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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.62 n.spe2 São Paulo  2010

     

    Entrevista: Shigueo Watanabe

    Oscar Sala e o diálogo da ciência

     

    Victória Flório

     

     

    Como definir a importância de um pesquisador em meio à constituição do patrimônio intelectual da física no país? Tantas foram as contribuições de Oscar Sala que não se pode atribuir a ele um único papel. Ficou evidente, em particular, sua importância como exímio coordenador de diálogos da ciência com outros setores: com a sociedade e em ambientes culturais e políticos de tensão; com a indústria e a tecnologia; com a formação intelectual de uma geração de cientistas. Aluno da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FCL) da Universidade de São Paulo (USP) na década de 1940, Sala partilhou desse ambiente ideológico com físicos memoráveis como Marcelo Damy, César Lattes e Mário Schenberg, numa época em que os recursos para a pesquisa científica eram escassos. A carência de programas de pós-graduação nas universidades brasileiras levou Sala a completar seus estudos nos Estados Unidos. Na Universidade de Winscosin, em 1948, projetou o Van de Graaff, primeiro gerador eletrostático do Brasil. Na década de 1970 um acelerador eletrostático de partículas trazido por ele, o Pelletron, possibilitou maior interação entre a universidade e a pesquisa com algumas indústrias de tecnologia, criadas para atender às necessidades desse tipo de equipamento.

    Sala favoreceu outros diálogos, como o de sociedades científicas - da SBPC, por exemplo - com o regime militar, com o qual assumiu uma postura imparcial em favor do desenvolvimento científico. Levantou a bandeira da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) nos anos em que atuou na diretoria científica (1969-1975) e na presidência (1985-1995), flexibilizando o financiamento para pesquisas em todas as áreas do conhecimento.

    Para lembrar Oscar Sala entrevistamos o professor Shigueo Watanabe, docente do Departamento de Física Nuclear do Instituto de Física da USP, com quem compartilhou, por quase setenta anos, o mesmo ambiente intelectual e acadêmico. Para Shigueo, Sala foi uma das pessoas que possibilitou, em todos os aspectos - sejam eles políticos ou de caráter formativo -, a organização e crescimento da ciência, primeiro no estado de São Paulo, depois no Brasil. Parceiros na direção do Departamento de Física Nuclear, Watanabe demonstra extrema admiração por Sala, desde os tempos da faculdade. "Tenho grande admiração por ele não só pelo que ele fez pela física no Brasil - que é muito -, mas também como amigo; ele tinha um espírito muito bom".

     

     

    COMO ERA O AMBIENTE INTELECTUAL DA FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS (FFCL) DA USP NA ÉPOCA EM QUE O SENHOR E O PROFESSOR SALA CURSARAM FÍSICA?

    Quando entrei na Faculdade de Filosofia [na década de 1940], todo processo já estava andando. Com a criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras [em 1934, junto com a USP] começaram as primeiras pesquisas científicas no estado de São Paulo e no Brasil. Isso aconteceu porque o governador, naquela época, era Armando Sales Oliveira (gestão 1933-1936), que tinha visão. Aconselhado por vários professores resolveu trazer cientistas já formados e renomados da Europa, para a FFCL. Na área de física vieram Gleb Wataghin e Giuseppe Occhialini.

    Os primeiros físicos [da faculdade] foram Marcelo Damy de Sousa Santos, Paulo Pompéia, Abraão de Moraes e Mário Schenberg. Ele [Schenberg] foi um dos primeiros que, com a chegada do Wataghin, começou a fazer trabalhos científicos, principalmente na área experimental. A área teórica só começou depois. O principal trabalho naquela época era o estudo de raios cósmicos que foi para Campinas (SP), para a Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], quando o Wataghin se mudou para lá.

    EM QUE ASPECTOS A GERAÇÃO FORMADA POR FÍSICOS COMO OSCAR SALA É DIFERENTE DA ATUAL?

    Em primeiro lugar, mecânica quântica quase não existia aqui [no Brasil]. O professor Wataghin contava histórias do Yukawa, Dirac, Heisenberg (1) etc, mas nunca deu formalmente mecânica quântica. Eu só aprendi quântica quando fui fazer pós-graduação em Princeton [EUA]. O curso acadêmico tinha física introdutória, física geral, mecânica clássica, mecânica analítica que era muito desenvolvida, mecânica racional, física teórica (onde aprendíamos muito sobre circuitos) e introdução à física dos materiais. A parte mais moderna não aprendíamos. Naquela época, [a mecânica quântica] ainda estava em desenvolvimento. Nos outros países já tinha física nuclear etc, mas, aqui não. No Brasil ela só começou a ser introduzida depois de 1946. Então a gente aprendia coisa básica. O resto tínhamos que lutar, ler artigos, alguns livros que chegavam aqui e fazer o trabalho.

    Naquela época entravam 5 ou 6 alunos - e metade reprovava. A minha turma era maior: havia 13 no começo; 5 ou 6 passaram para o segundo ano e 4 se formaram. Hoje entram cento e tantos de dia e cento e trinta de noite, se bem que se formam 25 de dia e 25 no curso noturno.

    POR QUE A FÍSICA NUCLEAR ATRAÍA PESQUISADORES?

    Durante sete ou oito anos, [a USP fez pesquisa] em física de raios cósmicos, que era a coqueluche da época. Não tínhamos acelerador [de partículas], e partículas de grandes energias chegavam aceleradas do céu, então aproveitou-se isso para fazer pesquisa. Quando o professor Wataghin chegou [ao Brasil] deve ter dito: "Olha, em física precisamos disso, daquilo etc". Uns quatro ou cinco anos depois vieram os primeiros estudantes. O [César] Lattes, inclusive, tinha o laboratório dele no porão. Eu ia lá e, como era estudante, ficava vendo. Ele era extraordinariamente inteligente; então, no segundo ou terceiro ano [de faculdade], já fazia experiência com raios cósmicos.

    A gente só sabia sobre raios cósmicos. O professor Wataghin, que veio da Europa e já sabia física nuclear, disse que o futuro do Brasil poderia ser nessa área. A física de materiais veio bem depois. Todo mundo pensava em raios cósmicos ou em física nuclear. Mesmo no exterior poucos lugares tinham aceleradores, porque eles são muito caros. Quem incentivou o professor Sala a entrar na parte de aceleradores foi o Wataghin. Com esse estímulo, resolveram comprar o Van de Graaff e montaram aqui na USP. Nessa época, o Marcelo Damy - que também era um diplomata de primeira linha - conseguiu a doação de um acelerador chamado Bétatron, da Universidade de Illinois (EUA). No meu tempo, o professor Wataghin já fazia física nuclear com o Bétatron, que não existe mais, ficou obsoleto com o tempo. Nosso acelerador grande era apenas um estágio de um grande acelerador do exterior. Por exemplo, o Pelletron, que hoje é um brinquedo, quando comparado a um acelerador no exterior, era o maior acelerador do Brasil.

    E QUANTO À EXPEDIÇÃO COMPTON, QUE VEIO AO BRASIL PARA MEDIR RAIOS CÓSMICOS (2)?

    O professor Wataghin começou a formar um grupo e decidiu fazer trabalho em Campos do Jordão (SP). Um dia, ele resolveu fazer estudo de raios cósmicos soltando balões que podem chegar a 5 mil metros de altitude, lá em Bauru (SP). Tinha um estudante muito interessado em física, chamado Oscar Sala, que ficou assistindo àquilo. Ele ficou muito interessado e acabou entrando nessa área.

    O QUE SIGNIFICOU A CONSTRUÇÃO DO ACELERADOR VAN DE GRAAFF NA USP, EM 1948, PARA OS PESQUISADORES E PARA A INDÚSTRIA?

    Em 1940, na FFCL já se falava em Van de Graaff, e estava sendo montando em 1948. O Bétatron já estava funcionando. Somente coisas muito simples eram produzidas aqui; o grosso era importado. Tinha que montar, soldar, colocar um circuito elétrico. Levou acho que 3 ou 4 anos para que o Van de Graaff realmente começasse a funcionar. Quem tinha tendência a ser experimental veio para cá. Por exemplo, Ernest Hamburguer e vários outros ajudaram na montagem. Eu era físico teórico e praticamente não fiz parte disso. [O Van de Graaff] não atraiu muitos pesquisadores. O Brasil todo tinha 30 físicos entre São Paulo, Rio, um pouco em Minas e Rio Grande do Sul. No Norte e Nordeste não tinha nada.

    Já nessa época a indústria tinha bastante participação, porque muitas peças foram feitas e compradas aqui, mas, na época do Van de Graaff, o grosso foi comprado de fora, porque a indústria aqui era extremamente rudimentar. Depois, com o Pelletron, o que eles precisavam tinha que buscar na indústria. O que a indústria não tinha, criava-se coragem e fazia-se; assim a indústria se desenvolvia.

    Depois de algum tempo, Sala percebeu que o Van de Graaff já era um aparelho obsoleto. Ele tinha contato com a universidade de Winscosin e lá eles já estavam trabalhando com o Pelletron. Assim, ele entrou na área do Pelletron e, quando esse começou a ficar ultrapassado, começou o Linac [Acelerador Linear], que não chegou a ser completado. Ele sempre teve visão. Era uma pessoa que enxergava longe e fazia coisas novas aqui no Brasil. Se tinha alguma coisa em física nuclear que estávamos fazendo, era por causa do Oscar Sala. Ele tinha essa capacidade que pouca gente tem. Ele e Damy conseguiam trazer dinheiro, auxílio de fora para montar esses aparelhos. Quando Sala ficou doente esse trabalho praticamente paralisou.

    A FAPESP, CRIADA EM 1960, TEVE O PROFESSOR SALA NA DIRETORIA CIENTÍFICA (1969-1975) E NA PRESIDÊNCIA (1985-1995). QUAIS AS MAIORES REALIZAÇÕES DE SALA NA FAPESP?

    O professor Sala, José Reis, o professor Pavan e o Sérgio Mascarenhas se movimentaram bastante para criar entidades como a Fapesp e a SBPC. A criação da Fapesp foi fundamental para o desenvolvimento da ciência e tecnologia em São Paulo e no Brasil, porque, com o tempo, o que se desenvolveu aqui foi se espalhando para outros estados.

    O PROFESSOR SALA ASSUMIU ALGUMA POSTURA POLÍTICA, SOBRETUDO DURANTE O GOVERNO MILITAR?

    Sala não era a favor dos militares, mas não os antagonizou diretamente. Sempre contornou e foi levando a ciência pra frente. Ele teve esse mérito. É bonito, pitoresco, ver uma pessoa brigar com militares, mas se todo mundo brigar acaba a consciência no país. Alguém tinha que segurar as pontas. Havia gente como Oscar Sala, Pavan e Sérgio Mascarenhas que foram contornando as coisas e mantiveram o andamento da ciência no país. Mesmo porque quem foi para fora [do país, em exílio] ficou por um bom tempo. E quando voltaram encontraram a ciência avançada - por causa dessas pessoas que conseguiram segurar a barra e mantiveram a ciência em andamento.

    A GERAÇÃO DE FÍSICOS DA QUAL VOCÊS FAZEM PARTE ERA MAIS POLITIZADA QUE A ATUAL? O MODO DE FAZER CIÊNCIA MUDOU?

    São politizados de uma maneira diferente. Naquela época era uma circunstância que não se podia evitar. Militares, de repente, tomam conta do país e se dá um confronto direto. Aqueles que tinham a tendência marxista muito forte tiveram que sair. A ciência daquela época era muito mais difícil, porque a gente dependia muito do que vinha de fora. Essa é a razão pela qual acabei deixando a física nuclear. Os físicos teóricos tinham que esperar os resultados de fora, mas, quando eles vinham para cá, eram sobra. A melhor parte, mais interessante, já tinha sido feita no exterior.

    QUAL A CARACTERÍSTICA MAIS MARCANTE DO PROFESSOR SALA?

    Ele era um formador: de laboratórios, de pessoas, estava lá na criação da SBPC, da Fapesp etc. Qualquer novidade na física nuclear ele trazia para cá e os estudantes faziam as coisas. Por isso, saíram daqui muitos trabalhos importantes. Essa característica de liderança era do Oscar Sala e também do Marcelo Damy. Este instituto teve sorte porque teve Sala e Damy e, na parte teórica, Mário Schenberg.

    São raras as pessoas como eles, que idealizavam as coisas na época certa, tinham coragem, falavam com o governo, traziam dinheiro e faziam a ciência andar. Quando ele via algum estudante bem interessado dava apoio. Eu, particularmente, devo muito a ele pela minha posição aqui no instituto. Ele foi 16 anos chefe de departamento e eu 8 anos. Naquela época só eu e ele éramos titulares. Durante vinte e tantos anos tocamos a física nuclear dessa maneira. Tenho grande admiração por ele não só pelo que ele fez pela física no Brasil, que é muito, mas também como amigo, ele tinha um espírito muito bom. Ele deixou um legado extremamente grande no desenvolvimento da física nuclear no Brasil.

     

     

    NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. O japonês Hideki Yukawa (1907-1981), o alemão Werner Heisenberg (1901-1976) e o inglês Paul Dirac (1902-1984) estavam entre os físicos responsáveis pela estruturação da física quântica. Heisenberg trabalhou junto com Niels Bohr (1885-1962) nos fundamentos teóricos da mecânica quântica; ele é mais conhecido pelo seu famoso princípio da incerteza. Dirac, por sua vez, deu início ao desenvolvimento da eletrodinâmica quântica. Já Yukawa previu a existência dos mésons, dando as primeiras contribuições à física de partículas.

    2. Trata-se da expedição ao Brasil organizada, nos anos 1940, por Arthur Compton (1892-1962) e outros físicos europeus, para medir raios cósmicos no hemisfério sul, utilizando balões atmosféricos de grande altitude. Ela teve participação dos físicos da FFCL, em particular de Gleb Wataghin.