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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.62 n.4 São Paulo out. 2010

     

     

    ENTREVISTA

    Centro internacional reúne prática e pesquisa para combater o câncer

     

     

    Investimentos de R$18 milhões criaram, em agosto deste ano, o Centro Internacional de Pesquisa e Ensino em Oncologia (Cipe), que irá abrigar toda a produção científica e as atividades de ensino do Hospital A. C. Camargo, referência nacional no tratamento de câncer no Brasil. Pouco antes disso, o hospital adquiriu um equipamento capaz de sequenciar genomas completos de um ser humano em menos de uma semana, possibilitando detectar mutações em genes rapidamente e a um custo mais acessível. A aquisição confirma que o foco das pesquisas no Cipe será investigar a relação entre genética dos tumores de maior incidência no Brasil: mama, próstata, cólon, cabeça e pescoço. À frente do novo centro está o médico Ricardo Renzo Brentani, graduado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), da qual é professor titular desde 1981. Ele também é presidente da Fundação Antônio Prudente, mantenedora do hospital. Brentani lembra que ainda existe preconceito em relação ao câncer graças a desinformação e despreparo na sociedade e entre profissionais da classe médica, mas se mostra otimista em relação aos avanços científicos: "Eu sonho com o dia em que vamos prevenir 100% dos tumores. Então não vou mais precisar ir ao hospital".

    Que mudanças o Cipe traz para o Hospital A. C. Camargo, que já tem tradição em pesquisa sobre câncer?

    A novidade do Cipe é juntar, num mesmo espaço, vários grupos de pesquisa que estavam dispersos no hospital. Isso vai trazer mais entrosamento, poderemos partilhar oportunidades e informações, aumentando o leque de ferramentas à disposição dos pesquisadores. É conversando com outras pessoas que você amplia seus horizontes. O novo centro é um prédio de sete andares com 200 m2 de área de base, ligado a outro ambiente de 500 m2 com laboratórios. Dividiremos as novas instalações entre os grupos que trabalham com genômica, patologia molecular e biologia celular. Esse ambiente facilitará o entrosamento e as trocas.

    Qual o papel dos estudantes nessa nova fase?

    Eles são parte essencial desse processo. Temos direito a 30 bolsas do CNPq para iniciação científica. Os alunos que utilizam essas bolsas, em geral, fazem graduação em outros centros de ensino da cidade de São Paulo. É um programa muito bem sucedido porque metade dos nossos alunos de pós-graduação vem desse grupo. E a pós-graduação, atualmente com 110 alunos, tem sido fundamental ao propiciar à formação do corpo clínico do hospital um avanço grande na área de biologia. Os nossos estudantes de pós-graduação, residentes e médicos entendem biologia básica. O câncer é um processo de distorção de mecanismos celulares normais. Toda vez que você entende os mecanismos básicos do processo em que trabalha, pode entender melhor os desvios e corrigi-los.

    Com que rapidez as pesquisas realizadas podem beneficiar pacientes em tratamento no hospital?

    É difícil calcular uma velocidade de fluxo. O que posso dizer é que depois de ter sucesso em vários projetos na área de genômica já começamos a, por exemplo, sequenciar genes com objetivo de detectar mutações. Pelo menos 10 deles foram introduzidos na rotina do hospital. A gente não fica mais se perguntando: será que isso tem mutação de tal ou qual gene? A gente sequencia e vê. Isso faz parte da rotina. A mudança foi em relação ao espaço físico, em vez de ter pequenos laboratórios espalhados agora temos um prédio só para isso. Vai aumentar a velocidade e a escala do trabalho que fazemos aqui.

    O Cipe recebeu investimentos de cerca de R$ 14 milhões para infraestrutura física e investimentos em plataformas e equipamentos de agências de fomento. De onde virão os recursos para sua manutenção?

    A direção de pesquisa do hospital tem um montante dentro do orçamento total que envolve folha [de pagamento] e utilidades que custa, aproximadamente, de R$5 a 6 milhões por ano. Temos o auxílio das agências de fomento em torno de R$10 a 12 milhões anuais. Além disso, temos iniciativas que estão começando a dar um retorno interessante. Por exemplo, temos uma campanha direcionada aos fornecedores habituais para os quais sugerimos aplicar a nota fiscal paulista (1) em benefício do hospital. Esse recurso vai para pesquisa. É um modelo inovador. A razão disso é que o hospital, hoje um dos maiores do país, depende muito de uma clientela privada. Embora o hospital seja filantrópico, com 60% dos atendimentos para pacientes do SUS, ele dedica 40% dos atendimentos para o setor privado. É daí que vem seu sustento financeiro.

    De que modo as estatísticas sobre incidência de câncer no Brasil norteiam essas pesquisas?

    Claro que ocorre um direcionamento neste sentido porque é mais fácil você obter amostras. Nesse tipo de pesquisa é muito difícil separar as características das pessoas, da manifestação da doença etc, então é mais provável ter sucesso se você está usando muitas amostras. Esse tipo de investigação (não estou dizendo se é melhor ou pior) leva os pesquisadores a estudar os tumores mais frequentes. Mas tem gosto para tudo. Na área de patologia do A. C. Camargo tem estudos muito interessantes sobre sarcomas, que são tumores raros. Outro grupo dentro do hospital tem uma contribuição muito sólida, a nível internacional, em câncer de pênis, muito raro em países desenvolvidos, mas infelizmente muito comum no Brasil.

    Por que optou-se pela pesquisa em oncogenética no Cipe?

    Acredito que a faixa de tumores hereditários é muito maior do que se imagina. Eu falei dos genes prototípicos que são aqueles poucos genes que já foram claramente associados a certos tipos de câncer. Entretanto, quando se tem um volume grande de pacientes, como é nosso caso, na anamnese [entrevista médica com o paciente] é feito um levantamento do histórico do doente, da doença e da família do paciente e, por meio disso, percebe-se que existem muitos casos de agregação familiar [transmissão vertical de fatores genéticos entre progenitores e descendentes]. Nas mutações dos genes prototípicos, em geral, todos da família têm o mesmo tipo de câncer. Entretanto, examinando várias famílias percebe-se que isso não é uma regra. Há pacientes que tem agregação familiar, mas os parentes não desenvolvem necessariamente o mesmo tipo de câncer. Mesmo assim são famílias com incidência de câncer fora do normal. Mesmo nas síndromes supostamente causadas por mutações em genes prototípicos, ao se fazer pesquisas para identificar tais mutações, apenas na metade dos pacientes encontramos as mutações esperadas. O interessante é que no restante deles as características clínicas de um câncer estão presentes, só que sem as mutações. O que isso quer dizer? Significa que devem ocorrer mutações que não conhecemos, em genes que ainda não estão claramente associados ao câncer, mas que provocam o mesmo tipo de tumor. São caminhos diferentes com o mesmo resultado. É por isso que vale a pena fazer o levantamento genético. Sequenciando esses pacientes estamos vendo, na prática, que deve haver outros genes envolvidos em mutações que resultam em um câncer. Temos que usar outros tipos de ferramentas para buscar genes candidatos. É uma área de pesquisa muito promissora.

    Quais as principais descobertas nessa área? E qual seu impacto ou mudanças nos protocolos do tratamento da doença?

    Ainda é cedo para falar em mudanças no tratamento. Primeiro temos que identificar que mutações acontecem em quais genes. Depois temos que demonstrar biologicamente que isso, de fato, provoca a doença. E isso tem que ser feito primeiro em um animal de laboratório. Tem toda uma parte de biologia celular envolvida nessa fase. A perspectiva é gerar mudanças no tratamento, mas ainda há muito trabalho antes disso. Uma coisa que já está acontecendo é que na hora que você detecta um sinal de agregação familiar, mesmo que não se conheça a causa, já é possível juntar elementos para sugerir a esses pacientes fazer um controle periódico mais rigoroso para tentar detectar um tumor mais cedo. Quanto mais precoce o diagnóstico, maior a chance de cura. Isto pode ser feito cirurgicamente, porque enquanto o tumor ainda está pequeno ele é mais facilmente removido. Em minha opinião, essa é a melhor forma de tratamento para o câncer, é a primeira trincheira, a primeira forma de tratar a doença. Portanto, já colhemos benefícios antes de descobrir os tipos de mutação.

    Como funciona e qual a finalidade do banco de tumores do hospital?

    O banco de tumores é um repositório de material fresco retirado durante as cirurgias. Seu objetivo é disponibilizar material biológico para os pesquisadores quando eles formulam hipóteses que precisem ser testadas. Já coletamos cerca de 30 mil amostras. É muito importante que isso esteja organizado e sistematizado e, para isso, temos um sistema logístico bastante eficiente. Ele permite saber onde está cada amostra, e acessar online as informações clínicas do paciente. Por exemplo, se alguém quer estudar câncer de mama metastático, vai precisar de amostras desse tipo de tumor e também saber quem é a paciente e as informações clínicas dela.

    É comum ouvirmos que nunca se conheceu tantas pessoas acometidas por câncer. Isso é verdadeiro?

    Sim e não. A gente diz que nunca se viu tanta gente com câncer e não levamos em conta que a expectativa de vida média do homem aumentou muito, que o número de habitantes também cresceu, e que os métodos de diagnósticos melhoraram enormemente. Apesar disso, a incidência de alguns tipos de câncer está aumentando. Por exemplo, os casos de câncer de pâncreas, um tipo de tumor raro, estão crescendo. Não sabemos por quê. Já a incidência de tumores causados por vírus está caindo pelo fato de termos vacinas. Enfim, não podemos generalizar.

    Em sua opinião o câncer ainda é um tabu? Por quê?

    Sim, falta informação e existe ainda muita ignorância e superstição. Eu lido com isso todos os dias em um hospital na cidade de São Paulo, mesmo em pacientes com alto poder aquisitivo. Tem gente que acha que teve câncer por causa de uma decepção ou está associado à depressão. Os poucos estudos que mostram relação entre estado emocional com câncer são mal feitos. Pelo menos os que eu conheço se baseiam em pacientes que já estão com a doença, ou seja, as pessoas já estão deprimidas. Para estabelecer uma forma estatisticamente correta para determinar associação entre estado emocional e câncer seria necessário um estudo populacional para avaliar o estado emocional das pessoas, segui-las por 20 ou 30 anos e tentar classificar se o grupo deprimido teve mais câncer e o mais excitado menos. Outro grave problema é que entre a classe médica também existe desinformação e despreparo. Basta lembrar que existem 182 escolas de medicina no Brasil, mas a metade delas não tem hospital próprio e três quartos não tem residência médica. No último exame de avaliação do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) 40% dos candidatos não sabiam o suficiente para exercer a medicina. Esse quadro é ainda pior se pensarmos que o número está subestimado porque o exame é voluntário e só foram fazer as provas aqueles que achavam que sabiam. Quando pensamos na importância do diagnóstico precoce, o despreparo dos médicos é mais grave do que qualquer tipo de câncer.

    É mesmo possível prevenir o câncer?

    Completamente: 35% dos tumores são provocados pelo cigarro, 15% pelo uso de álcool, 10% por vírus e 5% dos tumores são hereditários. Sendo assim, mudanças de hábito e cuidados com a saúde podem evitar o câncer. Uma boa notícia é que a fração de fumantes na população brasileira caiu de 35% para 19%. Isso é fruto de campanhas como a lei que proíbe o fumo em lugares fechados que eu considero genial. Nesse sentido estamos progredindo. Eu sonho com o dia em que vamos prevenir 100% dos tumores. Então não vou mais precisar ir ao hospital. A única coisa que a gente não consegue prevenir são as consequências das paixões humanas.

     

    Patrícia Mariuzzo

     

     

    NOTA

    1. A nota fiscal paulista é um programa do governo estadual que devolve 30% do ICMS recolhido pelos estabelecimentos aos consumidores.