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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.62 no.4 São Paulo Oct. 2010

     

     

    APRESENTAÇÃO

    ALIMENTO E ALIMENTAÇÃO

    Malaquias Batista Filho

     

     

    Alimentação e seu reflexo biológico (a nutrição) representam os traços de relações mais fortes da vida humana com o ambiente. É através dos alimentos que se estabelece o ciclo de trocas com o meio físico, biótico e social, constituindo ecossistemas saudáveis ou insalubres. Um bom estado de nutrição supõe uma condição de equilíbrio no complexo de fatores que se articulam na produção, consumo e utilização metabólica de energia e de nutrientes, em nível celular, individual ou em escala coletiva. Desvios para menos, levando, por diferentes mediadores, às doenças carenciais, ou para mais, produzindo os excessos e impropriedades alimentares nutricionais, podem ser entendidos como desequilíbrios que alteram os ecossistemas de vida das pessoas e das comunidades.

    Dessa forma, ao considerar a alimentação, o estado de nutrição e de saúde de indivíduos e de populações, no presente, no passado e em suas tendências para o futuro, na verdade está se fazendo um inventário da história, um exame descritivo e analítico da atualidade e um prognóstico (sempre temerário, mas sempre pertinente) dos desafios que devem ou podem aparecer. É com essa visão que se apresenta, neste Núcleo Temático, sete artigos de diferentes estudiosos, representando diversas profissões e enfoques sobre questões relacionadas com alimentos e alimentação.

    Embora bem jovem, Sueli Aparecida Moreira, autora do artigo "Alimentação e comensalidade: aspectos históricos e antropológicos" dedica-se a um campo visitado por poucos estudiosos, quase sempre idosos. Ou seja, o retrospecto do homem desde os estados mais primitivos da espécie até os cenários da modernidade. Refaz, desse modo, com o suporte da arqueologia, da antropologia e da história propriamente dita, a saga da humanidade na busca da provisão de alimentos, desde a força instintiva da fome até o poder instrutivo do mercado liberal, aberto para todos, com exceção dos muitos que não têm dinheiro para suas crescentes e sofisticadas demandas. O passado e o presente da alimentação contam a história do próprio homem, suas necessidades materiais, suas inquietações existenciais, seus conflitos interiores e exteriores, suas crenças transcendentais. Mais do que a materialidade dos diversos itens que fazem a pauta qualitativa do consumo, além dos conhecimentos científicos que descrevem o valor nutritivo de cada produto natural ou industrialmente processado, os alimentos, ou melhor, a alimentação tem um valor simbólico, uma identidade cultural própria que a modernidade, com suas demandas globalizantes, não consegue descaracterizar completamente. Nesse sentido, as observações de Sueli Aparecida sobre as transfigurações de processos culinários representados na moderna gastronomia (os pratos híbridos, as "migrações" dos temperos, a miscigenação dos sabores) são exemplos instigantes. Há 300 mil anos, com a descoberta do fogo, fez-se a cozinha, como o primeiro laboratório do homem, possibilitando o salto tecnológico do cozimento. E, de laboratório em laboratório, desde as pesquisas básicas que fazem os transgênicos no início da cadeia alimentar até a sofisticação final dos produtos liofilizados, se materializa a história da alimentação humana, casada cada vez mais com a própria história de povos e civilizações e divorciada, também cada vez mais, da natureza.

    O artigo "Transição alimentar/nutricional ou mutação antropológica" trata de um dos maiores desafios dos tempos atuais e seus futuros desdobramentos: como e para onde caminha esse processo de mudanças cada vez mais aceleradas, que altera de um ano para outro (e bem nitidamente, de um decênio para outro), o quadro de doenças e causas de morte? Como e para onde, no contexto da transição epidemiológica, evolui um de seus mais importantes componentes, a transição alimentar/nutricional?

    Os dois processos de mudanças, com suas combinações de causas e efeitos, representam, em seus resultados finais, um balanço de aspectos positivos e negativos bem evidentes. A passagem da expectativa de uma vida média de 33 anos, vigente há cerca de um século, para a estimativa que hoje já supera os 80 anos em alguns países, é uma prova sem contestação dos ganhos que a modernidade conquistou.

    Há pouco mais de 60 anos, dois terços da humanidade passava fome. Hoje, oscila em 15%, quando já poderia ser menos de 10%. Muitas doenças associadas a carências nutricionais foram erradicadas e controladas. Claro, não estamos nos referindo às grandes discrepâncias que as situações heterogêneas de condições de vida imprimem às comparações entre indigentes, remediados e ricos de todo o mundo.

    No entanto, ao lado do progresso evidente, desenha-se um cenário de incertezas que, já comprometendo o presente, projeta-se assustadoramente para o futuro. A transição alimentar/nutricional, nesse contexto, mostra sua outra face. Mantêm-se, ainda, os problemas carenciais corresponsáveis por mais de 50% das mortes de crianças no mundo, enquanto quatro das doenças relacionadas com a alimentação, nutrição e estilos de vida ocidentais se associam a quase 60% das mortes de populações adultas. E não são apenas os velhos males: doenças novas estão surgindo. Ou ressurgindo males antigos. E a grande interrogação: para onde vamos?

    A professora Sandra Roberta Ferreira, autora do estudo "Alimentação, nutrição e saúde: avanços e conflitos da modernidade" ocupa, como docente e pesquisadora, um espaço privilegiado de observações e experiências no dia a dia de suas atividades profissionais. Transitando entre a Escola Paulista de Medicina e a Faculdade de Saúde Pública da USP percorre, de fato, um itinerário bem maior, como participante de um estudo multicêntrico que se desenvolve no Brasil, Japão e Estados Unidos sobre diabetes mellitus tipo 2. São já 20 anos caminhando, contando e seguindo as lições que se renovam, de forma surpreendente, nas mais de duzentas publicações (revistas, livros, anais de simpósios e congressos nacionais e internacionais) que o grupo tem produzido a partir do problema do diabetes mellitus, doenças associadas e contexto de vida de diferentes populações dos três países, com ênfase nos aspectos alimentares. Trata-se de uma experiência muito rica para os participantes do Núcleo Temático aqui apresentado. De fato, o diabetes mellitus tipo 2 representa, possivelmente, uma doença paradigmática das grandes mudanças que estão redesenhando o perfil de morbimortalidade no mundo. Reflete, de fato, como imagem matriz, as transformações marcantes que estão transcorrendo nos hábitos alimentares, estilos de vida e quadro de valores comportamentais (inclusive éticos) do mundo moderno. Não pode ser entendida como uma doença solitária: compõe, de fato, um conjunto de morbidades parceirizadas com as doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) que, há pouco mais de 20 anos, assumiram o topo das causas de morte da população de todos os países ricos e de um terço à metade das nações em desenvolvimento. Só a título de exemplo: um comitê de especialistas da Organização Mundial de Saúde, consolidando dados de séries temporais, prevê que em 30 anos, a prevalência de diabetes mellitus tipo 2 deverá duplicar. Ora, já se dispõe de dados, como no caso de Pernambuco, de que esta estimativa pode ser duplicada ou triplicada dentro de apenas dez anos. Na verdade, o progresso material dos tempos modernos não é apenas uma sucessão linear de conquistas e bem-estar: é, também, um front de pequenos e grandes males para a saúde do homem.

     

     

    No artigo "Segurança alimentar e nutricional: pressupostos para uma nova cidadania", de Amália Leonel Nascimento e Sonia Lúcia de Andrade, expõe-se a curiosa sequência de um conceito que, em menos de um século, mudou de forma e conteúdo doutrinário, até se constituir num estatuto de cidadania. Thomas Mann, em sua utopia, e Rousseau, em seu pioneirismo pela justiça social, assumiriam com toda convicção esses postulados. De fato, numa leitura otimizada do conceito, já em sua versão do século XXI, fica claramente configurada uma proposta de exercício pleno de cidadania, tendo na segurança alimentar seu núcleo de sustentação, que vai além, muito além, de se acessar três, quatro ou cinco boas refeições ao dia, cobrindo todo o abecedário da nutrição de A (vitamina A) a Z (zinco).

    Muito rapidamente: a fome no passado bíblico era um castigo sobrenatural administrado em pacotes epidemiológicos, junto com as doenças pestilenciais e as guerras que, às vezes, duravam cem anos, mesmo sendo santas. No início do século XX, a guerra entre países entra, estrategicamente, na história da segurança alimentar: ganhavam a luta as forças armadas que, ao lado dos canhões, tinham campos de produção ou armazenagem de alimentos para abastecer suas tropas e suas populações. Tornava-se, portanto, uma questão de segurança nacional. Finda a Segunda Guerra Mundial a segurança alimentar mudou de alcance e de estratégia com o advento da Revolução Verde, entendendo-se que o problema da fome era uma questão tecnológica de produção de alimentos. Trinta anos de paz (Conferência da FAO, 1974) e desloca-se radicalmente o foco da segurança: o nó górdio da questão milenar da fome teria que ser desatado nas amarras da pobreza, como uma questão de renda do produtor/consumidor de alimentos. Finalmente, o cenário conclusivo: a segurança alimentar e nutricional é um direito de todos, como parte de um conceito de cidadania que só se realiza no contexto de todos os outros direitos. Ou seja, direitos econômicos, sociais, políticos, culturais, coparticipativos, deveres éticos e ecológicos, todos unidos e exercidos à luz de um foco no futuro: a sustentabilidade. É o desafio para uma nova civilização.

    Ricardo Abramovay, autor do artigo "Alimentos versus população: está ressurgindo o fantasma malthusiano?" tem, desde os primeiros anos de sua vida profissional, uma sólida história de reflexão crítica e de militância política em torno dos grandes temas de uma economia humanizada e sustentável. Esse trabalho recoloca na agenda dos debates mais cruciais dos nossos tempos a questão da produção de alimentos e seu consumo, seja na situação atual seja em suas projeções para o futuro. Resgata-se, em parte, a lógica e as advertências de Thomas Malthus, o pastor religioso que, em sua época, fundou as bases de uma paradisciplina, hoje com estatuto de disciplina curricular com muitas aplicações: a demografia. Mas, ao lado do pioneirismo dos conceitos malthusianos e suas contribuições para o entendimento da dinâmica populacional, o que de fato ficou como interpretação mais estigmatizante de sua teoria foi a tese de que a produção de alimentos se fazia segundo o ritmo de uma escala aritmética, enquanto a população cresceria segundo os termos de uma progressão geométrica. Essas tendências divergentes dos dois termos da equação conduziria, matematicamente, à fome, como um desfecho previsível e fatal. Na sua perspectiva, as mortes por conta da fome, doenças e guerras eram alternativas "naturais" para restabelecer o equilíbrio demográfico, controlando seu vetor principal: o crescimento populacional.

    Pondo de lado os aspectos ideológicos (Malthus era, de fato e de direito, um reacionário) o que sobra de verdade nas suas predições, como um maldito profeta do Apocalipse? É na direção desse questionamento que Ricardo Abramovay recoloca Malthus na ribalta dos novos cenários e seus desafios, levando em conta os novos enredos de um mundo em rápida transição. Claro: o foco mais imediato é o problema alimentar, como carro-chefe de uma cadeia de outras grandes questões que preocupam o presente e o futuro da própria vida como ecossistema viável e sustentável. Vale a pena ler, reler e consultar Abramovay, que coordena o Núcleo de Economia Socioambiental da USP, um centro de convergências e de irradiação de ideias e movimentos em torno do que deve ser o desenvolvimento humano.

    Mantendo, há vários anos, um intercâmbio muito ativo com a Universidade de Paris, junto ao núcleo mais consolidado de estudos sociológicos e antropológicos sobre alimentação no mundo, Rossana Proença apresenta uma excelente síntese sobre as relações entre cultura, práticas alimentares e a história da humanidade. No prato, na mesa, na cozinha, nos bares e restaurantes, se opera o jogo da dinâmica sociocultural e ambiental, com seus antecedentes, seus processos, valores, demandas e expectativas. A alimentação é uma das coproduções da história.

    No longo itinerário que resgata os próprios caminhos do gênero humano, do Homo sapiens ao Homo sedentarius dos tempos modernos, a alimentação é um testemunho vivo das civilizações até chegar à globalização atual. Agora, é o tempo das encruzilhadas – misturam-se as cozinhas, os temperos se tornam híbridos, alimentos produzidos no Extremo Oriente são consumidos no Ocidente e vice-versa, pelas trocas comerciais, pelo transplante de sementes para a formação de lavouras em outros continentes, pelos meios de comunicação invasivos que propagam novos valores e novos hábitos. É um paradoxo que o encurtamento do tempo e do espaço, agora, distancia as pessoas, física e emocionalmente, de tal forma que a comida, que era um ato solidário de união e congraçamento, se torna um evento solitário, que se faz como uma circunstância ocasional no dia a dia da jornada de trabalho e da vida. Afasta-se a característica familiar, perde-se o vínculo com a comunidade, chega-se ao tecnicismo das composições de nutrientes e até à sofisticação da gastronomia molecular. Poucos sabem o que é isto, mas logo, logo, o termo ganhará status de globalização.

    O artigo de Fábio Gomes, Inês Rugani de Castro e Carlos Monteiro, analisando marchas, contramarchas e, portanto, desafios que devem ser enfrentados no controverso processo de regulamentação da propaganda de alimentos no Brasil, ultrapassa em muito os objetivos de uma simples contribuição técnica e científica. O que está em foco, mais que os argumentos, réplicas e tréplicas, é uma situação que confronta o interesse da saúde coletiva face ao discurso e à prática de livre mercado segundo princípios do catecismo liberal do deixar fazer. Não se presta conta, porque o mercado livre, no seu jogo de lucros, perdas e danos, se autorregularia, corrigindo, validando ou excluindo erros, desvios e impropriedades. Uma questão de crença?

    O caso do Brasil é um tanto singular. São tão notórias, eloquentes e conclusivas as observações sobre os riscos de práticas alimentares adversas – durante a gravidez para o binômio mãe-feto; nos primeiros meses de vida pelo desmame e erros da alimentação substitutiva durante o crescimento e desenvolvimento; na infância e adolescência; ou por toda a vida em qualquer idade –, que as Nações Unidas (OMS) elaboraram um documento de consulta e adesão para os mandatários de todos os países do mundo, propondo normas e estabelecendo compromissos sobre conceitos e práticas da alimentação saudável. Mais ainda: as grandes empresas da indústria de alimentos, em seus países de origem ou em suas filiais, num consenso inteligente (pois do contrário seria remar contra a maré dos poderes públicos e do poder do público), passaram a acatar e até a promover regras de publicidade para os alimentos, principalmente em relação às crianças. Já no Brasil, jogando com a desinformação do público e, até há pouco tempo, com a complacência das autoridades, empresas industriais e comerciais e grandes redes de comunicação, principalmente a televisão, juntando seus interesses lutam abertamente e às escondidas para criar exceções, romper os muros de normas e limites para a propaganda de seus produtos, deixando de lado os riscos à saúde, os custos econômicos das compras e os ônus financeiros e humanos das doenças.

    É interessante ler, no artigo e suas referências de citação, como e porquê se desenvolve o confronto aqui no Brasil. Creio que, com tais trabalhos, cobre-se um campo temático de vasto espectro, numa abordagem multidisciplinar como convém, de modo geral, ao novo espírito da ciência e da cultura e, notadamente, ao entendimento da área da alimentação humana.

     

    Malaquias Batista Filho é professor e pesquisador do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip) Recife, Brasil. É membro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e bolsista do CNPq. Email: mbatista@imip.org.br