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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.62 no.spe1 São Paulo  2010

     

    Cooperação internacional e progresso da higiene no Brasil (*)

     

    F. BORGES VIEIRA
    Professor da Faculdade de Higiene e Saúde Pública de São Paulo

     

    Já se torna corriqueira a citação de Wendel Wilkie, de que há, no presente, um mundo só. Se o homem isolado não se basta, necessitando do concurso de seus semelhantes para o progresso individual, também as famílias, os municípios, as províncias e as nações carecem do concurso recíproco, hoje facilitado pela melhoria das comunicações. As barreiras entre os paises não são apenas de ordem geográfica e urge que, por um melhor e sádio entendimento entre as nações, elas, fraternalmente, se unam, renunciando às rivalidades e às guerras, em benefício da felicidade do gênero humano. A estupidez humana, como, já há muitos anos, mencionava Richet, em conhecido livro, infelizmente ainda persiste. Quanta facilidade para os gastos astronômicos com armamentos! E ninguém extranha que sejam tidos como mal necessário. E pense-se que uma pequena parcela de tais gastos poderia resolver muitos problemas de saúde e educação!

    Tenhamos fé, todavia, no futuro e lembremo-nos, que, na atualidade, como Paula Souza tem, por várias vêzes referido, a Higiene já é o denominador comum, o ponto único em que, em mesas redondas, as nações abstraindo-se de suas ideologias políticas, apertam as mãos, na marcha para o ideal comum. O Brasil e São Paulo, não obstante terem, sozinhos, podido resolver vários dos seus problemas de saúde, como nas memoraveis campanhas de Ribas e Osvaldo Cruz contra a febre amarela, o domínio da lepra, etc., têm visto, em vários períodos de sua história sanitária, os benefícios da cooperação internacional, na solução de problemas, para os quais atuação isolada seria problemática, tal a magnitude dos mesmos, ou a insuficiência de recursos, de pessoal ou de ambiente, na ocasião, ou, frequentemente, devido às malfadadas peias burocráticas.

    Em pleno período colonial, quando as nossas possibilidades eram praticamente nulas, por falta de elemento humano adequado, a mãe-pátria pouco ou praticamente nada fez. E, mesmo que o fizesse, agiria em casa sua; a política malsã daquela época, e até mesmo no atual século XX, consistia no «colonialismo clássico», tudo retirando das colônias em proveito das metrópoles. Parece que, nesse sentido, uma nova era já se inicia, com a mudança dessa política para a autodeterminação dos povos capazes, à qual não é extranho o movimento cooperativo das nações. Todavia, nesse período colonial brasileiro, podemos ver, não propriamente uma cooperação, porque apenas servimos de campo, mas uma atuação por nação extranha, a Holanda, no início do século XVII. De fato, no período holandês, a administração do Conde João Maurício de Nassau notabilizou-se no campo das ciências naturais e médicas, pela atuação de Marcgrave, estudando nossa flora e fauna, e a de seu colaborador, o médico Piso, arquiátra da Colônia, que descreveu muitas das moléstias reinantes e dissertou sôbre o clima do país. Seu primeiro livro, sôbre as coisas do Brasil, trata, à semelhança do de Hipócrates, das águas, ares e localidades.

    A cooperação de Portugal sòmente se fêz sentir, forçada pelas circunstâncias, com a vinda da família real em 1808, quando, por brasileiros, à frente o Dr. Correia Picanço, mais tarde Barão de Goiana, e outros, funda-se o ensino médico na Baía e logo depois no Rio, e assentam-se as bases da organização sanitária.

    Durante o Império, vemos, no fim do 1º Reinado (1829), a cooperação particular de um médico francês e um italiano, Sigaud e Simoni, clínicos no Rio de Janeiro, que, com colegas brasileiros fundaram a Sociedade de Medicina, em 1835 transformada em Academia Nacional de Medicina. E' da época da monarquia a célebre francesa, Mme. Durocher, parteira famosa no Rio, onde desenvolveu apreciada influência. Já se vinha notando a influência da cultura francesa sobre os meios letrados nacionais, que deixavam para trás a portuguesa. Já os médicos procuravam sua ilustração nos livros franceses e a França era o país para onde se dirigiam em busca de conhecimentos. Mais tarde, já neste século, depois de uma certa influência alemã, sobretudo em determinados setores, o centro de influência médico-sanitária para o Brasil deslocou-se nitidamente para os Estados Unidos.

    No 2º Reinado, destacam-se, na Baía, grandes tropicalistas estrangeiros ou de origem estrangeira, como Patterson (escocês) e Wucherer (de formação e filiação alemãs).

    Durante a República, no comêço dêste século, temos o exemplo da colaboração francesa, na vinda da Comissão de Investigação sôbre a Febre Amarela, do Instituto Pasteur, de Paris, comissão essa de que fizeram parte Marchoux, Simond, Salimbeni, cujos trabalhos, no Hospital São Sebastião do Rio, confirmaram as pesquisas de Havana e as de S. Paulo, realizadas estas, sob a direção de Emílio Ribas e Adolfo Lutz.

    Esses exemplos, todavia, não foram propriamente de cooperação internacional, que só tiveram lugar em 1917, com a extensão ao Brasil dos serviços da Fundação Rockefeller. Esta benemérita Fundação, de âmbito internacional, constituida por norte-americanos, colaborou intensa e eficazmente com o Govêrno da República e dos Estados, tendo mesmo iniciado suas atividades no Brasil, pelo nosso Estado. A princípio, cuidou do problema da ancilostomose e da fundação de postos de higiene, que, partindo do tratamento da uncinariose, estendeu posteriormente sua ação aos problemas de higiene em geral. A execução dêsse serviço foi um dos grandes incentivos de onde brotaram os nossos atuais Centros de Saúde, e os postos fundados pela Rockefeller, pouco a pouco, foram se fundindo com os serviços oficiais.

    A Fundação dedicou-se, também, logo de início, ao ensino da Higiene e ao ensino Médico, tendo em vista a formação de pessoal e o desenvolvimento das pesquisas, e, como frutos dessa colaboração, temos em S. Paulo, o grande desenvolvimento tomado pela Faculdade de Medicina e a construção de seu Hospital das Clínicas e a criação, em 1918, do Instituto de Higiene, hoje Faculdade de Higiene e Saúde Pública da Universidade de São Paulo. A instituição do regime de tempo integral, nas Escolas médicas e sanitárias e nas organizações de saúde, a limitação do número de alunos, afim de se poder dar ensino eficiente, o equipamento adequado dos laboratórios, o desenvolvimento de pesquisas, são frutos dessa cooperação.

    Resolvida essa fase, entrou a Fundação a colaborar intensamente na questão da profilaxia da febre amarela, a princípio apenas no Norte do país, para, depois, assumir a responsabilidade para todo o Brasil, em serviço que se extendeu, também, a outras repúblicas sul-americanas. Efetivamente, após o surto epidêmico que surpreendeu o Rio de Janeiro em 1928, cidade que, saneada por Osvaldo Cruz, desde 1908, julgava-se ao abrigo de nova invasão e despreocupara-se de seus serviços anti-estegômicos, deliberou o Govêrno Brasileiro realizar o contrôle em base nacional e não mais considerar os surtos que se davam, como problemas locais. Assim, logo no início de 1929, assumiu parte da responsabilidade financeira do serviço de profilaxia da Febre Amarela do Norte do país, serviço êsse que, desde 1923, vinha sendo executado pela Fundação Rockefeller. Em 1 de dezembro de 1930 a zona de cooperação passou a incluir todo o país, com exceção da Capital Federal, cujos serviços continuaram com o Govêrno Brasileiro exclusivamente. Em 1 de janeiro de 1932, o Serviço da Febre Amarela do Departamento Nacional de Saúde, que operava no Distrito Federal, incluia-se, também, no esquema de cooperação, sendo que atualmente, aliás de acôrdo com as normas da Rockefeller, voltou a ser executado só pelo Govêrno Federal, entrando aquela Fundação apenas com a parte de pesquisas e preparo de vacinas.

    Dessa cooperação da Rockefeller, que coincidiu com a revelação da forma silvestre da doença, nasceram os rumos modernos de profilaxia antiamarílica, extinguindo-se a febre amarela clássica, dos meios urbanos e tendendo, atualmente, não mais a apenas controlar o desenvolvimento do vetor, mas à 'completa erradicação do Aedes aegypti, fato que, duvidado por muitos pudesse ser obtido, é hoje admitido, pelas demonstrações da campanha. O A. aegypti vai pouco a pouco sendo banido e exterminado, em quasi todos os Estados, o que constitui garantia quanto à não extensão da forma silvestre aos meios urbanos.

    O extermínio em muitas regiões de um vetor como o Aedes aegypti, foi seguida pela retumbante vitória contra o Anopheles gambiae, terrível vetor africano, do impaludismo que, cêrca de 1930, fôra introduzido no nordeste, através do porto de Natal. A invasão do Brasil pelo A. gambiae trouxe sérias preocupações a todos os conhecedores de sua infausta atuação e, não fôsse êle controlado e depois exterminado, ninguém poderia afirmar se isso não traria, com a sua difusão por todo o Continente, a destruição da civilização americana. Atingidos que fôssem os Vales do São Francisco e do Parnaíba, sua marcha seria avassaladora, sendo regiões adequadas ao seu desenvolvimento, desde o norte argentino, até a América Central, inclusive as Antilhas e mesmo a parte sul dos Estados Unidos.

    As verificações realizadas, demonstraram que não se tratava de doença nova, como se chegou a supôr, mas da importação do terrível vetor africano, cuja capacidade de infecção é incomparavelmente superior à dos anofelinos brasileiros. Como o A. aegypti, o A. gambiae é um mosquito doméstico, eminentemente antropófilo e se infecta pelo plasmódio, em alta percentagem. Depõe seus ovos em pequenas coleções de águas ensolaradas e razas, próximas das habitações e, na fase adulta, vive no interior das casas.

    A história da invasão, do contrôle e da final erradicação do Anopheles gambiae no Brasil, descrita por Soper e Wilson, constitue uma das mais realísticas notícias das tragédias humanas e mostra o valor do trabalho cooperativo.

    O nordeste do Brasil não era livre de malária que, todavia, não assumia aí carater de especial gravidade.

    Não obstante os vários avisos feitos pelos entendidos, pouco se pôde realizar com os minguados e descontínuos recursos oficiais e, em 1938, sua extensão já abrangia dois Estados do nordeste, Rio Grande do Norte e Ceará, causando grandes epidemias e mortandade, entre elas no Vale do Jaguaribe. O primeiro aviso partiu do eminente entomologista R. C. Shannon, em março de 1930, que identificou sua presença em Natal. Verificou que se tratava do Anopheles (Myzomyia) gambiae, Giles 1902, terrível e eficientíssimo vetor da África. A área infestada em Natal era pequena e a importação se afigurava recente. Localizavam-se os focos a cêrca de um quilômetro de um pôrto de ancoragem de navios rapidíssimos franceses, que faziam o serviço de correio, vindos de Dakar a Natal, em menos de 100 horas.

    Provavelmente, os primeiros terríveis portadores, na forma adulta, vieram nesses navios, podendo-se excluir a importação por via aérea de acôrdo com as condições da época. Cêrca de cinco semanas depois, um surto explosivo se instala na Capital rio-grandense do norte, continuando-se por maio a dentro, com grande mortalidade. Nessa época, já o A. gambiae tinha avançado, segundo Davis, mais um quilômetro além da área antes registrada. Verificações realizadas então, notaram ser a percentagem de glândulas salivares infectadas com esporozoitos entre os aludidos mosquitos, até de cêrca de 30%, taxa altíssima e de acôrdo com o que já se sabia sôbre o mosquito, insuperavelmente maior do que a verificada com os nossos comuns transmissores. O surto continuou em junho, sendo então tomadas algumas medidas profiláticas (Verde Paris). Amainou-se com a chegada da estação sêca.

    Em dezembro de 1930, Shannon, outra vez, verifica a extensão da área atingida, então já ocupando uma área de cêrca de 6 quilômetros quadrados. Em janeiro de 1931, novo surto epidêmico se observou em Natal, mais sério que o primeiro, com 10.000 casos notificados no bairro operário de Alecrim, cuja população era de 12.000 habitantes. Tão séria se tornou a situação, que as autoridades apelaram para o Govêrno Federal. O único serviço federal de Saúde que então operava no Estado era o de' Febre Amarela, mantido em cooperação com a Fundação Rockefeller. Êste atacou os fócos com Verde Paris a partir de março e manteve o serviço até 13 de outubro, quando Souza Pinto, assumindo a Diretoria de Saúde do Estado, passou a responsabilizar-se pelo serviço. Em abril de 1932 os trabalhos foram dados por concluídos, considerando-se o A. gambiae como desaparecido da cidade de Natal.

    E não se falou mais em surtos sérios de Malária, embora o vetor, extinto em Natal, continuasse sua marcha para o norte, ganhando os vales dos rios. Notícias de surtos epidêmicos em várias localidades da zona fizeram-se ouvir.

    A topografia dos arredores de Natal, desfavoravel à multiplicação do vetor, tornou sua marcha, a princípio, vagarosa, mas, quando atingiu os vales dos Rios Assú e Apodí, encontrou condições favoraveis, e, no fim de alguns anos, chegou ao Vale do Jaguaribe, no Ceará.

    Logo que o S. F. A. começou a combater o A. gambiae em Natal, verificou que sua zona de criação estava se extendendo. Avisos feitos por Shannon, Davis, Souza Pinto e Soper, sôbre os perigos do vetor e necessidade de combatê-lo, não foram convenientemente ouvidos. Uma medida que havia sido sugerida logo no início, quando ainda sua área de criação em Natal era pequena, junto ao mar, era a de ser a mesma inundada com águas da maré, pela abertura dos diques. Já em março e setembro de 1930 foram feitas tais recomendações, mas, devido à nefasta burocracia, deixaram de ser realizadas em momento oportuno, as autoridades locais não podendo agir sem ordens do Rio.

    Eis que, em 1938, após uma era silenciosa desde 1932, a catástrofe se anuncia. Surtos epidêmicos gravíssimos são relatados no Ceará, em regiões, até então, não propriamente malarigenas. A aparição dêsses surtos, desusados em sua gravidade, já a partir de 1930 e culminando em 1938 e 1939, com elevadíssima incidência, alta mortalidade, incidindo em regiões pobres, de população subnutrida, desorganizou tôda a economia e atividade das zonas atingidas, espalhando o terror. Centenas de milhares de pessoas adoeceram, dezenas de milhares morreram, a desolação foi trazida a muitos lares e terras e, não fosse contido e eliminado o transmissor terrível, atingisse êle os vales dos grandes rios, possivelmente não mais seria vencido e a desolação se espalharia pela América.

    A situação se apresentava gravíssima para os que conheciam a importância do A. gambiae como transmissor, mosquito doméstico, de alto poder de infectibilidade. Segundo Barber, entre outras vozes também acordes, a ameaça à América era enorme, pois a catástrofe seria incomparavelmente maior do que a da peste, da guerra e outros males temporários. Uma vez estabelecido o A. gambiae em nosso território, seus males, continua Barber, sua ameaça à civilização, seriam imensamente maiores do que a própria penetração do A. aegypti na Ásia, porque êste é de mais facil combate.

    As autoridades sanitárias locais estavam completamente desaparelhadas para fazer face à luta, afora alguma assistência em alimentos e medicamentos. Assim, em maio de 1938 os governos dos dois Estados apelaram para o Governo Federal, e Souza Pinto, designado para investigar a situação, opinou pela organização de um serviço federal para enfrentar a situação. Criou-se assim, o Serviço Antimalárico Federal, dirigido por Manoel Ferreira, que agiu apenas durante os dois últimos meses do ano, pois logo depois, verificando as dificuldades que iria enfrentar o novo Serviço, recomendou, com grande desprendimento, que a Divisão Internacional de Saúde, da Fundação Rockefeller, que já possuía pessoal treinado em seu S.F.A., passasse, em serviço de colaboração financeira com o Govêrno, a dirigir a campanha, da qual continuou êle a participar como um dos Diretores assistentes.

    Durante as discussões havidas, ficou assentado que se deveria procurar erradicar o A. gambiae, embora surgissem dúvidas quanto ao sucesso da emprêsa. A campanha seria dirigida contra êsse vetor e não contra a malária em si, que aí, desde anteriormente já existia, transmitida pelos vetores comuns nossos. Não havia, no passado, precedente de erradicação de uma espécie vetora de dada região, excetuando-se o caso da extinção da stegomyia em vários Estados brasileiros pelo S.F.A. e do caso restrito da môsca do Mediterrâneo, na Flórida. Verificou-se logo que não seria facil fazer-se estimativa do custo total, nem do tempo requerido para a campanha. Constituiu-se, pois, o Serviço de Malária do Nordeste, sendo os períodos mais críticos da campanha, de junho de 1939 a abril de 1941.

    De acôrdo com os hábitos do vetor e os conhecimentos da época, anterior ao D.D.T., a campanha se realizou, baseada principalmente na extinção das formas larvárias, pelo Verde Paris, e na destruição dos adultos nas casas, pelo expurgo, com piretro.

    O êxito favoravel, a princípio bastante duvidoso, foi pleno. As medidas de contrôle, iniciadas em 1939, deram a erradicação em menos de dois anos, trabalhando-se cêrca de mais ano e meio, para garantia final, na espectativa da existência de possíveis focos remanescentes, o que, felizmente, não se verificou. As medidas atuais prendem-se aos cuidados para evitar que nova invasão se dê, pela vigilância nós meios de viagens rápidas entre os dois continentes e cuidados para evitar a formação de focos potenciais nas cercanias dos portos marítimos ou aeroportos em ligação com a África.

    O trabalho foi árduo, feito sob sol tropical, pois as larvas se desenvolvem preferentemente fora das sombras, tendo-se nele gasto tempo muito menor do que o possivelmente esperado e um custo de cêrca de .... 40.000.000 de cruzeiros. Não obstante êste custo, o qual, segundo as conclusões da campanha, poderia ter sido menor, caso fosse dado conhecer de antemão o problema a que se, aventuraram sem orçamento presumível, pois era uma luta que pela primeira vez se fazia para a extinção de um terrível vetor em zona bastante extensa, o dinheiro foi bem empregado.

    Fosse o desastre retardado de alguns poucos anos, certamente que o D.D.T. residual teria larga aplicação, pois o A. gambiae é vetor eminentemente doméstico, a infecção sendo intradomiciliária. Entretanto, se a prática da dedetização domiciliária, caso usada isoladamente, sem destruição dos focos, certamente minimizaria ou mesmo impediria a hecatombe, evitando as infecções e portanto as epidemias, o vetor poderia perdurar, como constante ameaça, alimentando-se de sangue de animais, na dificuldade de obter sangue humano, para o qual tem essencial preferência, nas casas dedetizadas. Durando o efeito do D.D.T. alguns meses, seria necessária atenção constante, para o domínio da situação. E' de lembrar o exemplo do Rio de Janeiro em 1928, em que o abandono ou negligência das medidas anti-estegômicas proporcionou a volta da febre amarela, constituindo lição para o nosso não raro desleixo administrativo.

    Quem sabe, não foi um benefício vir a campanha antes da divulgação do D.D.T. pois, assim, proporcionou a eliminação da espécie que, de outra maneira, poderia, quiçá, ser relegada para um segundo plano.

    Quero ainda citar outro exemplo de cooperação internacional nas campanhas sanitárias brasileiras, com a conclusão de contratos entre o Govêrno Brasileiro e o Governo Norte-Americano, que deram como resultado a criação do Serviço Especial de Saúde Pública, que se estende aos vales do Amazonas e do Rio Doce, e, segundo solicitações últimas, vai também fazer trabalhos na Baía, Paraíba e Goiáz. O Serviço Especial de Saúde de Araraquara, em nosso Estado, é outro exemplo de cooperação, entre o Govêrno do Estado e a Fundação Rockefeller, devendo, no futuro, ficar todo com o Govêrno do Estado.

    E' verdade que alguns dêsses serviços seriam de ordem rotineira, como os últimos enunciados, e poderiam perfeitamente ter sido realizados pelos nossos governos, que, para a sua execução, têm geralmente contribuído com a maior parcela financeira e quasi com todo o pessoal. Infelizmente, a ingerência política nos nossos serviços oficiais e a difícil elasticidade no manuseio das verbas (que, na forma dos contratos, têm sido depositadas à disposição dos dirigentes das campanhas, não se prendendo às contingências burocráticas), tem dado mostras de nossa, por vêzes, pouco eficiente capacidade administrativa. Mas aí está o Serviço Nacional de Febre Amarela, que, sendo hoje feito exclusivamente pelo Govêrno Federal, conserva-se eficiente, por ter podido manter as normas administrativas do tempo da cooperação, obtendo as mesmas condições o Serviço Nacional de Tuberculose.

    Chegamos agora, para terminar, às organizações internacionais, do tipo do Office International d'Higiène Publique, da Liga das Nações e da UNRRA, no passado, da Oficina Sanitária Panamericana, e da atual ONU.

    O Prof. G. de Paula Souza, chefe do Serviço de Contrôle Epidêmico da UNRRA, organização internacional de emergência criada durante a última guerra, teve ocasião de, como um dos delegados brasileiros à Conferência de São Francisco, colaborar na elaboração da Carta das Nações Unidas. Higienista consumado, extranhou êle que, na carta preparada em Dumbarton Oaks, não figurasse entre as cogitações da mesma, a palavra «Saúde». Apoiada pela República da China, e por iniciativa dele, a delegação aí conseguiu que, à semelhança da extinta Liga das Nações, de cuja Organização de Higiene Paula Souza já fizera parte, a nova entidade Internacional cuidasse igualmente de prover cooperação internacional em questões sanitárias, em substituição às anacrônicas conferências internacionais de saúde, que agiam em âmbitos mais restritos e descontinuadamente, e englobando a Oficina Sanitária Pan-americana como sua secção continental para o Novo Mundo.

     

     

    (*) Palestra realizada sob os auspícios da Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência, na Biblioteca Municipal, sessão de 27 de janeiro de 1949.