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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.62 no.4 São Paulo Oct. 2010

     

     

    O FUTURO DO CERRADO MEDIANTE O CÓDIGO FLORESTAL

    Giselda Durigan

     

     

    Diante da iminência de revogação do Código Florestal vigente e instituição de uma nova lei que regulamente a supressão e a recuperação de ecossistemas no Brasil, instalou-se inquietação generalizada, que se resume em uma única questão: o projeto de lei (PL) a ser votado em breve, se aprovado, trará avanços ou retrocessos em relação à lei vigente? Não existe, para essa questão, uma resposta clara e simples, que seja válida para todos os dispositivos da lei e para todos os biomas. Para o país que detém a maior diversidade biológica do planeta, é compreensível que exista uma diversidade igualmente alta de situações ambientais e socioeconômicas, para as quais dificilmente uma lei única pode ser infalível. O Cerrado, pela larga extensão territorial que ocupa e por estar sendo visto como a última fronteira agrícola do planeta (1), merece destaque nessa reflexão. Melhor do que qualquer outro bioma, neste momento da história, a savana brasileira exemplifica o trade-off que se coloca entre desenvolvimento e conservação(2), que é inevitável em diferentes escalas e, entre essas, a da propriedade rural, que é onde se aplica, na prática, o Código Florestal.

    Cumprir o Código Florestal de 1965, na maior parte dos dois milhões de quilômetros quadrados do Domínio Biogeográfico do Cerrado, foi relativamente fácil enquanto as únicas formas possíveis de exploração econômica de seus recursos naturais eram a pecuária extensiva e o corte de lenha para produção de carvão. Tais atividades geralmente preservavam a capacidade do Cerrado em reagir à perturbação, de modo que até quatro décadas atrás apenas uma pequena proporção do bioma estava irremediavelmente degradada. Não existiam opções mais lucrativas de uso da terra que colocassem em risco a resiliência do Cerrado, como é o caso da conversão recente de extensas áreas para agricultura ou pecuária de alta tecnologia, que fez elevar-se vertiginosamente o custo de oportunidade da conservação ou dos usos tradicionais, de modo que a devastação rápida e irreversível tornou-se inevitável.

    Apesar da acelerada expansão da agropecuária, cerca de metade do Cerrado original continua em pé (3). Todavia, seja com base no Código Florestal de 1965 ou com base nos dispositivos do PL, os mecanismos de comando e controle, se efetivos, podem garantir a conservação de apenas cerca de 30% dos remanescentes, de modo que ainda restam cerca de 70 milhões de hectares de Cerrado disponíveis para desmatamento totalmente dentro da lei. Adicionalmente, previsões demonstram que a demanda por produtos oriundos da agropecuária continuará crescendo e exigindo a conversão de novas áreas. Naturalmente, os proprietários, que têm nessas terras sua fonte de renda, buscarão alternativas de uso que proporcionem a maior lucratividade. Não é preciso raciocínio muito elaborado para a dedução de que o desmatamento que não puder ser evitado por mecanismos de comando e controle só não acontecerá se: 1) a conservação e uso sustentável do Cerrado se tornar alternativa de uso da terra que gere receita comparável àquelas que dependem da conversão; e 2) o desenvolvimento científico e tecnológico e a difusão das tecnologias viabilizarem o aumento da oferta baseado no aumento de produtividade. Evidentemente, a solução para essa equação depende de providências em diversas esferas de governo e não apenas de uma nova lei.

    Em países desenvolvidos, além de subsídios à produção agropecuária, existem mecanismos diversos de estímulo à conservação e recuperação de ecossistemas em terras privadas, que vão desde a indenização pelas terras que deixarão de ser utilizadas, passando pelo compartilhamento dos custos da recuperação e culminando em remuneração por serviços ambientais (4). Nesse ponto encontra-se um dos destaques positivos do PL, que parece caminhar rumo às soluções adotadas pelo Primeiro Mundo. Ao instituir mecanismos de remuneração pela conservação, seja pela servidão, pela valoração de Cotas de Reserva Ambiental (CRA) ou pela averbação para compensar áreas convertidas ilegalmente, cria-se um mercado que não existia, em que terras com vegetação nativa passam a ter valor. Hoje, além de não gerar renda, essas terras têm valor de mercado correspondente à cerca da metade do valor de áreas já convertidas, sendo muito mais atraentes para instalação de novos empreendimentos do que terras em uso. Porém, os mecanismos instituídos pelo PL são insuficientes para conter o desmatamento. Cálculos elementares mostram que o déficit de Reservas Legais no Cerrado é muito inferior àqueles 70 milhões de hectares. Para ilustrar essa questão, se em todas as propriedades que eram ocupadas pelo Cerrado no estado de São Paulo se fizer a opção por compensar suas áreas de RL nas áreas naturais remanescentes em outras regiões, isso garantiria a preservação de, no máximo, 260 mil hectares (3,7% do total que está sujeito a desmatamento dentro da lei), o que é insignificante. Criar novas áreas protegidas públicas em todos os locais cujo desmatamento será permitido é, naturalmente, impensável.

    Viabilizar, de fato, novos mecanismos de estímulo à conservação em terras privadas se faz necessário, como a remuneração por serviços ambientais pela proteção aos recursos hídricos ou pelas emissões de carbono evitadas (REDD), que o PL não menciona, mas que já se mostram viáveis e o estado de São Paulo se antecipa em considerar ao regulamentar a sua Política Estadual de Mudanças Climáticas (5). Tornar lucrativas as Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs) ou criar subsídios para formas de exploração tradicionais e ecologicamente sustentáveis seriam providências desejáveis visando à conservação voluntária. Gerar tecnologias e descobertas que proporcionem alternativas economicamente viáveis de exploração sustentável dos ecossistemas naturais do Cerrado e de outros biomas nas áreas naturais que venham a ser mantidas seria ideal. Porém, isso depende não apenas de regulamentação, mas sobretudo, de estudos que demonstrem quais formas de exploração seriam ecológica e economicamente viáveis para cada bioma. Para o Cerrado, o Pantanal e os Campos Sulinos, por exemplo, pode ser que a pecuária baseada em capins nativos seja admissível.

    O PL traz outros dispositivos benéficos à conservação, como a proibição explícita de assentamentos de reforma agrária sobre ecossistemas naturais e o rastreamento de produtos oriundos de desmatamento. Do ponto de vista ecológico, talvez a maior deferência ao Cerrado no PL tenha sido a elevação das veredas à categoria de APP. Que poderia ser melhor, no entanto, se a proteção se estendesse por todo o complexo ripário dentro do bioma Cerrado, incluindo tipos florestais e campos úmidos, com ou sem buritis. Juntas, essas áreas com solos úmidos e frágeis são de extrema importância para a manutenção dos recursos hídricos do Cerrado, que alimentam oito das doze grandes bacias hidrográficas brasileiras.

    Ainda do ponto de vista ecológico, o PL falha ao manter a proporção diferenciada de RL em floresta ou cerrado na Amazônia Legal, como se um bioma fosse mais importante que o outro. A possibilidade de compensação de RL em outras regiões, muito criticada para a Mata Atlântica, no caso do Cerrado pode ser considerada positiva, diante das dificuldades ainda não superadas pela ciência e tecnologia em restaurar o Cerrado. Além da dificuldade técnica, o custo da restauração é extremamente elevado, e o PL falha ao não instituir mecanismos para o custeio da restauração, agora obrigatória, de áreas desmatadas dentro da lei.

    O QUE PRECISA SER REVISTO Alguns dispositivos do PL significam claro retrocesso e precisam ser revistos. Dentre estes, destaca-se a redução da largura mínima das áreas de preservação permanente de 30 para 15m na grande maioria dos cursos d'água e a possibilidade de legitimação de usos consolidados nessas áreas. Ainda que o PL tenha avançado ao tornar obrigatória a recuperação das APPs, a legislação vigente já havia proibido sua utilização há cerca de uma década, de modo que a faixa mínima de 30 m não deveria estar sendo cultivada e a importância de sua proteção já era senso comum.

    A verdade é que nem todas as modificações contidas no PL podem ser consideradas positivas ou negativas para o futuro do Cerrado ou de qualquer outro bioma. Mais do que modificações na lei são necessárias providências de governo para que as normas sejam cumpridas. Talvez a paisagem atual do Brasil fosse muito próxima do desejável se o Código Florestal de 1965 tivesse sido obedecido.

     

    Giselda Durigan é engenheira florestal, pesquisadora nível VI do Instituto Florestal, da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, e professora credenciada junto aos programas de pós-graduação em ciências da engenharia ambiental (Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo – USP) e ciências florestais (Campus de Botucatu, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp). Email: giselda@femanet.com.br

     

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Borlaug, N.E. "Feeding a world of 10 billion people: the miracle ahead". In: R. Bailey (ed.). Global warming and other eco-myths. Pp. 29-60, Roseville, EUA: Competitive Enterprise Institute.2002.

    2. Durigan, G. "Cerrado: o trade-off entre a conservação e o desenvolvimento". Parcerias Estratégicas (no prelo).

    3. Klink, C.A.; Machado, R.B. "A conservação do Cerrado brasileiro". Megadiversidade 1(1):147-155. 2005.

    4. Durigan, G.; Engel, V.L.; Torezan, J.M.; Melo, A.C.G.; Marques, M.C.M.; Martins, S.V.; Reis, A.; Scarano, F.R. "Normas jurídicas para a restauração ecológica: uma barreira a mais a dificultar o êxito das iniciativas?", Revista Árvore 34(3):471-485. 2010.

    5. São Paulo, Estado. "Decreto no. 55.947, de 24 de junho de 2010. Regulamenta a Lei nº 13.798, de 9 de novembro de 2009, que dispõe sobre a Política Estadual de Mudanças Climáticas". Diário Oficial 120(119), Seção I. 2010.