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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.62 n.spe2 São Paulo  2010

     

    Crodowaldo Pavan e sua atuação na política científica brasileira

     

    Aldo Malavasi

     

     

    A frase em destaque, dita por Marco Antonio Raupp, atual presidente da SBPC, por ocasião da morte de Pavan em abril de 2009, condensa de maneira eficiente a atuação de Pavan como pesquisador, professor e gestor público. Por uma simples questão de evolução do tempo, é altamente improvável que se tenha outra pessoa como Pavan na história da ciência brasileira.

    A vida de Crodowaldo Pavan pode ser dividida nas seguintes fases: 1) sua formação científica sob a forte influência de André Dreyfuss e a convivência com Theodosius Dobzhansky, aproximadamente de 1938 a 1946; 2) sua fase altamente produtiva como pesquisador em genética de insetos, inicialmente no Departamento de Biologia da USP, posteriormente no laborátorio em Oak Ridge no Tennessee e no Departamento de Zoologia na Universidade do Texas em Austin, aproximadamente de 1950 a 1975; 3) sua fase de forte atuação política, envolvendo-se na criação da Academia de Ciências do Estado de São Paulo e da Associação de Docentes da USP, eleito presidente da SBPC, indicado para presidente do Conselho Técnico-Científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e, finalmente, presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), aproximadamente de 1978 a 1990; 4) sua fase de aposentadoria do Instituto de Biociências da USP, ida para o Instituto de Biologia da Unicamp e, finalmente, como colaborador no Instituto de Ciências Biomédicas na USP.

    Nessas quatro grandes fases da vida de Pavan, ele sempre cultivou amigos, admiradores, colaboradores, parceiros que o tornaram uma lenda dentro da ciência brasileira. Na qualidade de aluno e depois colaborador, tive o grande privilégio de conviver razoavelmente com ele e sua família e aprendi a admirá-lo pela forma franca e aberta de ser, sendo, ao mesmo tempo, sempre provocativo e cuidadoso com aqueles que o cercavam. Durante os meus anos de convívio com ele, principalmente na segunda fase, antes de sua atuação como presidente da SBPC, Fapesp e CNPq, conheci um pesquisador muito astuto que invariavelmente se perguntava: por que as coisas são assim e não diferentes de como são? Em uma reunião ou numa mesa de restaurante, quando um assunto suscitava discussão e depois caminhava para um consenso, Pavan se rebelava e propunha uma visão oposta ou posicionamento do tipo "advogado do diabo". Esse comportamento contestador sempre foi sua característica até o final de sua vida e me influenciou para tentar seguir o mesmo tipo de raciocínio. Mas quando aprendi com ele a contestar, discutíamos ardorosamente por assuntos até irrelevantes. No final de sua vida, quando acompanhava mais a distância minha trajetória e não a entendia claramente, continuava a me questionar e a me provocar, o que me dava enorme prazer. Ao abandonar naturalmente suas funções administrativas, seu espírito irrequieto não se acalmou e continuou a fazer pesquisas no ICB/USP - a bem da verdade com assuntos meio malucos - mas sempre trazendo uma nova interpretação para aquilo que observava.

     

    PAVAN E A SBPC

    Durante a maior parte do regime militar, ele esteve fora do país, trabalhando na Universidade do Texas. Apesar de ter uma confortável posição tenure como full professor no Departamento de Zoologia, ele não se aquietou e voltou para a USP com um salário três vezes mais baixo. Isso mostra a forma como Pavan pouco se importava com as questões financeiras e se adaptava ao que ganhava. Chama a atenção na sua morte o fato de ter ido para o Hospital Universitário da Cidade Universitária e não para um hospital privado de primeira linha.

     

     

     

     

    Na SBPC, Pavan ocupou uma das vice-presidências, entre 1975 e 1977, quando o presidente era Oscar Sala e a Sociedade tinha contínuos enfretamentos com os militares. Sua atuação na época foi discreta, mas serviu para ser mordido pela picada da política científica onde, até então, tinha pouco atuação.

    Elege-se então presidente da SBPC em 1981, sendo reeleito por mais duas gestões e deixando o cargo no meio de seu terceiro mandato, em 1987, para assumir a presidência do CNPq. É interessante notar que na Reunião Anual de 1977, originalmente planejada para Fortaleza, mas transferida para a PUC de São Paulo por pressão governamental e que foi o marco da contestação da SBPC contra o regime vigente, Pavan era o vice-presidente da Sociedade. Dez anos após, como presidente e importante interlocutor do processo de distensão, Pavan aceita o convite do primeiro ministro de Ciência e Tecnologia, Renato Archer, para assumir a presidência do CNPq, cargo de importância vital para a política de ciência e tecnologia (C&T) do país.

    O que poderia ser qualificado de incoerência, dada a forma sempre crítica de Pavan tratar as ações dos governos, tanto federal quanto estaduais, na verdade foi resultado de um processo de interação com os governos militares no sentido de promover a política científica brasileira e não de confronto, como na década anterior. Pavan liderou, com uma diretoria da SBPC de muitos bons nomes, uma aproximação com os órgãos de governo sem, entretanto, perder a postura crítica. A própria estatura científica dele e sua conhecida independência política permitiam que ele navegasse por diferentes ambientes sem ser taxado com qualquer rótulo. É interessante o relato que ele faz, em início de 2006, a Fernando Ferreira de Barros em publicação do CNPq (1), de um encontro com o então presidente João Figueiredo:

    Uma vez, já como presidente da SBPC, encontrei o João Figueiredo numa festa e fui conversar com ele. O engraçado é que ele estava sozinho numa festa, o presidente da República, sozinho... Eu fui conversar com ele e disse: 'Presidente, a SBPC está pedindo uma entrevista com o senhor faz seis meses e nós não tivemos ainda resposta". Ele falou: "É, alguém me falou, mas eu não vou dar entrevista para vocês, não". E eu perguntei por quê. Ele disse: "Vocês são muito complicados e estão fora dos nossos ideais"; daí eu disse: "Senhor presidente, desculpe, mas eu posso garantir ao senhor que, se a SBPC não existisse, sem dúvida eu procuraria o senhor para criar uma SBPC. A SBPC é muito favorável ao governo, é contra os ministros e os ligados ao governo que cometem erros, mas o presidente, nós até ajudamos".

    Foi então, durante os anos da gestão de Pavan à frente da SBPC, que ocorreu uma mudança fundamental na forma de interagir com os órgãos de governo, mas mantendo e preservando os objetivos originais e a consistência da Sociedade. Assim, a década de 1980 foi um período em que a SBPC participou da transição para a democracia, com uma atuação política voltada para o desenvolvimento do país e com o diálogo aberto com o poder constituído. Como Pavan era um cientista de méritos inquestionáveis e de posição política muito independente, era a pessoa certa no lugar certo quando assumiu a presidência da SBPC, após a gestão de José Goldemberg, que assumiu após a renúncia de José Reis descontente com os rumos que a Sociedade tomava. O grande mérito dele foi, então, conduzir a SBPC das águas revoltas dos tempos de repressão para as ondas mais calmas da transição democrática. É importante ressaltar que ele não estava só nesse processo e contava com figuras expressivas da diretoria, como Carolina Bori, Angelo Machado, José Albertino Rodrigues e Aziz Ab'Saber.

    Além desse aspecto, muito importante, de colocar a SBPC como a principal interlocutora do governo para as questões de C&T, foi sob sua batuta que ela definitivamente assumiu um papel na difusão científica e contribuiu de forma significativa para mostrar à sociedade civil brasileira a imagem do cientista socialmente participante, voltado para os grandes problemas nacionais e não apenas para as suas pesquisas de laboratório. Foi nessa perspectiva que ele aceitou presidir o CNPq, mesmo tendo recebido críticas de alguns setores da comunidade científica.

    A visão que Pavan tinha da SBPC era a melhor possível. Isso fica claro em entrevista que ele concedeu a Folha de S.Paulo por ocasião do 50º Aniversário da Sociedade, em 1998, e publicado no livro Cientistas do Brasil - Depoimentos (2). Quando perguntado qual a contribuição da SBPC para a ciência nesses 50 anos, ele respondeu:

    Não fosse a SBPC não existiria desenvolvimento científico e tecnológico no Brasil. Seria um negócio de quinta classe. E hoje no Brasil temos grupos de nível internacional. Só não temos mais, por falta de recursos. Se existirem recursos, seríamos um país do primeiro mundo, pelo menos em termos de ciência e tecnologia. O papel da SBPC vem do seguinte. Ela sempre teve muita influência e sempre foi contra o governo, porque eles sempre faziam muitas coisas erradas. E nós não éramos insaciáveis. Éramos um pouco patriotas, queríamos o desenvolvimento, acreditávamos numa coisa e está aí demonstrado. Todos os países desenvolvidos têm prioridade em educação, saúde, ciência e tecnologia. Tudo o que a SBPC sempre defendeu ardorosamente. Mais do que qualquer outra instituição formada no país, ela teve influência direta no que ela queria, no que propunha. Se estamos nessa posição, se deve principalmente à SBPC. Mas precisamos esquentar a SBPC mais. Ela está esfriando um pouco.

    Evidentemente, como se tratava de uma entrevista a um influente jornal diário, ele aproveitava para carregar nas cores. É claro - e ele sabia disso - que o desenvolvimento de C&T não foi tão dependente da atuação da SBPC. Mas ao afirmar isso, chamava a atenção para sua importância. Deve ser salientado, entretanto, que essa era a análise que ele fazia quando em público, mas que constantemente nos chamava a atenção - quando dirigentes da SBPC - de que realmente estávamos esfriando. Era difícil para ele entender - ou pelo menos nos fazia pensar assim - que dez anos após ter deixado a presidência e em 21 anos de chumbo o papel da SBPC continuava o mesmo, mas com estratégias de ações diferentes daquelas usadas no passado.

     

    PAVAN, A FAPESP E A CRIAÇÃO DO MCT

    Pavan acreditava que os cientistas deveriam, a todo custo, mostrar aos governantes a importância da C&T para o desenvolvimento do país. Ao mesmo tempo, fazia uma enorme difusão dos trabalhos científicos - tirando vantagem de sua excepcional didática - em qualquer ambiente que estava, desde um elevador cheio de pessoas até em reuniões com ministros. E criticava os colegas que se negavam a dar entrevistas com receio de eventuais erros que poderiam ser cometidos. Toda a sua bagagem científica acumulada na segunda fase de sua vida, foi integralmente utilizada durante a terceira fase, onde se fazia ouvir pela reconhecimento nacional e internacional que dispunha. Assim, quando assumiu a presidência do Conselho Técnico-Administrativo da Fapesp, no início da década de 1980, a situação financeira da fundação não era das mais confortáveis.

    Embora, por lei, ela devesse receber 0,5% dos impostos arrecadados pelo estado de São Paulo, os repasses aconteciam até dois anos após o apurado, o que representava uma enorme perda em época de inflação galopante. Com isso, a Fapesp chegou a receber apenas 0,1%, ou seja, 20% do que deveria de fato receber. Após uma ampla articulação política envolvendo a comunidade científica e, principalmente, os deputados estaduais e os secretários de estado, foi aprovado pela Assembleia Legislativa um repasse em duodécimos no próprio ano da arrecadação. Com isso, a situação financeira da Fapesp ser reverteu, permitindo uma enorme tranquilidade financeira.

    Esse episódio marcou Pavan, que teve sua primeira grande experiência como gestor público. Ao mesmo tempo, a partir de 1984 e 1985, ele se empenhou, ao mesmo tempo como presidente da SBPC e do CTA/Fapesp, para a criação do Ministério de Ciência e Tecnologia. Foi organizada a Comissão das Sociedades Científicas que, em sucessivas reuniões, passaram a municiar com ideias a serem aplicadas no futuro ministério.

    Sua carreira como gestor foi coroada quando convocado pelo primeiro ocupante do recém-criado MCT, o ministro Renato Archer, para ocupar a presidência do CNPq. Apenas para destacar um aspecto, durante sua gestão à frente do órgão, o número de bolsas aumentou em mais de dez vezes.

    Resumindo, o papel de C. Pavan, como gostava de assinar, na ciência brasileira e mais particularmente para a SBPC foi emblemático pela atuação firme, independente, eficiente e principalmente, entusiasmada.

     

    NOTA BIBLIOGRÁFICA

    1. Crodowaldo Pavan: memória de uma trajetória. Entrevista concedida a Fernando Antonio Ferreira de Barros, Sedoc/CNPq, julho 2009.

    2. Cientistas do Brasil: depoimentos. SBPC. 1998.

     

    Aldo Malavasi é secretário-geral da SBPC e diretor-presidente da Moscamed Brasil