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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.62 no.3 São Paulo  2010

     

     

    FRONTEIRA MARÍTIMA

    Uma Amazônia pintada de azul

     

    Perguntar qual a extensão do Brasil a quem frequentou uma escola e aprendeu noções básicas de nossa geografia, levará à resposta de 8,5 milhões de quilômetros quadrados. Este dado, porém, está bem abaixo do que se considera hoje o tamanho real. Desde 16 de novembro de 1994, com a entrada em vigor da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), aos 8.514.877 km2, indicados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no Mapa de Biomas do Brasil, somam-se 3,5 milhões de km2 de espaços marítimos, um vasto bioma ainda pouco considerado.

    Por acordo, o limite exterior da plataforma continental é de 200 milhas marítimas (m.m.). Entretanto, os países interessados em um limite maior devem apresentar à Comissão de Limites da Plataforma Continental (CLPC), da Organização das Nações Unidas (ONU), sua proposição, respaldada em informações científicas e técnicas que justifiquem tal pretensão. A demanda do Brasil é de estender a plataforma até o limite de 350 m.m. ou 648 km. Com isso, o mar brasileiro poderá corresponder a 4,5 milhões de km2, que equivalem a mais de 50% da extensão continental do país. Essa vasta área tem sido chamada de "Amazônia azul", termo adotado pelo almirante Roberto Guimarães Carvalho em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 25 de fevereiro de 2004. Trata-se de uma área altamente estratégica. No entanto, o mar e suas potencialidades são lembrados por muitos brasileiros quase que exclusivamente no verão, mesmo estando presente na cultura brasileira e no dia-a-dia dos muitos que vivem ao longo do litoral.

     

     

    FRONTEIRA NEGOCIADA A noção de mar territorial, ou seja, águas costeiras consideradas parte do território soberano, começou a ser construída no final do século XVII, quando o jurista holandês Cornelius van Bynkershoek propôs que o mar deveria ser dividido em "mar proximal" e "mar distal". O mar seria considerado proximal ou territorial até onde seu controle pudesse ser efetivado a partir do continente, ou seja, em função do alcance máximo dos canhões. A partir desse ponto, o mar seria distal. Como nessa época as bocas de fogo de grande alcance da Grã-Bretanha disparavam um projétil a 4.200 jardas de distância (um pouco mais que 2 m.m.), com uma elevação de 45º, começaram a surgir no final do século XVIII limites oficiais de mar territorial de 3 m.m. (equivalentes a 5,6 km), como o que foi feito, em 1793, por exemplo, pelos Estados Unidos. Outro marco importante foi a Convenção de Pesca do Mar do Norte, em 1882, entre Grã-Bretanha, Alemanha, Dinamarca, França, Holanda e Bélgica, que também adotou o limite de 3 m.m.

    Com o desenvolvimento de armas de artilharia, essa distância passou a ser cada vez mais questionada e no século XX, principalmente após o fim da Segunda Guerra Mundial, águas territoriais foram motivos de alguns incidentes. Dentre os vários conflitos, citam-se a Guerra do Salmão, envolvendo Peru, Estados Unidos e Japão, a Guerra do Bacalhau entre Islândia e Inglaterra, e a Guerra do Arenque entre Guatemala e Noruega. O Brasil também se viu em meio a disputas com a França, em 1963, na chamada Guerra da Lagosta, quando franceses argumentavam que estavam pescando fora do mar territorial e brasileiros contra-argumentavam que, embora nosso mar territorial fosse de 3 m.m., eles estavam pescando na plataforma continental.

    Com o avanço do conhecimento sobre o potencial das riquezas marinhas e ante o aumento dos riscos de incidentes, a ONU organizou em 1956, em Genebra, na Suíça, a I CNUDM, concluída em 1958, com quatro tratados. A II CNUDM realizou-se em 1960 também em Genebra, mas sem avanços. As negociações prosseguiram e culminaram com a III CNUDM, assinada pelo Brasil em 10 de dezembro de 1982, em Montego, Jamaica, e ratificada em 22 de dezembro de 1988. Essa convenção estabeleceu os conceitos de mar territorial, zona econômica exclusiva e plataforma continental e princípios de usos desses espaços marítimos e de seus recursos.

    BIOMA DESCONHECIDO Frederico Pereira Brandini, professor do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP), considera que no Brasil "vivemos um autismo político e cultural em relação ao mar, pois nunca preparamos a sociedade brasileira para sua importância". Segundo Brandini, o termo "Amazônia azul" tem por objetivo trazer um pouco do foco nacional para o mar brasileiro e suas riquezas. "Isso é na verdade um ato de desespero, ter que emprestar o nome da Amazônia ao mar, um bioma tão magnífico e rico em biodiversidade e recursos econômicos quanto a própria Amazônia", salienta.

    Bioma pode ser conceituado como grande espaço geográfico definido por um conjunto de organismos, geralmente identificáveis em escala regional pelo agrupamento de tipos de vegetação contíguos, com condições geoclimáticas similares e história compartilhada de mudanças, o que resulta em uma diversidade biológica própria. Conforme assinala Brandini, para que se possa entender melhor o valor de um determinado bioma é preciso analisar os recursos naturais que ele é capaz de oferecer para a sociedade. Segundo ele, "o mar tem uma importância enorme para o PIB brasileiro", pois envolve quatro categorias de recursos: minerais, biológicos, produtos energéticos e não-extrativos.

    Para a Marinha do Brasil, a Amazônia azul é uma realidade, ainda que a proposta de extensão do limite exterior da plataforma continental esteja em negociação. O documento Amazônia azul (www.mar.mil.br/menu_v/amazonia_azul/amazonia_azul.htm) destaca que a plataforma continental brasileira é de grande importância em quatro vertentes: econômica, ambiental, científica e de soberania. Na 4ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (4ª CNCTI), realizada em maio deste ano, em Brasília, a Marinha do Brasil apresentou o documento "O ambiente marinho – uma visão da marinha – Amazônia azul" no qual defende propostas visando: disseminar o significado estratégico e econômico do mar que nos pertence; apoiar investimentos em tecnologia, infraestrutura e formação de recursos humanos para o desenvolvimento sustentável e o controle da poluição na Amazônia azul; capacitar o país para desenvolver e utilizar tecnologias de pesquisas e exploração dos recursos e fenômenos da Amazônia azul; apoiar a modernização tecnológica dos portos e o soerguimento do transporte marítimo e multimodal brasileiro visando reduzir o custo Brasil; apoiar a implementação do Sistema de Gerenciamento da Amazônia Azul (SisGAAz) para monitoramento e controle do espaço marítimo e consecução da visão da Estratégia Nacional de Defesa de médio e longo prazos; e fortalecer a implementação do programa nuclear brasileiro, em particular ao programa de construção do submarino brasileiro de propulsão nuclear.

    Em abril de 2007, a CLPC emitiu um Relatório de Recomendações, indicando um recuo de 20 a 35% da área originalmente pleiteada pelo Brasil e sugerindo que fosse apresentada nova proposta com novos limites. Em artigo publicado na revista eletrônica PortoGente, Eliane Maria Octaviano Martins, professora da Universidade Católica de Santos (Unisantos) afirma que isso evidencia que "o aumento e incorporação da nova área da amazônia azul, mesmo que reduzida em nova proposta, deverá ocorrer em breve". Mas acrescenta que aos direitos, decorrem as responsabilidades: "consolida-se a premissa que preconiza que ao detentor da riqueza cabe o ônus da proteção". Segundo Eliane, a dúvida é se o Brasil está preparado para investir em políticas de efetivo aproveitamento dos recursos, em pesquisas e em fiscalização. E como salienta o oceanógrafo Brandini, "recursos para pesquisa e leis para o mar nós temos; faltam profissionais especializados e os brasileiros devem assumir o mar como um recurso estratégico que precisa ser protegido e conservado".

     

    Leonor Assad