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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.62 n.4 São Paulo out. 2010

     

    NOEL ROSA

    O samba de fraque e o mercado de consumo

     

    Como o samba, inicialmente marginalizado, cantado por descendentes de escravos em barracões de zinco de bairros pobres do Rio de Janeiro, se tornou símbolo nacional? "A princípio, o samba foi combatido. Era considerado distração de vagabundo. Mas estava bem fadado. Desceu do morro, de tamancos, com o lenço ao pescoço, vagou pelas ruas com um toco de cigarro apagado no canto da boca e as mãos enfiadas nas algibeiras vazias e, de repente, ei-lo de fraque e luvas brancas nos salões de Copacabana", descreveu o compositor Noel Rosa, em entrevista ao jornal O debate, de Belo Horizonte, em 1935, uma pérola de depoimento garimpada e reproduzida em sua biografia lançada pelo jornalista João Máximo e pelo músico Carlos Didier em 1990.

    Vinte anos depois, no ano do centenário de seu nascimento, somam-se a esse compêndio sobre vida e obra, homenagens e resgates da memória do sambista, entre elas o enredo "Noel, a presença do poeta da Vila", que a escola de samba Vila Isabel levou em fevereiro para a Marquês de Sapucaí; o livro O morro e o asfalto no Rio de Noel Rosa, organizado por Leonel Kaz e Nigge Lode; o CD Martinho da Vila canta Noel Rosa com elas, com a participação das filhas de Martinho da Vila e de outras cantoras; e uma mostra de documentários sobre as décadas de 1920 e 1930 que a Academia Brasileira de Letras programou para exibir em dezembro, mês em que nasceu o "poeta da Vila".

    O moço de família abastada de Vila Isabel, que chegou a cursar medicina, mas abandonou a faculdade, gostava mesmo era da boemia, de subir o morro da Mangueira para beber e tocar com Cartola, com quem teve quatro parcerias. Também subia com frequência o morro do Estácio de Sá, onde compôs outras dezoito canções com Ismael Silva. Além do próprio Noel já ter feito sucesso com seu samba de estreia, "Com que roupa?", de 1930, suas parcerias com Cartola e Ismael Silva foram gravadas por cantores como Francisco Alves e Carmem Miranda, ícones entre as classes com acesso aos produtos da ainda incipiente indústria cultural do país.

    "O cinema, o rádio e o disco foram os principais meios pelos quais Carmem Miranda, Francisco Alves, Custódio Mesquita, Noel Rosa, Ari Barroso entre tantos outros, transformaram o samba em um artigo de grande aceitação no cenário cultural brasileiro, especialmente entre a classe média", diz o historiador Ramiro Bicca Jr., professor do Instituto Metodista de Educação e Cultura e autor da tese de doutorado "São coisas nossas: tradição e modernidade em Noel Rosa" (2009). "A transformação do samba em símbolo nacional teve que passar, necessariamente, pelo aval da classe média carioca, pois esta, sendo composta por brancos e mestiços, foi responsável pela legitimação desse gênero musical em um contexto capitalista e mercadológico". Essa associação de Noel Rosa e sua geração com a indústria cultural e a elevação do samba a símbolo nacional já havia sido central em outra tese de doutorado anterior à de Bicca Jr., defendida em 2000 por Wander Frota, na área de letras, na Universidade de Minnesota, EUA.

    O historiador Bicca Jr. defende que a importância de Noel nesse processo reside no fato de ele transitar entre o samba tradicional e a modernidade do rádio e do disco, entre a boemia dos morros e a profissionalização como músico e compositor. Nessa fronteira da tradição com a modernidade, Noel também oscila entre a influência da moderna indústria cultural norte-americana, que tanto o rádio quanto o cinema já ajudavam a globalizar nas primeiras décadas do século XX – compondo ele próprio os seus foxtrotes –, e a defesa da identidade nacional e das tradições e costumes brasileiros, como no samba "Não tem tradução", em que culpa o cinema falado por transformações no comportamento do brasileiro e arremata: "Amor lá no morro é amor pra chuchu/As rimas do samba não são I love you/E esse negócio de alô, alô boy e alô Johnny/Só pode ser conversa de telefone".

    Outra oscilação de Noel apontada pelo historiador é entre apoiar a exaltação do trabalho defendida pelo governo de Getúlio Vargas, sugerindo ao malandro que passe a usar gravata – algo retomado, décadas depois, por Chico Buarque, em "Homenagem ao malandro" – e apontar em músicas, como "O orvalho vem caindo", problemas sociais como o do sem-teto que dorme em um banco de praça e é acordado por um guarda-civil cujo salário estava atrasado. "Noel tinha consciência da distância que havia entre o povo das ruas e a ordem oficial da política brasileira. Ele deixa transparecer em muitas de suas composições a ideia de que mesmo os representantes dessa ordem vigente – policiais, autoridades, funcionários públicos – são parte da imensa quantidade de gente que não compreende a complexidade do sistema, suas corrupções, seus conchavos e, portanto, também são vítimas da exploração econômica e ideológica", ilustra Bicca Jr.

     

     

    AULAS DE HISTÓRIA Tanto as canções de Noel que tratam da influência estrangeira quanto as que abordam questões sociais são consideradas por diversos pesquisadores como uma crônica de seu tempo. Por isso, a professora Katia Maria Abud, da Faculdade de Educação da USP, defende que a representação do cotidiano na música popular seja considerada como registro histórico e usada em aulas de história. Ela dá como exemplo a canção "Três apitos", de Noel, que tem como personagem uma operária de fábrica de tecidos e pode ser associada ao período de industrialização da era Vargas. "As fábricas de tecido foram um dos primeiros tipos de indústrias a se estabelecerem nas cidades brasileiras. Nessas fábricas, o operariado era predominantemente feminino", diz Katia.

    A abordagem que ela sugere não se limita aos aspectos da produção econômica do período, mas inclusive àqueles ligados a hábitos e costumes, como nos versos "Você no inverno/Sem meias vai pro trabalho", dessa mesma canção. "O comentário sobre a ausência de meias, mais do que o frio que possa sentir a personagem, liga-se a mudanças no comportamento feminino. No final da segunda década daquele século, nas grandes cidades brasileiras, especialmente na capital da República, as mulheres abandonavam o uso das grossas meias de algodão que escondiam suas pernas", explica. A prova de que a sugestão de Katia pode dar certo veio no próprio bairro de Noel: graças ao trabalho da Oficina de Artes e Ofícios Herdeiros da Vila, o desempenho dos alunos de uma escola municipal do bairro vem melhorando com aulas que usam sambas para tratar da história do país.

     

    Rodrigo Cunha