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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.62 no.spe1 São Paulo  2010

     

     

    Concurso para a cadeira de história natural no magistério secundário

     

    PAULO SAWAYA
    Lab. Fisiologia Geral e Animal — Dept. de Zoologia da Universidade de S. Paulo

     

     

    O recente concurso que acaba de efetuar-se representa um passo bem auspicioso no melhoramento tão desejado do ensino médio. Apesar das falhas e dos contratempos, o fato de o concurso ter-se realizado, indica só por si, a vontade que os dirigentes do ensino têm de acertar a via para sairmos da confusão reinante.

    Muito se tem discutido, entre nós e no estrangeiro, sôbre êsse grau do ensino, e até hoje ainda não se encontrou solução satisfatória para as inúmeras questões suscitadas. Ninguem duvida que atravessamos séria crise do ensino médio, que não é unicamente nacional, e sim internacional.

    Responsabilisam-se vários fatores pelas deficiências e pelo nível ínfimo a que por vêzes baixou. Para alguns a causa está nos programas enciclopédicos e desconexos; para outros, na centralização excessiva, e terceiros ainda culpam a ineficiência da fiscalização. Aqui há os que propugnam pela abolição do ensino livre, e acolá, ao contrário, os que se batem pela sua libertação da odiosa burocracia governamental. Há, em tôdas as opiniões expostas, certo fator que contribue, ao lado de muitos outros, para o estado de inferioridade em que se encontra o ensino secundário entre nós.

    Os recentes exames de admissão às escolas superiores mostram, à saciedade, falta de preparo dos candidatos, tão profunda como jamais se viu entre nós.

    Uma das causas, entre as muitas, dessa situação, é o baixo nível cultural do professorado do ensino secundário. Admitidos a ensinar sem outra formalidade além do simples registro na Divisão de Ensino Superior, e chamados para atender às necessidades crescentes dos ginásios e dos colégios, é natural que o seu nível de cultura seja, salvo honrosas exceções, extremamente baixo.

    Estas razões levaram-nos a considerar com otimismo o atual concurso de ingresso ao magistério secundário. Pode ter sido um meio falho de escolha dos professores — e lacunas houve, inúmeras — mas ainda é a que se recomenda para a melhoria do professorado.

    O poder seletivo do concurso é indubitável. Haja vista o que ocorreru no da cadeira de História Natural e que vamos comentar ligeiramente.

    Inscreveram-se 29 candidatos, dos quaes 13 professores licenciados pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo e os restantes, não licenciados, apenas registrados na Divisão do Ensino Superior.

    O concurso regeu-se pelo Ato 49 de 12 de outubro de 1948, e constou das seguintes provas: escrita, oral, prática e didática, acrescidas da de títulos.

    A cadeira de HISTÓRIA NATURAL, no segundo ciclo do ensino secundário, compreende principalmente: Botânica, Zoologia e Biologia Geral. Com programa mais reduzido, incluem-se ainda duas disciplinas: Geologia e Paleontologia, Mineralogia e Petrografia. Não cabe discutir a questão da possibilidade, nos tempos atuais, da formação de naturalistas, nem a de haver, no curso secundário, lugar, na cadeira de História Natural, para o ensino destas duas últimas disciplinas. As noções de Mineralogia são dadas, em geral, nos cursos de Química; e as de Paleontologia, nos de Zoologia e de Botânica.

    O fato é que a banca examinadora teve de ater-se ao extenso e desharmônico programa de História Natural do curso colegial (2º ciclo). Cada ponto das provas teria, pois, de conter pelo menos três partes. Os da prova escrita foram publicados com cinco dias de antecedência; os da prática, com 48 horas; e os das demais eram sorteados de modo a contar o candidato com 24 horas para a preparação respectiva.

    Dos 29 candidatos inscritos apenas 14 se apresentaram, sendo 8 licenciados. Se alguns tiveram motivos justificaveis para se eximir do concurso, não há dúvida de que os pontos, especialmente os da prova escrita, exerceram um certo papel seletivo inicial.

    As duas primeiras provas (escrita e oral) destinaram-se à demonstração de cultura. Para elas, a banca examinadora preferiu assuntos de carater geral, que abrangessem uma série de questões importantes da matéria. Se os candidatos estivessem em dia com a moderna bibliografia, teriam oportunidade de preparar satisfatoriamente os pontos de ambas as provas. Infelizmente, foi o que, por via de regra, não se verificou. Candidatos licenciados e não licenciados não foram, salvo algumas exceções, além dos tratados elementares.

    Muitos deles desconheciam completamente o que há de moderno sôbre o assunto e até mesmo o que se publicou nos laboratórios da Faculdade pela qual se licenciaram. Parece que os professores dos cursos secundários não cultivam a ciência que ensinam. E não se diga que carecem de meios e de oportunidades, pois os laboratórios da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras sempre lhes foram franqueados e as suas opulentas bibliotecas são sempre frequentadas a quantos se interessam pela História Natural.

    Muitas vêzes, os candidatos ficavam presos demais aos livros e longe dos objetos. Assim, numa das provas orais (de erudição) em que se tratou dos Mamíferos, da propagação da prole, dos anexos embrionários, esqueceram-se de aproveitar exemplos bastante significativos, como o do cuidado de os ratos fazerem ninhos para proteger os filhotes durante a fase poiquilotérmica, ou o de mencionar, sumariamente embora, o fato de o nosso conhecidíssimo tatú ter a particularidade de parir quatro embriões, sendo todos de um só sexo. Ora, isso é índice de falta de conhecimento dos animais representativos da nossa fauna. A poliembrionia característica do Tatú poderia ainda servir para suavisar a preleção, se contassem a historieta bem conhecida que Rodolpho von Ihering traz no seu excelente «Da vida dos nossos animais» (ed. Rotermund & Co. 1934, p. 15):

    O tatú, mais a mulita,
    E
    ' lei da sua criação,
    Sendo macho não pode ter irmã,
    Quando fêmea não pode ter irmão.

    As duas provas mais significativas foram, a nosso ver, a prática e a didática e sôbre elas vale a pena ligeiro reparo. Na primeira visou-se saber se os candidatos eram Capazes de preparar a aula prática para demonstrar aos alunos o material didático que se ensinou na parte teórica. Um animal dissecado corretamente, com bôa exposição dos órgãos, ensina muito mais que uma longa descrição puramente livresca. Levou-se, por isso, em maior consideração a técnica de preparação do material, o modo de o apresentar, a maneira de o descrever. Não se tratava de saber se os candidatos possuíam profundos conhecimentos sôbre os animais, as plantas, os minerais e sôbre os fosseis que lhes foram fornecidos, mas de saber se se orientavam bem nos exercícios práticos, se tinham habilidade para preparar peças modêlo, ou para estimular os estudantes a colher e conservar o material para estudo. À vista disso, foi-lhes facultada a consulta de apontamentos e de livros, tal como um professor pode, e deve, fazer no ginásio em que leciona.

    Esta última faculdade — a de consultar livros à vontade — deveria contribuir para se ajuizar se os candidatos se achavam afeitos ao manuseio da bibliografia adequada. Infelizmente — talvez devido à excitação do exame — os candidatos solicitaram uma série de compêndios e de tratados, um têrço dos quais não era sequer aberto. Tendo sido o material da prova escolhido cuidadosamente dentre os mais típicos e os que mais se prestavam à prova, em vários tratados se achava representado e ilustrado. A falta de hábito no trato com o material, conduzia certos candidatos à impossibilidade sequer de comparar a figura esquemática do livro com a preparação que estava a examinar.

    A prova didática foi uma das mais interessantes. Deu possibilidade de a banca examinadora colher uma série de observações muito uteis. Licenciados e não licenciados deveriam demonstrar se sabiam ou não dar aulas nos ginásios, ou, melhor dito, se sabiam atrair o interêsse dos discípulos para a matéria de sua vocação e transmitir-lhes os conhecimentos indispensaveis.

    Houve provas bem vivas e atraentes, com o que, certos candidatos demonstraram qualidades didáticas apreciaveis. Cuidaram de bem preparar o material demonstrativo; explicavam com clareza as partes mais importantes do tema. Mostravam e ensinavam, segundo o célebre aforisma: «Na História Natural quem não mostra não ensina». Alguns, no desenvolvimento das suas preleções apresentavam desenhos elucidativos. Eram sóbrios no uso de têrmos técnicos, evitando-os na medida do possível, e quando os empregavam, escreviam-nos com clareza no quadro negro. Nem sempre, porém, foi assim. Candidatos houve, e de modo particular entre os licenciados, que tomavam atitudes doutorais, e suas aulas não ficaram muito aquem das que se proferem na Universidade. Foram aulas doutas, repletas de informações, mas acima do nível cultural dos alunos do Colégio.

    Enumerar e entrar em pormenores àcêrca das teorias, antigas e novas, que tentam explicar a ascenção da seiva nos vegetais, discutí-las em têrmos da físico-química, no ginásio, é induzir os estudantes a decorá-las sem as compreender. Explicar a reprodução dos fungos, sem dar exemplo prático ao alcance dos alunos, é Falha sensível. Dizer, por exemplo, que o Saccharomyces cerevisiae se reproduz por brotos, e não aproveitar a oportunidade para contar sumariamente como se fabrica a cerveja, é desprezar boa oportunidade para despertar o interêsse dos ouvintes. E êste interêsse talvez fosse mais vivo, se, ao abordar a reprodução dos mofos. lembrassem de referir-se, embora ligeiramente, à penicilina, hoje tão popular e tão em voga. Isto amenizaria a aridez do intrincado dos zoósporos, dos aplanósporos, dos conidiósporos. Não é facil transmitir estas noções aos adolescentes. Um tubo de ensaio com uma cultura de cogumelos ou um tufo de bolor são mais elucidativos que o enfileirar uma série de nomes complicados, mal pronunciados, e que os estudantes mal podem escrever. Dêstes princípios básicos de pedagogia, alguns candidatos se esqueceram completamente.

    A uma das turmas coube discorrer sôbre os Crustáceos. A parte geral do ponto apresenta aspectos verdadeiramente atraentes, A ecologia de um grupo de animais que ocorre no mar, na água doce e na terra, por certo, deve ser preferida para despertar o interesse dos principiantes. Infelizmente, porém, alguns candidatos se aventuraram pelo emaranhado da sistemática dos grupos superiores dessa classe de Artrópodos, crivada de nomes complicados, cuja significação alguns se esqueceram de mencionar. A estudantes que se iniciam na zoologia, parece mais propícia conhecer o fenômeno de o camarão esbranquiçado passar a vermelho vivo ao ser posto na panela e dêsse fenômeno ter uma explicação clara e precisa, que o ser forçado a decorar a nomenclatura dos apêndices, com requintes de minúcias.

    Aulas deficientes e aulas doutorais são os dois maiores escolhos do ensino da História Natural nos cursos secundários. Devem ser eliminados, principalmente porque podem conduizir os estudantes a dois caminhos falsos: o de perniciosa nova ciência (que muitos professores têm quando empregam têrmos que êles mesmos não compreendem) e o do horror à natureza — característica, infelizmente, tão espalhada entre os jovens do nosso país.

    Não deixou de ser interessante verificar que as aulas mais agradaveis foram dadas pelos candidatos que passaram pelas escolas normais. O treino pedagógico que tiveram no ensino primário foi-lhes de grande utilidade, agora, no concurso ao magistério secundário. Êste falo não deveria ser descuidado por aqueles que se empenham em incrementar e melhorar a formação do nosso professorado secundário.