ouriços do mar, por exemplo). Todos são mecanismos de sequestro de carbono em escala de tempo relativamente pequena, exceto no caso dos recifes de coral.

    Outro mecanismo importante de absorção de carbono atmosférico, antropogênico ou natural, é a bomba física oceânica. Nesse caso, o dióxido de carbono se dissolve nas águas geladas dos oceanos polares, sobretudo do Antártico. Quanto mais fria a água, maior é a dissolução dos gases. Mas, ao contrário de outros gases atmosféricos, como o nitrogênio molecular e o próprio oxigênio, o gás carbônico reage com água e com íons de cálcio, formando carbonatos e bicarbonatos. Em altas latitudes, o sal marinho é excluído do processo de congelamento da água de superfície, tornando as águas imediatamente abaixo do gelo mais salgadas e, portanto, mais densas. Com o aumento da densidade a água mais salgada submerge, "escorregando" pelo talude continental para camadas profundas dos oceanos Atlântico, Índico e Pacífico, levando consigo o dióxido de carbono sob a forma de carbonatos. Esse mecanismo retém, por milhares de anos, o carbono atmosférico no mar, mantendo, ainda, o pH da água entre 7,4 e 8,5. Até o presente os mares polares foram capazes de incluir o excesso de carbono atmosférico antropogênico nessa equação físico-química do sistema carbonato. Entretanto, acredita-se (1) que até 2100 o sistema carbonato dos oceanos irá saturar e o mar não conseguirá mais absorver o excesso de dióxido de carbono produzido, principalmente, pela queima dos combustíveis fósseis.

    O excesso de dióxido de carbono se dissocia sob a forma de ácido carbônico, diminuindo o pH da água do mar. Essa acidificação, caso ocorra, poderá ter consequências ambientais que afetarão a vida marinha. Prejudicará os corais e algas que formam os recifes calcáreos e as florações em massa das cocolitoforídeos e foraminíferos, os quais dependem de pH básico para precipitação biogênica dos carbonatos em dissolução por esses organismos. Em casos mais extremos, poderá haver a dissolução do carbonato que forma os recifes calcáreos, as conchas de moluscos e as carapaças dos equinodermos. Esses organismos são importantes para a biodiversidade e para o equilíbrio da teia alimentar marinha. O impacto sobre a diversidade e a teia alimentar dos oceanos poderá provocar queda drástica dos recursos pesqueiros já tão sobre-explorados pela pesca descontrolada e pelo impacto na zona costeira, sobretudo poluição química e perda de habitats devido a obras costeiras mal planejadas. Peixes, crustáceos e moluscos são os principais recursos biológicos explorados para consumo humano. Sustentam a pesca artesanal e industrial em todos os continentes. A redução de estoques pesqueiros causará forte impacto socioeconômico, provocando desemprego na indústria de pesca e má qualidade de vida para comunidades costeiras que, muitas vezes, dependem exclusivamente desses recursos como meio de subsistência.

    ELEVAÇÃO DO NÍVEL DO MAR O aquecimento global conduz à elevação da superfície livre do mar devido a dois mecanismos: a expansão térmica da água e o aumento do volume de água devido ao derretimento das calotas continentais de gelo. A expansão térmica, nesse caso, poderá contribuir com mais do que a metade da elevação da superfície do mar neste século (2). O nível global dos oceanos aumentou cerca de 2mm/ano no século XX (3), taxa esta que, provavelmente, foi muito menor nos séculos anteriores. Desde que o nível médio do mar passou a ser medido por altímetros a bordo de satélites – como o Topex/Poseidon –, constatou-se taxa ainda mais acelerada de aumento. De 1993 até o presente, o nível médio global do mar vem aumentando a uma taxa de 3mm/ano (figura 1).

     

     

    O aumento do nível do mar em alguns milímetros por ano provavelmente não causará inundações espetaculares no Brasil, mas reveste-se de importância, pois a perda de terras em áreas baixas pode rapidamente destruir ecossistemas costeiros, como lagoas e manguezais. Além da inundação de áreas baixas, o aumento do nível do mar pode mudar o equilíbrio energético dos ambientes costeiros, causando grandes variações no processo sedimentar e, consequentemente, erosão de grandes extensões de linha de costa.

    Caso ocorra elevação do nível do mar neste século, é possível que a hidrodinâmica de regiões estuarinas e lagunares costeiras seja modificada. Maiores penetrações da cunha salina estuário acima, por exemplo, salinizará águas que podem estar, no presente, sendo captadas para abastecimento doméstico, produção industrial ou irrigação na agricultura, com enormes prejuízos para essas atividades.

    Ainda há muita controvérsia sobre valores estimados para elevação do nível do mar (4), indicando claramente a necessidade de estudos mais completos e abrangentes. Entretanto, não há dúvida que esse processo, devido ao aquecimento global, será um dos que mais diretamente influenciarão as sociedades humanas, cidades, economia e, também, os ecossistemas marinhos.

    TENDÊNCIAS CLIMÁTICAS DE TEMPERATURA E EVENTOS EXTREMOS É provável que, no futuro, o aquecimento no Brasil seja menor do que na média global (8). O aquecimento também irá variar com as estações e, nos períodos úmidos – entre dezembro e fevereiro –, poderá apresentar aumentos entre 0,1ºC e 0,4ºC/década, mas nos períodos secos – entre junho e agosto –, poderá apresentar aumentos maiores, entre 0,2º e 0,6ºC/década. Há indicações, de modelos principalmente, mostrando que o aquecimento será maior sobre a floresta amazônica e menos intenso sobre os estados litorâneos do Sudeste.

    Mesmo que pequenas, as possíveis alterações de propriedades físicas nas águas superficiais próximas à costa brasileira poderão gerar fenômenos meteorológicos com grande potencial de destruição. De maneira inédita, no Atlântico Sul no passado recente houve a ocorrência de um ciclone com características de furacão: o Catarina (9). Esse evento extremo causou desastre de proporções nunca antes vistas para tal tipo de fenômeno no Brasil: o sul de Santa Catarina e o norte do Rio Grande do Sul foram atingidos, afetando 26 municípios e deixando cerca de 15 mil pessoas desabrigadas ou desalojadas; cerca de 35 mil imóveis foram danificados ou destruídos. A diminuição da intensidade dos ventos no Hemisfério Sul, observada nos últimos 25 anos, possibilita o aumento da frequência de formação de tempestades tropicais, o estágio imediatamente anterior à caracterização de um sistema meteorológico como furacão, e de furacões (9).

    MUDANÇAS CLIMÁTICAS E O MAR DO BRASIL O espaço marinho brasileiro compõe-se de 4,5 milhões de quilômetros quadrados de mar territorial, Zona Econômica Exclusiva e Plataforma Continental, além de possíveis zonas internacionais dos oceanos requisitadas para exploração de recursos minerais. Esse enorme espaço, mais da metade da área continental do país, ficará diretamente submetido a tensões derivadas do aquecimento global. Entre os impactos possíveis podemos destacar (8): aumento da frequência e intensidade de tempestades em regiões costeiras, com alteração da dinâmica sedimentar provocando erosão e assoreamento na região costeira; aumento da vulnerabilidade das estruturas e operações offshore nas indústrias de petróleo e gás; aumento da vulnerabilidade do transporte marítimo; aumento da vulnerabilidade de obras e estruturas costeiras; mudanças no regime hidrológico (chuva/seca); aumento da vulnerabilidade de ecossistemas sensíveis a pequenas variações de temperatura; perda do espaço territorial costeiro por inundação permanente; perda de habitats costeiros (manguezais, por exemplo); salinização do lençol freático em áreas costeiras; problemas no abastecimento de água potável e para fins industriais ou agrícolas; problemas na captação e no escoamento de efluentes urbanos.

    Conhecimento detalhado sobre o papel que o Atlântico Sul e Equatorial desempenham no estabelecimento do clima e do tempo sobre o território nacional é prioritário como preparação para enfrentar o aquecimento global em nosso país. Tais conhecimentos sustentarão uma melhor previsibilidade do clima do Brasil e, ainda, permitirão que impactos do aquecimento global, e da consequente elevação do nível médio do mar, sobre as cidades litorâneas sejam dimensionados corretamente para que medidas mitigadoras possam ser discutidas e executadas.

     

    Belmiro M. Castro é físico, professor titular do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP), foi diretor desse instituto na gestão 2001-2005. Email: bmcastro@usp.br
    Frederico P. Brandini é biólogo, professor titular do Instituto Oceanográfico da USP. Email: brandini@usp.br
    Ilana E.K.C. Wainer é física, professora associada do Instituto Oceanográfico da USP. Email: wainer@usp.br
    Marcelo Dottori é físico, professor doutor do Instituto Oceanográfico da USP. Email: mdottori@usp.br

     

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Cox, P. M.; Betts, R. A.; Jones C. D.; Spall, S. A.; Totterdell, I. J. "Acceleration of global warming due to carbon-cycle feedbacks in a coupled climate model". Nature, Vol.408, pp.184-187. 2000.

    2. IPCC. Climate change 2007: synthesis report. Contribution of working groups I, II and III to the Fourth Assesment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change [Core Writing Team, Pachauri, R.K. and Reisinger, A. (eds.)] IPCC, Geneva, Switzerland, 104p. 2007.

    3. Peltier, W. R.; Tushingham, A. M. "Global sea level rise and the greenhouse effect: might they be connected?". Science, Vol.244, no.4906, pp.806-810. 1989.

    4. WBGU. The future oceans – warming up, rising high, turning sour. Special Report. [Core Writing Team, Schubert, R.; Schellnhuber, H.J.; Buchmann, N.; Epiney, A.; Griebhammer, R.; Kulessa, M.; Messner, D.; Rahmstorf, S. and Schmid, J. (Eds.)] WBGU, Berlin, Germany, 123p. 2006.

    5. Church, J. A.; White, N. J.; Coleman, R.; Lambeck, K.; Mitrovica, J. X. "Estimates of the regional distribution of sea level rise over the 1950-2000 period". J. Clim., Vol.17, no.13, pp.2609-2625. 2004.

    6. Church, J. A.; White, N.J. Geophys. Res. Lett., Vol.33, no.1, L01602. 2006.

    7. Holgate, S. J.; Woodworth, P. L. "Evidence for enhanced coastal sea level rise during the 1990s". Geophys. Res. Lett., 31, L07305. 2004.

    8. CGEE. Mar e Ambientes Costeiros. [Consultores, Castro, B.M.; Hazin, F.H.V. e Souza, K.G. (eds.)] CGEE, Brasília, DF, 323p. 2008.

    9. Pezza, A. B.; Simmonds, I. Geophys. Res. Lett., 32, 1-5. 2005.