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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.62 n.spe2 São Paulo  2010

     

    Gestão Oscar Sala relações institucionais entre o governo federal e a SBPC

     

    Luiz Edmundo de Magalhães

     

     

    Foram duas as principais razões que me levaram a escrever estas memórias sobre as relações institucionais entre a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), sob a presidência do professor Oscar Sala, e o governo federal, incluindo o próprio presidente da República, Ernesto Geisel. Uma delas foi dar o meu testemunho sobre a conduta absolutamente impoluta do professor Sala, não só à frente da SBPC, como em tudo na sua vida. A outra razão se deve à minha convicção de que o governo, naquela época, estava empenhado na abertura política. Só não a fez, de imediato, devido às inúmeras dificuldades que teve que enfrentar com os grupos radicais dentro do seu próprio governo. Na qualidade de secretáriogeral da SPBC durante dois mandatos (1973 a 1977), fui testemunha de que o governo desejava a abertura e, como parte da sua ação, havia decidido conquistar a simpatia e o apoio da comunidade científica, usando, para isso, a SBPC. O principal mentor dessa estratégia foi, sem dúvida, o então ministro do Planejamento, João Paulo dos Reis Velloso; entretanto, não se pode excluir a provável participação do ministro chefe da Casa Civil, o general Golbery do Couto e Silva.

     

     

    Como, até a presente data, não tenho conhecimento de nenhuma interpretação que dê esse crédito ao governo, entendo que é uma questão de justiça expô-la e divulgá-la, para que possa ser avaliada e considerada. Sei muito bem que, até o momento, prevalece uma visão bastante crítica do governo da chamada Revolução de 1964. Acho isso justo, mas é necessário também que as verdades sejam ditas. Espero, no desenvolvimento deste depoimento, expor razões suficientes para justificar as minhas constatações sobre fatos ocorridos há mais de 30 anos. Certamente só muito poucas pessoas se lembrarão, hoje, do que então acontecia, razão pela qual tentarei, muito rapidamente, relembrar qual a situação política daquele momento.

    Partiu de Minas Gerais, na noite de 31 de março de 1964, o golpe militar que implantou uma ditadura que duraria mais de 20 anos. Para se manter no poder, os dirigentes fizeram uso da força e da tortura, dividindo a opinião pública entre uma parte, que apoiava o golpe, e outra, formada principalmente por jovens, universitários e intelectuais, que a combatia com ideias e até mesmo com armas.

    A repressão foi grande; imprensa censurada e rebeldes perseguidos com violência. A SBPC, mesmo sendo oposição, gozava de certa liberdade, sempre vigiada de perto. No entanto, conseguia, uma vez por ano, na sua tradicional Reunião Anual, expressar seu pensamento, com críticas ao governo militar. Era, assim, considerada o único fórum livre. Daí ter granjeado uma grande fama e ter bastante sucesso nas suas atividades, em especial, nessas reuniões anuais, quando oradores defendiam direitos fundamentais da sociedade, e uma plateia ansiosa ouvia e aplaudia essas exposições. Durante a gestão do professor Warwick Estevão Kerr à frente da presidência da SBPC, fui convidado a colaborar com o editor da revista Ciência e Cultura, o doutor Adolpho Martins Penha, do Instituto Biológico, então com sua saúde abalada. Pouco tempo depois, acabei substituindo-o e participei da organização das reuniões anuais. Desligado do cargo de editor, em 1972, fui para os Estados Unidos, como professor visitante na Universidade do Texas. Na minha volta, candidatei-me ao cargo de secretário-geral, para o qual fui eleito e e tomei posse em julho de 1973. A diretoria era composta pelo presidente Oscar Sala, primeiro vice-presidente Carlos Alberto Dias, segundo vice-presidente Carlos Chagas Filho, secretárias Carolina Bori e Eliana Azevedo e tesoureiro Renato Basile.

     

    VISITA AO PRESIDENTE GEISEL

    Creio que não pode haver evidência maior do interesse do governo federal em manter um relacionamento harmônico e cooperativo com a SBPC, do que o convite feito a toda a diretoria para uma entrevista com o presidente, no Palácio do Planalto, logo no início de seu governo. É fácil imaginar que a tomada de decisão, por parte do governo federal, de levar toda a diretoria da SBPC à presença do presidente da República não foi um ato assumido de improviso ou impensadamente, o que teria sido uma irresponsabilidade inadmissível. Foi uma decisão que deve ter sido bem estudada e bem avaliada, com propósitos definidos.

    É bom lembrar que as relações entre a SBPC e o governo federal, desde o início do golpe militar de 1964, eram de completo antagonismo. Não se podia tolerar um governo ditatorial e torturador. O que teria, então, mudado no governo Geisel? Para muitos, nada! Mas a verdade é que havia no ar certo clima um pouco mais otimista, acenando com uma abertura política e certa redução das torturas aos presos políticos. Era uma promessa... ou, talvez, um desejo de muitos! Sem dúvida, de um modo geral, o governo Geisel já era visto e sentido com outros olhos.

    Não posso precisar exatamente quem fez o convite para que fôssemos ter essa entrevista com o presidente, mas sei que o fato causou bastante preocupação entre nós. A decisão em aceitar o convite coube, exclusivamente, ao presidente Oscar Sala e, acredito, foi acatada por todos os membros da diretoria. Sala era um homem calado, de poucas palavras. Era recatado, mas muito enérgico. Tinha convicções firmes dentro de rígidos princípios morais e éticos. Não conheci ninguém como o Sala, de princípios tão arraigados, tão independente e de decisões inabaláveis. Sempre me pareceu um bom negociador, quando tinha uma questão relevante a resolver. Ocupava, naquela época, o cargo de diretor científico da Fapesp, onde impunha muito respeito, nunca transigia. Na SBPC, como presidente, também mantinha a mesma postura e o mesmo rigor. Não abria mão de suas convicções, não concedia, não bajulava nunca. Se recebia qualquer benefício em nome da instituição, isso nunca poderia ser visto como uma barganha, mas, sim, algo concedido por mérito, por justiça. A diretoria confiava integralmente nele.

    Finalmente chegou o dia da visita. Estávamos todos muito preocupados. O que o governo iria querer pedir ou propor? Estávamos conscientes da responsabilidade desse encontro. Ele tinha, ou poderia ter, um significado emblemático de uma adesão. Longe de nós tal ideia. Talvez, para nós, pudesse ser uma forma clara de dizer: "nós existimos e estamos aqui presentes com as nossas reivindicações, nossa inconformidade; se viemos em paz, esperamos consideração e - por que não? - colaboração dentro do mais saudável espírito de respeito mútuo."

    Minha mais forte lembrança dessa visita foi a pergunta direta e objetiva do presidente ao professor Sala:

    - Afinal, qual a diferença entre a SBPC e a Academia Brasileira de Ciências?

    Sala respondeu dando todas as explicações óbvias e corriqueiras, que todos nós conhecíamos. Pensando nisso hoje, posso supor que o presidente queria se certificar de que a opção que ele tinha feito de interagir com a SBPC, e não com a ABC, tinha sido a melhor e a mais correta. Creio que, com a exposição de Sala, ele ficou convencido do caminho certo, pois a SBPC passou a participar de vários eventos no decorrer do seu governo.

    Despedimo-nos e saímos. Acredito que tivéssemos passado no teste, não quero dizer brilhantemente, mas heroicamente, sem feridos, sem que nada houvesse a lamentar!

    Voltamos, como fomos, sem entender muito bem o que a nossa visita tinha significado, tanto para nós, como para eles. Hoje, estou convencido de que, para eles, teria sido muito satisfatória, pois marcou o início de um contato permanente, bastante proveitoso, que era o que eles procuravam e desejavam.

    João Paulo dos Reis Velloso era o ministro do Planejamento do presidente Geisel, jovem, charmoso e elegante, com muito prestígio, ele era um dos chamados "Ministros da Casa". Com gabinete no Palácio do Planalto, ele se reunia todas as manhãs com o presidente, o que lhe dava, seguramente, muito poder e responsabilidades. Foi durante a sua gestão que a ciência brasileira recebeu mais atenção e passou a fazer parte do conjunto de elementos usados no planejamento do desenvolvimento do país. Foi criado o Plano Básico de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PBDCT), no qual estavam expostas as prioridades do desenvolvimento científico, que serviriam de base, inclusive, para orientar os pedidos de auxílio financeiro para a pesquisa. Se a área ou tema da pesquisa para os quais estavam sendo solicitadas verbas não estivessem contemplados no PBDCT, era certo que não sairia dinheiro. Além disso, o CNPq passou a fazer bianualmente um documento por área de conhecimento, chamado Avaliação e Perspectiva, que era um balanço de tudo que fora feito no período e a colocação do que se esperava que viesse a ser feito em seguida, um elo entre o passado e o futuro, com dados qualitativos e quantitativos. Nunca a ciência brasileira fora tão bem monitorada, alvo de tamanha atenção.

    Bem no início da nossa gestão, o professor Sala foi convocado para uma reunião em Brasília, no próprio Ministério do Planejamento. Acompanhei-o. O ministro tinha planos! Pediu que organizássemos um tipo de simpósio com as lideranças científicas das mais diversas áreas do saber, para expor, digamos, o estado da arte da cada uma delas, numa data pré-determinada, tudo subvencionado pelo ministério. Creio que foi dessa feita que, ao sairmos de Brasília, fomos direto ao Ministério da Fazenda, no Rio de Janeiro, para receber um adiantamento, em dinheiro vivo, de parte da verba destinada pelo ministro, para fazer face às despesas e subvencionar a SBPC. É bom lembrar que a SBPC foi sempre subvencionada por órgãos do governo, tanto federal, como estadual e, até mesmo, municipal. Os ventos estavam mudando. A SBPC havia transferido sua sede de uma sala no Instituto de Química da USP, na Cidade Universitária, para um pequeno e modesto sobrado geminado, em Pinheiros, na rua Cunha Gago e passava por momentos de grandes dificuldades financeiras, com sua capacidade de realizações extremamente limitada. Agora começava a receber atenção e dinheiro, em função do seu próprio trabalho e mérito, o que era justo e sem nenhum favor.

    Tendo aceitado a proposta do ministro, para organizar a reunião em Brasília, o professor Sala se pôs a trabalhar. Para ele, seria fácil selecionar um dos melhores grupos de pesquisadores. Como diretor científico da Fapesp, conhecia perfeitamente bem a comunidade científica e era capaz de discriminar as grandes lideranças. Quando tudo estava preparado, e chegava a data da realização do evento, surgiu um imprevisto intransponível: por morte de algum político importante, o governo decretou luto oficial, não sendo possível, assim, a realização de qualquer evento festivo no período. O simpósio simplesmente foi suspenso, sem tentativa de transferência de data. Mas, afinal, o que o ministro Velloso pretendia? Simplesmente anunciar o seu plano de transferir o CNPq do Rio de Janeiro para Brasília, para uma sede nova, alterando seus estatutos e seu nome, de Conselho Nacional de Pesquisa para Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, sem, no entanto, alterar a sigla CNPq. Dava, assim, uma maior amplitude ao órgão, um maior campo de atuação. Ele era, realmente, um ministro com grande interesse na ciência, que entendia o seu papel e a sua importância no desenvolvimento estratégico do país. Infelizmente, nunca mais tivemos, no governo, um político com essa compreensão e afinidade com a ciência.

    Passado algum tempo, aconteceu mais um encontro do professor Sala com o ministro Reis Velloso, agora em São Paulo, no escritório, que mantinha na Avenida Paulista. Sala foi sozinho e me contou o teor da entrevista. O ministro tinha vindo pedir a tolerância dele para a indicação que ele pretendia fazer do jovem engenheiro José Dion de Mello Teles para o cargo de presidente do CNPq.

    O Dion era um velho conhecido nosso, uma boa pessoa, amiga e colaboradora. Formado pelo ITA em engenharia eletrônica, foi convidado, junto com mais dois colegas de turma, a gerenciar o novo computador da Politécnica, sob a responsabilidade de um pequeno comitê de professores da USP. Dion era meu amigo. Trabalhamos juntos nesse computador, adaptando um programa para uso em genética, que eu havia trazido da Dinamarca. Foi o uso pioneiro da computação eletrônica em genética no Brasil.

    No decorrer do tempo, Dion foi apresentado a Delfim Netto, professor da Faculdade de Economia e Administração, então secretário de Estado de São Paulo dos Negócios da Fazenda. Dion era um jovem afável, simpático, inteligente e com boa competência. Foi levado por Delfim a trabalhar no banco do estado, o Banespa, e depois para Brasília, quando Delfim se tornou ministro da Fazenda. Em Brasília, Dion progrediu muito. Logo implantou o primeiro sistema de computação no Senado, tornando-se muito bem visto entre os senadores. Era, também, amigo do Reis Velloso, seu conterrâneo, que o nomeou presidente do Serviço de Processamento de Dados. Apesar de todo esse sucesso, sem dúvida, com mérito, Dion não dispunha das credenciais acadêmicas que o recomendassem a assumir a presidência do CNPq. Que visão teria ele da ciência brasileira na presidência do órgão? Inteligência certamente não lhe faltava, nem jogo político, mas era bastante jovem, não tinha maturidade, conhecimento da área, capacidade para gerir o CNPq com sucesso. O professor Sala não podia fazer nada, nem mesmo comentários. Aquele era um pedido que exigia paciência e tolerância; não era para ser discutido e, sim, para ser atendido.

     

    A SBPC E A REUNIÃO ANUAL DE RECIFE

    Nessa época, por ocasião da Reunião Anual, a SBPC congregava todas as sociedades científicas das diversas áreas do conhecimento das ciências, das artes e humanidades no país e, como já foi dito, era considerada uma oportunidade de, além da prática da boa e saudável discussão das ciências, abrigar espaço para discussão política e para reivindicações. Esse era o grande charme da Reunião, o que a tornava um momento ansiosamente esperado, principalmente pela própria imprensa, dos melhores jornais que lhe davam uma ampla cobertura, no nível nacional. Geralmente era enviado um jornalista para acompanhar de perto o evento, noticiando tudo o que acontecia e entrevistando convidados ilustres. Tudo isso não significa que a SBPC não fosse patrulhada pelo governo e que ocorressem, até mesmo, algumas prisões dentro dos seus limites territoriais.

    A Reunião Anual, é bom que se diga, nunca perdeu o seu caráter eminentemente científico. Certamente o seu padrão de qualidade foi cuidadosamente preservado e melhorado, principalmente pela escolha de convidados especiais do Brasil e do exterior, de grande renome.

    Se aqueles foram tempos difíceis, foram também emocionantemente heróicos, em que nossas realizações eram feitas com determinação e amor, todos cientes das dificuldades e conscientes das nossas responsabilidades.

     

     

    CELSO FURTADO EM RECIFE

    A Reunião Anual da SBPC de 1974, a primeira que a nossa diretoria estava organizando, ocorreu entre 10 e 17 de julho, na capital pernambucana. Acolheu-nos a Universidade Federal de Pernambuco, cujo reitor era o professor Marcionílio de Barros Lins, um bioquímico de certa projeção científica. Entretanto, acabou se mostrando um homem de direita, alinhado com a ditadura militar. Nunca deixou de nos criticar. Éramos um incômodo para a sua posição política e, certamente, para as suas pretensões. Esmeramo-nos no preparo da Reunião, para que tudo saísse muito bem. Foi uma reunião grande. Entre os convidados ilustres, estavam o professor Walter Leser, na época secretário de Saúde do Estado de São Paulo, e o economista Celso Furtado, ex-ministro de Planejamento do governo Juscelino. Ele vivia exilado na França e, graças ao nosso convite, era a primeira vez que voltava ao Brasil. Foi um dos que criaram a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), com sede no Recife. Além deles, havíamos convidado para fazer a nossa conferência de encerramento um de nossos mais recentes associados, o ministro João Paulo dos Reis Velloso, que para demonstrar que as relações entre governo e SBPC eram mesmo para valer, num gesto emblemático, tinha se filiado à Sociedade, passando a pagar sua mensalidade e aceitando participar das nossas atividades. Não foi pouca coisa; sem dúvida, o ministro era muito sedutor! No entanto, quem estava incomodado com a presença do ex-ministro Celso Furtado na reunião era o reitor Marcionílio. Ele achava que a SBPC não deveria tê-lo convidado e que poderia acabar sendo preso novamente pelos militares. Era um boato, uma suspeita no ar. Uma noite, Celso Furtado saiu do hotel e voltou tarde da noite. Isso já foi motivo de preocupação, o bastante para se pensar em sua eventual prisão. Só no dia seguinte ficamos sabendo, não me lembro mais como, que, naquela data, a FEB comemorava uma vitória que ela havia tido na Itália e que o alto comando militar do Recife decidira convidar Furtado, ex-combatente e comandado de alguns generais, para participar das comemorações. Era, assim, o oposto do que esperava o reitor.

    Celso Furtado deveria fazer uma conferência, programada para ser realizada no maior auditório da universidade, num prédio isolado do edifício principal. Na véspera, a diretoria da Sudene havia solicitado uma audiência ao professor Sala, pedindo que a palestra fosse feita em sua sede, e não na universidade. Essa hipótese já havia sido discutida por nossa diretoria e havia o consenso de que pudéssemos parecer provocativos, se cedêssemos ao desejo de todos os membros da Sudene de recebê-lo, homenageá-lo, mostrar a gratidão pelo que ele havia feito. O professor Sala não cedeu.

     

     

    Na manhã seguinte, Sala e eu ficamos de prontidão para acompanhar o conferencista até o auditório. Foi meu primeiro e único contato com ele, que me deixou uma forte impressão: um homem absolutamente consciente de suas responsabilidades, extremamente simples, calado, modesto mesmo, mas com evidente personalidade forte.

    Chegamos ao auditório. Absolutamente lotado. Na frente, o professor Sala anunciou a presença do conferencista e o tema da palestra. Quando finalmente ele adentrou o auditório, todos ficaram de pé, aplaudindo por mais de dez minutos. Uma apoteose! Celso Furtado era um ídolo! É claro que não me lembro mais de todo o teor do discurso, mas ainda me recordo bem de que ele, com as mãos espalmadas, voltadas para o público, pedia desculpas aos seus compatriotas, principalmente aos jovens, por achar que, quando ministro, havia cometido alguns equívocos na avaliação da política econômica que acarretaram atrasos para o país. Foi ovacionado inúmeras vezes durante a sua fala e, no final, ninguém queria sair. Foi emocionante. Ele teve, ao longo desse evento, uma atitude bastante fleumática, de elegância e sabedoria. Todos estavam orgulhosos do ministro Celso Furtado.

    Estávamos chegando ao final da Reunião, e tudo havia ocorrido sem grandes problemas. Podíamos considerá-la um grande sucesso: público numeroso, todo programa cumprido rigorosamente e, para encerrar, só faltava a conferência do ministro Reis Velloso.

    Eu tinha ficado encarregado de esperá-lo no aeroporto. Fui pedir a condução ao Marcioní-lio."Mas o ministro não vem, isso é um bando de comunistas", foi o que ele me respondeu. Parece que o reitor havia tomado a iniciativa de ligar para Brasília, aconselhando-o a não fazer a conferência. Foi difícil, mas, finalmente, me deram uma condução oficial, e lá fui eu para o aeroporto, na hora marcada. Pouco tempo depois, se aproximou o avião da FAB, e o ministro desceu, cumprindo o protocolo. Fui recebê-lo; encarou-me com um sorriso de quem diz:"Viu? Estou aqui!". Não fez comentários. Levei-o até o professor Sala. A Reunião foi encerrada com chave de ouro. Missão cumprida, voltamos para São Paulo.

     

    MINHA NOMEAÇÃO PARA REITOR DA UFSCAR E O MINISTRO DA EDUCAÇÃO

    Certo dia, o professor Crodowaldo Pavan me procurou, no Departamento de Biologia, para me fazer um convite. Queria saber se eu aceitaria concorrer ao cargo de reitor da Universidade Federal de São Carlos. Ele estava mantendo contato com o professor Sérgio Mascarenhas, da USP de São Carlos, que era membro do Conselho de Curadores da Federal. Aceitei o desafio; o professor Sérgio lançou meu nome e me apresentou aos membros do Conselho. Fui um dos candidatos escolhidos para integrar a lista tríplice a ser apresentada ao então ministro da Educação, Ney Braga. Nesse ínterim, meu nome foi submetido ao SNI para investigação, por 90 dias. Fui aprovado e nomeado por ato da Presidência da República. Avaliando, hoje, esses fatos, suspeito que minha nomeação tenha sido facilitada por ser eu o secretário-geral da SBPC. O que antes seria um entrave, agora se tornara um agente facilitador. É apenas uma hipótese, mas com grande probabilidade de ser correta. Demorei um pouco a me entrosar no Ministério da Educação, mas, gradativamente, fui me entendendo com o pessoal e conseguindo apoio aos meus projetos. No início, não tinha nenhum contato com o ministro Ney Braga, homem de confiança do presidente Geisel. Aos poucos, porém, surgiram oportunidades que nos aproximaram. Ele era um homem cordial, gentil, amistoso, muito tranquilo e seguro de si. Era mesmo uma ótima pessoa

     

    REUNIÕES ANUAIS DE 1975 E 1976

    A Reunião Anual de 1975 foi em Belo Horizonte. As relações entre a diretoria da SBPC e o governo federal eram tranquilas, de forma que foi possível programar e organizar uma reunião sem grandes sobressaltos. O reitor da Universidade Federal de Minas Gerais era o médico Eduardo Osório Cisalpino, uma pessoa simpática e calma, nos atendeu muito bem e essa foi uma reunião de bastante sucesso e com poucos contratempos.

    Porém, como mal terminava uma reunião, já era tempo de começar a pensar na seguinte, começamos a nos preparar para a próxima, e, dessa vez, havia uma certa apreensão. A proposta era realizar a reunião de 1976 em Brasília, bem nas barbas do governo. Era um desafio. Que tipo de resposta poderíamos esperar? Isso era uma incógnita.

    A primeira providência foi acertar, com a reitoria da universidade, licença para usar o local, obtida sem qualquer problema. A ideia de fazer essa reunião em Brasília despertava o maior interesse entre os sócios da SBPC e os universitários de um modo geral, o que sugeria que seria uma reunião grande.

    Dentro da reunião, com todas as sessões de atividades científicas, a que mais atraía o público naquela época era mesmo a Assembleia Geral, onde se discutiam os principais problemas políticos. Nela, os sócios apresentavam as famosas moções, que, em sua maioria, continham críticas ou questões, geralmente de cunho político, dirigidas ao governo, genericamente, ou a um órgão específico. Normalmente, eram muitas as moções e quase sempre bastante ácidas, pesadas. Por isso, cada uma delas era submetida a uma pré-avaliação, feita pela diretoria, para ser ou não lida e votada na Assembleia. Ninguém queria criar uma situação que viesse a comprometer seriamente a Sociedade. Mesmo assim, com esse crivo, em geral, o teor dessas moções era bastante forte, provocativo e desafiador. Era sempre um risco consciente. Precisávamos andar nos limites do aceitável e do tolerável.

     

    DIGNIDADE EM PÉ!

    As assembleias eram feitas na quinta-feira, na parte da tarde, às 14 ou às 15 horas. Em reuniões normais, era uma atividade bastante burocrática, que atraía poucos participantes, mas, dessa vez, pressentimos que seria muito grande e, pelo número de mensagens, muito longa também. O professor Sala e a diretoria, preocupados com o que estava por acontecer, resolveram tomar duas medidas: a primeira foi a de que, não havendo espaço suficiente nas dependências da universidade, o evento fosse transferido para o recinto da piscina do Estádio Garrastazu Médici, para as 8 horas da noite. Na entrada do recinto era feita uma triagem de sócios e não sócios, que tomavam assentos em arquibancadas diferentes. A segunda foi que apenas os sócios teriam direito ao voto e, para isso, Sala mandou dar crachás para que eles fossem identificados e tivessem assentos reservados. Foi uma reunião inesquecível. Posso dizer que foi muito descontraída. Havia no ar um sentimento de vitória, de realização. Havíamos chegado até ali, agora iríamos dizer o que pensávamos e sentíamos. Todas as moções selecionadas foram lidas, discutidas e votadas. Uma a uma. Quem fez a leitura de cada uma delas fui eu, como secretário-geral. Ao final de cada leitura, era longamente ovacionado; quanto mais provocativos os termos da moção, maiores os aplausos. Confesso que, pela primeira vez, senti o que deve ser, para um político, ser aplaudido assim em um discurso. A emoção que longos aplausos podem provocar no orador é indescritível. Um ópio!

    Encerramos a reunião por volta da madrugada e fomos a pé para o hotel, felizes.

     

    PASSAMOS NO TESTE

    As nossas relações com o governo não afetavam, de forma alguma, a nossa independência e a nossa liberdade. Mantínhamos a nossa dignidade de pé. Não queríamos ser irresponsavelmente provocativos, mas nunca deixamos de dizer, educada e até respeitosamente, o que era preciso dizer e expor nossos pontos de vista em defesa das liberdades democráticas. Creio que o governo também se sentiu bastante aliviado. É bem possível que tudo correspondesse ao que eles esperavam.

    Ninguém ignorava as enormes dificuldades que o presidente Geisel enfrentava, dentro do seu próprio governo, com um grupo de militares mais radicais, que desafiavam as suas ordens e continuavam a permitir torturas e perseguições políticas. Esse comportamento era, provavelmente, um resquício dos ressentimentos da escolha do general Geisel para a Presidência da República. Essa resistência se manifestava em algumas partes do país, tanto em São Paulo, quanto em estados do Nordeste. Acho que retardou bastante a abertura política que o presidente desejava. Infelizmente, os civis que eram contra o Golpe de 64 não davam um crédito de confiança ao presidente e parece que não reconheciam seu esforço em conseguir subjugar os redutos reacionários.

    Para mostrar bem que o presidente sofria uma oposição ostensiva dentro do próprio governo, quero lembrar que assisti, pessoalmente, a um episódio que julgo bastante ilustrativo. Deve ter sido no início do ano de 1976. O presidente Geisel fora convidado para a inauguração de um laboratório de pesquisa da Escola Paulista de Medicina. O comandante da 2ª Região Militar era o general Ednardo D'Ávila Mello.

    Nessa inauguração, fui convidado a fazer parte da comitiva do presidente. Para isso, me encontrei com o ministro Ney Braga e outros membros do seu gabinete, e seguimos para o local do evento. Chegamos antes do presidente. O local era o prédio da Escola Paulista, na rua Botucatu. Entramos num pátio onde, aos fundos, ficava uma lanchonete fechada, mas com um balcão do lado de fora. Dirigi-me para essa parte. Ao meu lado, se encontrava nada mais nada menos do que o general Ednardo, com sua túnica parcialmente desabotoada, o seu quepe na cabeça bem jogado para trás e os dois cotovelos apoiados no balcão da lanchonete, bem recostado. Era só o presidente passar no portão de entrada para dar de cara com esse espetáculo. Fui testemunha ocular desse episódio, e realmente me espanta tal atitude partindo de um general.

    Além disso, ouvi contar que, na véspera dessa inauguração, o presidente fora homenageado pelo governador, com um jantar no Palácio dos Bandeirantes. Presente ao evento, o general Ednardo teria se retirado, dizendo que não se sentaria à mesa com comunistas. Não sei a quem ele se referia, mas fiquei sabendo do episódio. O fato é que as relações entre o presidente e o comandante da 2ª Região Militar estavam muito tensas em face das duas mortes recentes ocorridas no DOI-CODI, a do jornalista Wladimir Herzog, em outubro de 1975 - quando o empresário José Mindlin era o secretário de Cultura de São Paulo - e a do metalúrgico Manuel Fiel Filho, ocorrida em janeiro de 1976. Tudo isso repercutia muito mal, manchava a imagem do governo e, seguramente, dificultava o seu desejo de apresentar uma conduta desvinculada da tortura.

    Sentimos que, de repente, o enfrentamento ao governo Geisel parecia aumentar e ampliar territorialmente. Assim, não tivemos nenhuma surpresa quando soubemos que o comando da 3º Região Militar havia vetado a realização de nossa Reunião Anual, programada para o Ceará.

    O ministro Ney Braga me chamou para conversar. Foi um apelo dramático.

    - "Por favor, transfira a data da reunião de julho para setembro, que nós garantiremos a sua realização no Ceará".

    A proibição tinha incomodado demais o governo e chegado mesmo a preocupar o presidente.

    - "Não posso mudar a data, ministro. Nossos associados não aceitariam essa mudança".

    Estávamos todos muito revoltados e inconformados com essa intromissão nos negócios da SBPC. Muitos dos sócios, principalmente os membros universitários das áreas de ciências humanas, passaram a se organizar para impedir que a SBPC recebesse verbas do governo e, consequentemente, iniciaram um movimento para arrecadar fundos para suportar a realização da Reunião. É claro que essa era uma batalha muito ingrata e com poucas chances de sucesso. Mas esse movimento, de certa forma, se contrapunha à posição da diretoria da SPBC que adotava uma atitude mais cautelosa e conciliadora, principalmente pelos relacionamentos anteriores e pelo empenho do governo em resolver o impasse, mas sem condições para tanto.

    Enquanto isso, a diretoria estava decidindo onde fazer a Reunião. Parece que a cidade que melhor poderia alojar esse evento, de improviso, era mesmo São Paulo. Pensamos imediatamente na USP. Fomos procurar o reitor Orlando Marques de Paiva, que, infelizmente, se negou a sediar a Reunião, alegando que os seus agentes de segurança, subordinados indiretamente ao SNI, não aconselhavam realizar ali um evento de tal natureza. A nossa segunda opção foi a PUC de São Paulo. Nossa solicitação foi atendida de pronto.

    Só que, antes de a reunião acontecer, recebi um telefonema do ministro Ney Braga, dizendo que o presidente queria falar comigo. Para isso, ele iria pedir ao professor Luiz Ferreira Martins, reitor da Unesp, para me convidar para a inauguração do campus de Rio Claro, que se daria em poucos dias. Nessa época, meu relacionamento com Luiz não era dos melhores, mas fui convidado e compareci a Rio Claro. Cheguei no final da cerimônia, realizada em um espaço muito amplo. De um lado, os convidados, o público presente limitado à área em que se encontrava. De outro, um espaço vazio terminando em uma calçada, para onde o presidente se encaminhava em direção à sua condução, estando, à sua espera, alguns generais da sua comitiva. O ministro Ney Braga foi ao meu encontro e me conduziu até o presidente, já pronto para tomar o seu carro. Ficamos frente a frente.

    - "Fala para o Sala não permitir que a Maria, esposa do general Zerbini, se pronuncie na reunião".

    O general, considerado comunista e desligado das Forças Armadas por resolução do governo, era irmão do famoso cirurgião de coração Euriclydes de Jesus Zerbini. Eu não tinha o que responder, acho que seria inútil argumentar. Mas ele insistiu: "ela não é uma cientista, não é uma pesquisadora". Respondi que falaria sobre isso com Sala. Desejou-me boa sorte e se despediu. Esse episódio, tão específico e pontual, me faz pensar que o problema da senhora Maria deve ter sido objeto de discussão entre o presidente e alguns colegas de farda ou pessoas de certa familiaridade e com influência no governo. Em minha opinião, isso mostra o quanto eles estavam atentos ao que se passava na SBPC e a importância que davam a tudo que lá era feito. Alguns dias mais tarde, houve uma reunião de todos os reitores, em Brasília. Estava programada uma ida ao Palácio, para cumprimentar o presidente. Formou-se uma fila. Quando estava chegando a minha vez, o presidente se apressou a falar comigo, me chamando pelo nome. Desejou muitas felicidades na Reunião.

     

     

    Mesmo desagradando uma parte considerável dos sócios, a Reunião Anual foi realizada na sede da PUC de São Paulo, com bastante sucesso e sem incidentes com a repressão. O único fato grave que ocorreu foi certa campanha de alguns sócios, pretendendo a destituição do professor Sala da presidência. Na sessão inaugural foi lido um telegrama, vindo de Paris, mandado pelo professor Maurício da Rocha e Silva, que chegaria a São Paulo um dia mais tarde. O teor era bastante agressivo, deseducado até, desrespeitoso para com o professor Sala, que muito trabalhou honestamente pela física e pelas ciências em geral, tanto na Fapesp como na SBPC. Temos, para com ele, uma enorme dívida de gratidão e de reconhecimento por sua dedicação ao trabalho e por seu padrão de honestidade e moral. Pois bem, nesse telegrama era pedida a sua imediata destituição do cargo de presidente. É claro que não é assim que se destitui um presidente, sem seguir o protocolo dos estatutos. Sala continuou na presidência, tendo sido reconduzido no mandato seguinte, o que significou completo reconhecimento do seu trabalho. Foi um momento de tensão, desagradável e totalmente sem sentido, superado com o apoio de seus companheiros de diretoria. Terminada a reunião, houve, ainda, no dia seguinte, um ataque comandado pelo secretário de Segurança Pública do estado de São Paulo, o coronel Erasmo Dias, com a costumeira falta de civilidade contra os estudantes. Simplesmente lastimável.

     

    ENCERRAMENTO

    Não sendo eu um historiador, procurei simplesmente rememorar o que presenciei e julguei importante para retratar um momento da conduta do governo, em especial com relação à abertura política, não reconhecida na época. Assim, espero que este meu relato possa lançar alguma luz sobre os acontecimentos.

    É certo que a SPBC passou por momentos bem difíceis. Muito embora contasse com o apoio do governo, teve que enfrentar pressões da ala reacionária desse governo que ameaçava sempre impedir suas realizações e promover prisões de associados. Existia um clima de insegurança. É importante destacar que, inúmeras vezes, o professor Sala procurou intervir junto ao governo, pedindo a soltura de presos políticos. Estou convencido de que se nós conseguimos sair ilesos dessa situação, muito devemos à conduta equilibrada do professor Sala e ao respeito em relação ao seu nome como cidadão e como cientista, em qualquer escalão do governo.

     

    Luiz Edmundo de Magalhães é professor titular de genética e evolução e ex-diretor do Instituto de Biociências da USP. Foi reitor e doutor honoris causa da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), professor visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e da Unifesp (Escola Paulista de Medicina).

     

     

    *Desejo expressar meus mais profundos agradecimentos ao meu irmão, o professor Luiz Eduardo Cerqueira Magalhães, que se prontificou a ler e a criticar o texto; aos historiadores Carlos Guilherme Mota e Jorge Caldeira, também pela leitura crítica e sugestões; às professoras Nicia Wendel de Magalhães, minha esposa, pela minuciosa leitura e correção do texto e Marina Wendel de Magalhães, minha filha, pela digitação e revisão gramatical.