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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.62 n.4 São Paulo out. 2010

     

     

    Desmatamento, trajetórias tecnológicas rurais e metas de contenção de emissões na Amazônia

     

    Roberto Araújo de Oliveira Santos Junior
    Francisco de Assis Costa
    Ana Paula Dutra Aguiar
    Peter Mann de Toledo
    Ima Célia Guimarães Vieira
    Gilberto Câmara

     

    Tentativas recentes de ordenamento territorial, baseadas na criação de Unidades de Conservação e de Zoneamento Econômico-Ecológico (ZEE) reconhecem que existem diferenças na contribuição de certos grupos sociais para o desmatamento como, por exemplo, o de populações extrativistas (consideradas "tradicionais") cujas formas de uso dos recursos naturais possuem menor impacto sobre a cobertura florestal. Como, porém, o desmatamento majoritário não deriva desses agentes, tem-se firmado a ideia de que seria necessário reorientar as práticas de outros agentes (grande pecuária, agricultura mecanizada etc), no sentido de sua maior adequação à legislação ambiental, por intermédio de medidas de comando e controle, mas também de incentivos creditícios calculados de acordo com valores atribuídos a emissões de gás carbônico equivalente — CO2 eq (1). Nos debates sobre contenção a abordagem da diversidade das práticas e das diferentes contribuições para o desmatamento é, assim, contingente e fragmentada, como se estivéssemos diante de realidades autônomas.

    Ora, a questão do desmatamento não é somente ambiental, nem somente de desrespeito à lei: é socioeconômica (2). Logo, a chave é pensar políticas de contenção de desmatamento ligadas, indissociavelmente, a políticas de produção, a longo prazo, ou seja, considerar a forma como os agentes mobilizam recursos (naturais e institucionais) no quadro de sistemas de produção e de acordo com procedimentos tecnológicos específicos.

    TRAJETÓRIAS TECNOLÓGICAS NA AMAZÔNIA Trajetórias tecnológicas no meio rural têm sido enfatizadas por Costa (3;4) no debate acadêmico e se referem ao padrão usual de atividades que resolvem, com base em um paradigma tecnológico, os problemas produtivos e reprodutivos que confrontam os processos decisórios de agentes concretos, em contexto específico, nas dimensões econômica, institucional e social. No interior de sistemas agrários é possível identificar trajetórias tecnológicas que se articulam umas às outras (competem e/ou colaboram), formando arranjos produtivos locais cujas redes compõem as economias regionais e nacionais.

    Segundo Costa (4), na região Norte, os atributos das diferentes trajetórias (tabela 1) podem ser comparados segundo a ordenação a seguir, de acordo com sua importância relativa na economia regional (valor bruto de produção):

    • "Trajetória Camponês T1: reúne o conjunto de segmentos camponeses que convergem para a dominância da interação entre culturas permanentes, em composições de diversidade variável, e a produção de leite. Marcada por uso intensivo do solo, com sistemas diversificados (baixo impacto na biodiversidade) e baixa formação de dejetos/impacto poluidor".

    • "Trajetória Patronal T4: reúne o conjunto de segmentos de produção agricultada em operação em estabelecimentos patronais que convergem para a pecuária de corte. Marcada por uso extensivo do solo, homogeneização da paisagem (alto impacto na biodiversidade) e formação intensa de dejetos".

    • "Trajetória Camponês T2: reúne o conjunto de segmentos camponeses que convergem para sistemas agroflorestais com dominância ou forte presença de extração de produtos não-madeireiros". Observe-se que essa seria uma trajetória expressão do "paradigma extrativista" — no qual os processos produtivos pressupõem, em algum nível, a preservação da natureza originária.

    • "Trajetória Camponês T3: reúne o conjunto de segmentos camponeses que convergem para sistemas com dominância de pecuária de corte".

    • "Trajetória Patronal T5: reúne o conjunto de segmentos patronais que convergem para plantações de culturas permanentes em forma de plantation (5). Marcada por uso intensivo do solo, com homogeneização da paisagem (alto impacto na biodiversidade) e baixa formação de dejetos/impacto poluidor".

    • "Trajetória Patronal T6: reúne o conjunto de segmentos patronais de silvicultura. Marcada por uso extensivo do solo, com homogeneização da paisagem (alto impacto na biodiversidade) e baixa formação de dejetos/impacto poluidor".

    Vale notar, assim, que, consideradas do ponto de vista das trajetórias tecnológicas identificadas por Costa (4), a pecuária de corte de animais de grande porte emite 70% do CO2, emprega 10% do pessoal e gera 25% da renda, sendo uma atividade predatória; os segmentos camponeses voltados para a pecuária de leite e culturas permanentes têm 38% dos empregos, 27% da renda, 12% das emissões, sendo considerada uma atividade de baixa emissão de carbono e alta relevância social; e os segmentos camponeses agroflorestais (açaí e similares), são de baixíssimo impacto sobre a biodiversidade e a emissão de CO2 e cresceram 12% ao ano em renda líquida, de 1991 a 2005.

    SISTEMAS AGRÁRIOS E A "QUESTÃO INSTITUCIONAL" Apesar da importância relativa no valor da produção e das evidentes vantagens de determinadas trajetórias sobre outras numa perspectiva de redução do desmatamento e da contenção de emissões, o quadro é bem diferente quando se considera o apoio institucional a diferentes trajetórias. Assim, Costa (4) nos diz que há evidência de um acesso diferenciado a recursos institucionais que, no conjunto das trajetórias, favorece excepcionalmente a grande pecuária de corte (T4). A concorrência/cooperação entre trajetórias no interior de sistemas agrários são também relevantes para o entendimento do problema. Tomemos assim o exemplo da expansão da pecuária no processo de incorporação de novas áreas a oeste de São Félix do Xingu (PA), a denominada "Terra do Meio".

    A estratégia econômica da apropriação e venda de terras públicas indevidamente apropriadas e incluídas no mercado (6), não apenas sustentou a expansão da grande pecuária, como também criou verdadeiros assentamentos privados, onde se instalaram produtores dependentes dos grandes pecuaristas para o escoamento da produção.

    A apropriação fundiária gera, assim, uma dependência social, que se confirma e aprofunda, em seguida, no processo de estruturação das cadeias produtivas. No caso da venda de leite ou de carne, os pequenos produtores, incapazes de satisfazer as exigências do mercado, tornam-se fornecedores indiretos, vendendo bezerros para agentes que possuem acesso ao mercado e possam engordar o boi, ou que sejam intermediários na venda de leite a laticínios fiscalizados (em troca, muitas vezes, de adiantamentos in natura de produtos como o sal, num sistema que apresenta analogias com o do antigo aviamento da borracha) (7).

    Essas situações de dependência social têm influência determinante no processo de formação de distritos e municípios, transformando-se no germe de uma forma de dominação política e em fonte de legitimidade local para os agentes que detêm maior acesso a crédito, por intermédio da mobilização de recursos políticos em diversos níveis (8). Isso tende a bloquear as trajetórias mais vulneráveis dos sistemas agrários.

    POLÍTICAS PÚBLICAS E ECONOMIA LOCAL: EFEITOS ADVERSOS As diversas medidas tomadas pelo governo desde 2004 para o controle do desmatamento (9), embora tendo contribuído (juntamente com outros fatores de conjuntura econômica) para uma nítida queda das taxas de desmatamento observadas a partir de então, tiveram impacto negativo sobre o saldo de empregos formais em determinados setores econômicos. Assim, segundo o IBGE, a indústria da madeira e do mobiliário apresentou um saldo negativo de 14.949 empregos formais entre 2005 e 2009.

    A regularização fundiária é uma dimensão fundamental do controle do desmatamento. A observância da legislação ambiental (exigência dos documentos cadastrais, controle das Áreas de Preservação Permanente e Reserva Legal) precisa, porém, respeitar um período de transição e basear-se em sólidos diagnósticos dos sistemas agrários e das realidades produtivas locais que se trata de enquadrar. A penalização de trajetórias "boas" engendra insegurança e enfraquece politicamente as medidas de controle ambiental. Por outro lado, a contenção de atividades produtivas através da simples remuneração de agentes individuais em termos de "custo de oportunidade" também pode gerar impactos adversos nas economias local e regional, pois ao mesmo tempo em que se reduz a produção agrícola de certos agentes, introduz-se no sistema como um todo um acréscimo de renda, gerando, por sua vez, uma demanda adicional. Essa demanda suscita uma resposta da parte de novos agentes que, na ausência de reconversão dos sistemas produtivos, tentarão satisfazê-la de acordo com os mesmos métodos de produção anteriores, provocando acréscimo de emissões.

    Como então resolver as dificuldades e contradições apontadas aqui? O conceito-chave parece ser a vinculação de políticas agrícolas e agrárias, no quadro de Planos de Desenvolvimento Territorial, cujo objetivo seja não a contenção da produção, e sim a reconversão simultânea dos sistemas agrários e dos arranjos produtivos locais, fortemente baseada no aporte tecnológico adequado para as diferentes trajetórias.

    PROPOSTA DE AÇÕES PARA ALCANÇAR METAS DE REDUÇÃO DO DESMATAMENTO Com base na contextualização discutida na seção anterior, apresenta-se um arcabouço de propostas (tabela 2) para que as metas de redução do desmatamento sejam alcançadas, através de uma real transformação das estruturas econômicas, sociais e agrárias na Amazônia, através de políticas sistêmicas e complementares que contemplem a diversidade de situações na região. O plano de ações deve basear-se nas seguintes premissas:

    1. Complementaridade de ações macrorregionais e ações específicas voltadas a territórios. A escala municipal é muito restrita para o planejamento e organização de esforços visando a promoção do desenvolvimento (10). E, ao mesmo tempo, a escala estadual é excessivamente ampla para dar conta da heterogeneidade e de especificidades locais que precisam ser mobilizadas com esse tipo de iniciativa. O território é a unidade que melhor dimensiona os laços de proximidade entre pessoas, grupos sociais e instituições que podem ser mobilizadas e convertidas em um trunfo crucial para o estabelecimento de iniciativas voltadas para o desenvolvimento. Ações macrorregionais são importantes para estabelecer ações de base (políticas gerais de crédito, monitoramento etc) e evitar "vazamentos" (11), com um olhar sistêmico sobre toda a região.

    2. Reconhecimento da heterogeneidade dos contextos sociopolíticos e trajetórias tecnológicas na Amazônia na construção de soluções pactuadas entre atores/setores em diferentes territórios, visando incentivar "boas" trajetórias (em termos ambientais e sociais), e apoiar a reconversão das "ruins".

    3. Garantia de continuidade de ações visando objetivos sistêmicos de diminuição do desmatamento, melhoria das condições de vida na Amazônia, aproveitamento racional das riquezas e investimentos em C&T, respeitando a diversidade de situações dentro da região e incorporando soluções pactuadas entre os diversos setores.

    CONSIDERAÇÕES FINAIS A noção de trajetória tecnológica, tal como apresentada aqui, é fundamental para elaborar um plano de controle do desmatamento e redução de emissões, considerando o conjunto das dimensões dos sistemas agrários da Amazônia, bem como a diversidade das modalidades produtivas que se manifestam na região. Sem uma abordagem sistêmica dessas questões, é impossível manter a convergência do espectro de políticas públicas de longo prazo requeridas para se atingir esses objetivos. É preciso, antes de mais nada, criar o ambiente institucional necessário ao desbloqueio das trajetórias "boas" (do ponto de vista das emissões) e à simultânea reconversão das trajetórias "ruins" sem, no entanto, provocar efeitos adversos na economia e sociedade locais. É bom ressaltar que a atuação institucional deve, portanto, constituir objeto de diagnósticos sistemáticos ao longo do tempo, com a contínua avaliação sobre o seu desempenho individual e de conjunto. Da ausência desse tipo de iniciativa tem resultado em grande parte a dificuldade de se questionar socialmente a falta de convergência entre as prioridades de diferentes instâncias institucionais.

     

    Roberto Araújo de Oliveira Santos Junior é pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe/MCT)
    Francisco de Assis Costa é professor do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Universidade Federal do Pará (UFPA)
    Ana Paula Aguiar é pesquisadora do Inpe/MCT
    Peter Mann de Toledo é pesquisador do Inpe/MCT
    Ima Célia Guimarães Vieira é pesquisadora do MPEG/MCT
    Gilberto Câmara é pesquisador e é o atual diretor do Inpe/MCT
    (*) Todos os autores são integrantes da Rede Integrada de Modelagem Ambiental da Amazônia (Geoma/MCT)

     

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. É uma medida internacionalmente padronizada de quantidade de gases de efeito estufa (GEE) como o dióxido de carbono (CO2) e o metano. O dióxido de carbono equivalente é o resultado da multiplicação das toneladas emitidas do GEE pelo seu potencial de aquecimento global. Por exemplo, o potencial de aquecimento global do gás metano é 21 vezes maior do que o potencial do CO2. Então, dizemos que o CO2 equivalente do metano é igual a 21. Gohar L.K. & Shine K.P. "Equivalent CO2 and its use in understanding the climate effects of increased greenhouse gas concentrations". Weather 62:307-311.2007.

    2. Vieira, I.C.G.; Silva, J.M.C. da; Toledo, P.M. de. "Estratégias para evitar a perda de biodiversidade na Amazônia". Estudos Avançados (USP), Vol.19, no.54, pp.153-164. 2005.

    3. Costa, F. de A. "Trajetórias tecnológicas como objeto de política de conhecimento para a Amazônia: uma metodologia de delineamento". Revista Brasileira de Inovações, Vol.8, no.1. 2008.

    4. Costa, F. de A. "Desenvolvimento agrário sustentável na Amazônia: trajetórias tecnológicas, estrutura fundiária e institucionalidade". In: B Becker. Um projeto para a Amazônia no século 21: desafios e contribuições. Centro de Gestão e Estudos Estratégicos. Brasília, pp. 215-363. 2009.

    5. Plantation é um tipo de cultivo agrícola desenvolvido em grandes propriedades rurais, baseado em cultivo de uma só espécie (monocultivo), que se adapta muito bem ao solo e ao clima da região.

    6. Escada, Maria Isabel Sobral; Vieira, I.C.G.; Kampel, S.A.; Araújo, R.; Veiga, J.B.; Aguiar, A.P.D.; Veiga, I.; Oliveira, M.; Pereira, J.L G.; Carneiro Filho, A.; Fearnside, P.M.; Venturieri, A.; Carriello, F.; Thales, M.; Carneiro, T.S.G.; Monteiro, A.M.V.; Camara, G. "Processos de ocupação nas novas fronteiras da Amazônia (O interflúvio do Xingu/Iriri)". Estudos Avançados (USP), Vol.19, no.54, pp.9-23. 2005.

    7. Américo, M.C.S ; Vieira, I.C.G.; Araújo, R. A.S ; Veiga, J.B. "A pecuária como elemento central na reestruturação do território na Amazônia: o caso da rodovia PA-279 e da Terra do Meio no Pará". (No prelo). In: Araújo, Roberto; Lená, Philippe (Org.). Desenvolvimento sustentável e sociedades na Amazônia. Museu Paraense Emilio Goeldi, Belém. 2010 (no prelo).

    8. Araújo, R. & Lená, P. Desenvolvimento sustentável e sociedades na Amazônia. Museu Paraense Emilio Goeldi, Belém, 2010 (no prelo).

    9. A portaria conjunta 010 do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e Ministério do Desenvolvimento Agrário, de dezembro de 2004, proibindo a emissão de registro para imóveis rurais em situação jurídica de posse por simples ocupação, acima de 100 hectares, em terras da União; a Lei 11.132, de 4/7/2005, estabelecendo uma área sob limitação administrativa provisória, na zona da BR-163; diversas operações conjuntas de combate à grilagem e ao desmatamento da Polícia Federal, Ibama e Ministério Público; o aprimoramento dos Sistemas de Monitoramento do Desmatamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe); o Programa de Combate ao Desmatamento, dentre outras.

    10. Paiva, C. A. "O que é uma região de planejamento com vistas ao desenvolvimento endógeno e sustentável?" Disponível em http://www.fee.tche.br/sitefee/download/jornadas/2/e4-07.pdf.
    Acesso em 20/09/2010.

    11. Aguiar, A. P. D.; Câmara, G.; Escada, M. "Spatial statistical analysis of land-use determinants in the Brazilian Amazonia: exploring intra-regional heterogeneity". Ecological Modelling, Vol.209, pp.169-188. 2007.