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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.62 no.4 São Paulo Oct. 2010

     

    CINEMA

    Ficção científica: um fenômeno global

     

    De 24 a 27 de junho ocorreu a conferência anual internacional da Science Fiction Research Association (SFRA) em Carefree, Arizona, EUA. O evento reuniu acadêmicos e pesquisadores de diversas partes do planeta dedicados ao estudo da ficção científica (FC) em suas múltiplas vertentes. Nos últimos tempos, com a diversificação das manifestações do gênero, os debates têm extrapolado o âmbito tradicional da literatura, cinema e TV para abarcar também os videogames, redes sociais e demais fenômenos de comportamento.

    A SFRA (www.sfra.org), fundada em 1970, é a mais antiga organização profissional para o estudo da literatura e cinema de fantasia e ficção científica. Com o tema "Far stars, tin stars: science fiction and the frontier", a conferência deste ano ratificou uma tendência que já vinha se delineando há alguns anos no âmbito da associação: a globalização e o transculturalismo nos estudos da ficção científica. Um número crescente de contribuições oriundas de outros países, fora dos Estados Unidos, também confirma uma tendência à internacionalização dos estudos de ficção científica. O próximo encontro, com o tema "Dreams not only American", será em julho de 2011 na Universidade Maria Curie-Sklodowska, em Lublin, Polônia.

    A velocidade com que a ficção científica internacional tem chamado a atenção de estudiosos acaba desafiando alguns velhos paradigmas a respeito da natureza e nacionalidade do gênero. Para a brasilianista Mary Elizabeth Ginway, professora da Universidade da Flórida (EUA) e especialista em literatura brasileira fantástica ou de ficção científica, a FC é um fenômeno global. Autora de Ficção científica brasileira: mitos culturais e nacionalidade no país do futuro (Devir, 2005), e do recém-lançado Visão alienígena: ensaios sobre ficção científica brasileira (Devir, 2010), a pesquisadora Ginway concedeu a seguinte entrevista à Ciência e Cultura:

    A ficção científica é um gênero sobretudo norte-americano ou global?

    A Europa também representa parte da tradição de FC (do romance planetário), com Verne e Flammarion no século XIX. Mais tarde, no século XX, a FC foi popularizada e divulgada pelos ingleses e norte-americanos. Na América Latina do século XIX, as elites latino-americanas aproveitavam o discurso hegemônico da ciência como a linguagem autoritária de conhecimento, autoconhecimento e legitimização. O que Augusto Emílio Zaluar, no Brasil, entre outros na América Latina, usava para justificar ou promover a ideia de progresso e civilização, uma extensão do projeto colonial. John Rieder publicou um livro, Colonialism and the emergence of science fiction (2008) pela Wesleyan UP, discutindo textos do século XIX desconhecidos do gênero, mostrando como as origens da FC estão profundamente ligadas ao discurso colonial.

    Não sei se discurso colonial é algo global, mas, com a escalada da divulgação de textos europeus e norte-americanos, creio sim que o gênero sempre tenha sido global, embora não reconhecido ou classificado como tal. Dentro desse esquema, talvez esteja implícita a hegemonia do modelo norte-americano e, desta forma, uma suposta posição privilegiada. No entanto, o livro de Rachel Haywood Ferreira, The emergence of Latin American science fiction (Wesleyan, 2010) confirma que a FC não era um gênero totalmente "importado" e, para escritores do século XIX, muitas vezes a tecnologia representava a chance de superar a condição de neocolonialismo. Só agora textos desse período estão sendo reconhecidos como FC. Roberto de Sousa Causo é outro pesquisador que também rastreia as origens do gênero no Brasil. Em Ficção científica, fantasia e horror no Brasil, 1875-1850 (UFMG, 2003), Causo documenta a produção brasileira de FC do século XIX até meados do século XX. Pesquisas como a de Causo marcaram os primeiros passos em estudos de resgate de uma escritura marginal, de recuperação histórica — as feministas fizeram o mesmo para consolidar seu campo de estudo.

    A minha pesquisa está ligada ao século XX, uma consideração histórica e cultural do gênero: como a FC retrata atitudes perante a modernização vistas na interseção de seus ícones e subgêneros e os mitos culturais brasileiros. É claro que, com a globalização e a popularidade da fantasia e de outros subgêneros como o steampunk, vampiros, New Weird no Brasil etc, existe uma ideia de superar os limites nacionais, de que o mundo da FC é transnacional, como naquela velha questão envolvendo cosmopolitanismo versus nacionalismo. Fico contente com o novo interesse pelo gênero, e com brasileiros escrevendo em inglês para superar as barreiras de língua, como Jacques Barcia e Fabio Fernandes.

    Vejo o fenômeno da globalização como um enriquecimento da FC por visões de outras culturas, outras óticas, que vai ao encontro de uma maior aceitação do gênero no mundo todo. Acho que, aos poucos, tais vozes da periferia estão sendo mais ouvidas e reconhecidas.

    Por que escolheu se dedicar à pesquisa de FC em contexto aparentemente tão escasso e inóspito como o brasileiro?

    Sou professora especializada em literatura brasileira. Cabe a mim só a literatura escrita em português ou a tradução da mesma. Não tenho condições de pesquisar a ficção científica norte-americana, só a estudo como comparação.

    Quando escrevia minha tese de doutorado trabalhava principalmente os gêneros da distopia, do conto fantástico e da literatura urbana como reações à política da ditadura e modernização no Brasil. Na academia norte-americana só se publica tese como livro na base de uma revisão profunda e, insatisfeita com a minha tese, comecei a pesquisar a FC após minha descoberta do livro de Bráulio Tavares, O que é a ficção científica (Brasiliense, 1986), no qual ele menciona os autores da geração GRD (de Gumercindo da Rocha Dórea, famoso editor de FC no Brasil), e outros mais contemporâneos (da década de 1980 quando escreveu o livro). Meu livro de 2004, traduzido para o português como Ficção científica brasileira: mitos culturais e nacionalidade no país do futuro (2005), abrange a produção de FC antes, durante e depois da ditadura militar. Embora outros pensem que seja uma área de reduzido interesse, com a força dos estudos culturais na academia norte-americana e o trabalho de colegas na área de português do meu departamento que se especializaram em cultura popular brasileira – como Charles Perrone (música popular) e Randal Johnson (cinema) –, minha pesquisa não era tão estranha. Acho um campo bastante fértil, com escritores interessantes e acolhedores.

     

     

    Como é pesquisar FC no Brasil do ponto de vista da academia norte-americana?

    No meu livro Visão alienígena, brinco com a minha condição de estrangeira e do tema do estranhamento, isto é, uma interpretação da FC do Brasil desde os anos 1960 até os 2000. Como sou a principal pessoa especializada em FC brasileira nos EUA, sinto-me isolada, porém costumo reunir-me a colegas especializados em FC hispano-americana, o que me oferece um contexto maior. Para realizar minha pesquisa, o mais importante ainda é ir ao Brasil, falar com as pessoas, escritores, ver os livros publicados, seguir palpites.

    Voltando à questão inicial sobre globalização: talvez existam mundos paralelos ou histórias da FC, e não uma única tradição. A minha experiência mostra que o gênero está ganhando mais consideração.

     

    Alfredo Suppia
    participou do Encontro 2010 da
    Science Fiction Research Association
    em Carefree, AZ, EUA