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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.63 no.1 São Paulo Jan. 2011

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252011000100010 

     

    Da parte para o todo: auto-organização dinâmica em sistemas físico-químicos

    Hamilton Varela

     

     

    Dentro da físico-química, são muitas as linhas de destaque atualmente e que se apresentam como promissoras para o século XXI. Elaborar um prognóstico do que está por vir é uma das atividades cruciais para o planejamento de longo prazo, tão importante em ciência. Adicionalmente, especular sobre o futuro é um exercício intelectual que a sociedade espera dos cientistas, provavelmente os agentes mais preparados para tanto. Reflito a seguir sobre tópicos que, acredito, terão grande desenvolvimento, pois a contribuição da química, e da físico-química em particular, ainda está aquém do seu real potencial.

    COMPLEXIDADE E SEUS ELEMENTOS São diversas as definições de complexidade. Nas chamadas ciências exatas, conceitos minimalistas e de aplicação geral são preferíveis aos adotados nas humanidades, como discutido em vários contextos por Edgar Morin (1). Como exemplo do primeiro caso, Whitesides e Ismagilov (2) classificaram um sistema complexo, de forma concisa, como um sistema no qual: (a) sua evolução é muito sensível às condições iniciais ou a pequenas perturbações; (b) o número de componentes independentes interagindo é grande; ou um no qual (c) há vários caminhos através dos quais a evolução do sistema pode proceder. Do ponto de vista termodinâmico, as condições (a) e (c) só podem ser satisfeitas se o sistema estiver aberto, isto é, se suas fronteiras forem permeáveis à troca de energia e/ou matéria com o ambiente. A noção de complexidade em sistemas afastados do estado de equilíbrio termodinâmico está associada aos conceitos de não-linearidade, emergência e auto-organização dinâmica. Na discussão que segue, serão apresentados alguns destes conceitos.

    Sistemas abertos - Uma das principais características dos sistemas vivos é a constante troca de energia e matéria com o meio. É a partir dessa troca que o sistema exporta entropia para o ambiente e se mantém no estado auto-organizado que caracteriza a vida. A distância do equilíbrio termodinâmico pode ser facilmente modulada em reações químicas conduzidas em reatores abertos. Nesse caso, a taxa de alimentação de reagentes e retirada dos produtos formados é um dos principais parâmetros que controla a dinâmica do sistema e determina o padrão resultante.

    Não-linearidade - No mundo regido pela física newtoniana, não há lugar para não-linearidade e, a partir de dois estados conhecidos, é possível inferir sobre o comportamento futuro de qualquer sistema. Uma vez que o sistema evolui linearmente no tempo, as surpresas estão descartadas e o futuro é dado a priori. A validade das aproximações lineares é restrita às vizinhanças do estado de equilíbrio termodinâmico. Um dos maiores golpes no tratamento linear de causa e efeito foi o reconhecimento da existência dos chamados sistemas caóticos: sistemas descritos por equações diferenciais ordinárias, não-lineares e acopladas, com grande sensibilidade às condições iniciais. Como exemplo mais popular cita-se o "efeito borboleta": uma causa minúscula, como o bater de asas de uma borboleta numa certa região do planeta, pode resultar em uma enorme consequência, como o surgimento de um tornado, numa outra região arbitrária. Esse efeito foi sugerido exatamente para ilustrar como uma pequena mudança nas condições iniciais utilizadas para alimentar um modelo simples da dinâmica climática poderia gerar grandes efeitos na previsão a longo prazo. Além do comportamento caótico, a ocorrência de cinética excitatória, multiestável e oscilatória são manifestações de não-linearidade.

    Emergência - A abordagem cartesiana, fundada com base na construção do todo a partir da soma das partes, tem sido cada vez mais desafiada por problemas de diferentes naturezas. Como um exemplo paradigmático, sabe-se que, por mais precisa que seja a descrição da dinâmica de um neurônio individual, não se pode simplesmente representar a mente que emerge da interação entre essas subunidades a partir da soma das dinâmicas individuais. Propriedades emergentes resultam, pois, do reconhecimento de que o comportamento de um sistema complexo não pode ser entendido em termos apenas da extrapolação das propriedades dos seus componentes individuais. Em outras palavras, as propriedades que emergem no nível macroscópico não podem ser preditas a partir das propriedades dos componentes microscópicos. Nesse sentido, é importante enfatizar que as propriedades emergentes que surgem quando da mudança de escala não estão relacionadas a uma eventual falha na descrição microscópica.

    Auto-organização - Sistemas abertos podem se organizar espontaneamente quando sujeitos a um dado gradiente. O termo auto, nesse caso, reflete o fato de que não há nenhuma instrução do ambiente sobre como a organização deve ocorrer ou como o sistema deve se adequar em resposta ao gradiente. Em outras palavras, o gradiente imposto é completamente neutro em termos de informações e a organização emerge de dentro do sistema. Quando levados para um estado suficientemente afastado do equilíbrio termodinâmico, tais sistemas não estão mais sujeitos a princípios extremos que regem o estado de equilíbrio e os processos em regime linear. Portanto, a evolução não-linear propicia a coexistência de diferentes estados estáveis para um mesmo conjunto de parâmetros. Processos de auto-organização são ubíquos na natureza: de células a órgãos e organismos, de indivíduos a organizações sociais, de casas a bairros, cidades, etc. Em geral, no contexto da auto-organização dinâmica, mais adequado seria se referir a comportamento complexo em lugar de sistema complexo, uma vez que um sistema simples pode apresentar um comportamento complexo quando afastado do estado de equilíbrio termodinâmico.

    COMPORTAMENTO COMPLEXO EM SISTEMAS FÍSICO-QUÍMICOS Investigações teórico-experimentais sobre a emergência, seleção e evolução de padrões espaço-temporais em sistemas físico-químicos têm atraído considerável interesse recentemente. Exemplos desses sistemas incluem processos heterogêneos nas interfaces sólido/ gás (3; 4) e sólido/líquido (5; 6), assim como reações homogêneas, como no caso dos osciladores da família do bromato (7; 8). Fenômenos temporais complexos na forma de amplificação explosiva de pequenas flutuações (auto-catálise), multiestabilidade, oscilações na concentração de alguns intermediários e dinâmica caótica são relativamente corriqueiros em diversas reações químicas. No entanto, apesar do número considerável de exemplos conhecidos, ainda não há uma taxonomia abrangente de tais reações e são poucas as aplicações relatadas. Explorar a cinética não-linear presente em reações químicas na detecção de traços e no aumento da conversão e/ou seletividade em alguns processos são duas possibilidades de grande potencial. Especificamente, elucidar regimes não convencionais em reações catalíticas de importância prática (redução de nitrato, redução de gás carbônico, eletro-oxidação de moléculas orgânicas pequenas, entre outros) pode ser muito vantajoso, principalmente quando experimentos de bancada e numéricos andam juntos, uma vez que não-linearidades observadas no laboratório, modeladas e simuladas podem ser fontes de importantes informações mecanísticas (9).

     

     

    O acoplamento entre a cinética temporal não-linear e processos de transporte pode resultar em auto-organização espaço-temporal, vide as ondas químicas e frentes reacionais. Esses processos permitem a manutenção de gradientes periódicos de concentração e são a fonte primária de troca de informação entre diferentes locais no espaço. Acredita-se que esses mecanismos de reação e transporte operem em sistemas bioquímicos nos níveis intra e intercelular. Dessa forma, uma motivação importante para essas investigações consiste na possibilidade de utilização de análogos físico-químicos como modelos funcionais no estudo de padrões de atividade em sistemas biológicos, obviamente bem mais complexos e menos tratáveis (10). O desenvolvimento de estruturas autorreplicantes pode ser citado como um exemplo interessante de auto-organização em sistemas químicos inspirada na origem e síntese da vida. Analogias com comportamento equivalente em sistemas biológicos vêm sendo propostas e esta será uma área de grande efervescência num futuro próximo. Em última instância, não custa lembrar que todos os sistemas vivos são regidos por ciclos ou dinâmica oscilatória. Desvendar a natureza dos processos responsáveis pela robustez dos organismos vivos, ou a relativa independência das funções básicas dos sistemas com respeito a fatores ambientais, ou homeostase geral, é importante ao entendimento dos processos associados à manutenção da vida. Como exemplo, observou-se recentemente que um conjunto relativamente simples de reações eletroquímicas acopladas mostrou relativa independência da frequência de oscilação com respeito à temperatura (11). Mais que uma simples insensibilidade em relação à temperatura, foi observado que a compensação de temperatura resulta do acoplamento não trivial das reações elementares envolvidas. Entender como essas relações cooperam para gerar compensação de temperatura é importante na elaboração de modelos mínimos para esse tipo de comportamento em sistemas vivos.

    Além dos processos bioinspirados, processos de auto-organização também desempenham um papel importante numa geração emergente de novos materiais. Oscilações autônomas em materiais poliméricos e géis também encontram várias aplicações nos chamados materiais funcionais, com propriedades biomiméticas (12). Adicionalmente à auto-organização dinâmica, a sua versão estática vem emergindo como bastante promissora. Ainda que estruturado em processos afastados do equilíbrio termodinâmico, o padrão formado permanece estável quando a dissipação cessa. Auto-organização ou automontagem estática vem sendo bastante utilizada na preparação de materiais estruturados com aplicações específicas, c.f. a precipitação oscilatória e os processos de reação-difusão, utilizados na produção de estruturas funcionais tridimensionais em micro e nanoescalas (13).

    A interrelação entre distintas escalas de tempo e espaço é a questão central que permeia o estudo da emergência em sistemas complexos. Abordagens sistêmicas com diferentes finalidades foram recentementeestruturadas no âmbito da química de sistemas (14). A exemplo do sucesso da biologia de sistemas, essa proposta integradora tem como objetivo principal avançar no entendimento das propriedades emergentes em sistemas químicos. No caso da biologia, um tratamento sistêmico pressupõe uma mudança de foco da escala molecular para escalas superiores, particularmente em termos do entendimento da estrutura e da dinâmica de funções em diferentes níveis, englobando desde as celulares até as do organismo como um todo. Na química de sistemas, o objetivo central é o avanço no entendimento das propriedades emergentes em sistemas químicos nos quais muitas variáveis (relativas à descrição dos componentes ou estados) são tratadas simultaneamente. É uma transição de uma química descritiva com base em subdisciplinas e divisões rígidas para uma abordagem mais abrangente e integradora. Além dos sistemas sob o chamado controle cinético que se encontram afastados do estado de equilíbrio termodinâmico, a química de sistemas se ocupa também dos sistemas ditos sob controle termodinâmico. Em uma Coleção Combinatorial Dinâmica (Dynamic Combinatorial Library, DCL), todos os constituintes estão em equilíbrio, de forma que a interconversão entre os membros da coleção ocorre de forma reversível e envolve vínculos intra e/ou intermoleculares. A amplificação ou aumento na concentração de determinada espécie selecionará o composto mais estabilizado por interações com outro membro da coleção, com ele mesmo ou com um molde, de modo que a distribuição final de equilíbrio é ditada pela minimização da energia global. Nessas redes moleculares complexas, os membros se encontram conectados por reações em equilíbrio e qualquer mudança na estabilidade de um membro será sentida por todos os outros membros da coleção.

    Tomadas como metáforas, abordagens sistêmicas representam a busca por uma discussão mais abrangente dos sistemas complexos e são excelentes modelos na elaboração de hipóteses, desenho e planejamento de experimentos e proposição de analogias na discussão de resultados.

    PARA ALÉM DA FÍSICO-QUÍMICA CLÁSSICA Atuar em níveis mais complexos da atividade científica pressupõe uma formação mais ampla que transcende um currículo específico de um determinado curso de graduação. Em físico-química, matemática, física e química estão intimamente ligadas e, portanto, uma formação sólida nessas disciplinas é fundamental. Generalizações a partir da correlação com fenômenos de outras áreas pressupõem certa fluência ou cultura científica geral. Especificamente no contexto das linhas mencionadas aqui, biologia é uma ciência central.

    Qualquer busca na literatura científica deixará claro que os temas abordados aqui são ainda pouco explorados pela comunidade química, de forma que as possibilidades de crescimento são enormes. Entender o motivo da aparente lacuna, deixada particularmente pela físico-química em campos tão férteis, pode ser útil na mudança desse cenário. Reconhecendo a imprecisão e incompletude comuns às definições e classificações em geral, pode-se afirmar que a físico-química trata da natureza física dos sistemas químicos. Neste ramo da química, leis e conceitos tradicionalmente oriundos da física são utilizados na descrição e no tratamento de sistemas químicos. Entre as áreas mais tradicionais da físico-química, tem-se: termodinâmica (clássica e estatística), cinética química, eletroquímica, foto-química, química de superfície, química quântica e espectroscopia, entre outras. Como observado no caso da física clássica, não há muitas possibilidades de emergência de comportamento complexo no contexto tradicional dessas áreas, principalmente se considerados os textos clássicos utilizados nos cursos de graduação. Como exemplo, foi apresentado anteriormente que a auto-organização dinâmica ocorre em sistemas "abertos e afastados do estado de equilíbrio", situações não consideradas em cursos tradicionais de termodinâmica. Ênfase nos estados de equilíbrio e pouca familiaridade com fenômenos de transporte são certamente fatores importantes que contribuem para a fraca conexão entre a físico-química clássica e os temas discutidos aqui. Com efeito, cinética e termodinâmica são tópicos tradicionalmente dissociados, e exemplos de cinética oscilatória, quando incluídos nos textos básicos, tratam o tema como comportamento exótico. O foco tradicional no nível molecular dos fenômenos pode dificultar o entendimento de padrões formados em meso e macroescala. Finalmente, o diálogo entre experimento e teoria (incluindo métodos analíticos e numéricos), tão necessário no tratamento de problemas complexos, ainda está confinado a algumas poucas áreas da físico-química.

    CONCLUSÃO Abstraindo um pouco da trajetória apresentada aqui, espero ter deixado clara a importância da integração entre diferentes áreas ou disciplinas, artificialmente segmentadas. Afinal, problemas complexos requerem soluções não necessariamente complexas, mas pouco convencionais. Diferentes olhares se fazem necessários e, da experiência transdisciplinar, mais que a solução do problema em si, resulta a criação de uma cultura, com impactos profundos, inclusive, na organização e na forma de fazer ciência.

    A transdisciplinaridade engloba e transcende todas as formas de diálogo entre diferentes disciplinas e deve ser vista como um princípio a ser considerado sempre que a definição de problemas e suas soluções não são possíveis a partir de uma dada disciplina. Como discutido, transitar entre diferentes disciplinas tem como pré-condição certo grau de competência nas disciplinas em si (15). Satisfeita esta condição, a transdisciplinaridade representa a estrutura teórica para se abordar problemas de natureza complexa.

    Além do conselho avoid crowds, válido especialmente para cientistas em início de carreira, um olhar sobre áreas de pesquisa em processo de estabelecimento pode ser extremamente benéfico. Isto é especialmente verdade se, além de pouco povoada, a área emergente envolver questões intelectualmente interessantes e desafiadoras. Atuar em áreas bem estabelecidas pode trazer uma confortável sensação de pertencer a uma dada comunidade. Fundamental, no entanto, é tentar enxergar o todo e buscar as grandes questões, pois estas sim, são a principal força motriz da ciência que faz a diferença.

    Hamilton Varela é professor do Instituto de Química de São Carlos da Universidade de São Paulo. É membro fundador do ERTL Center na Coreia do Sul, onde atua, desde outubro de 2010, como responsável pela área temática de cinética complexa. Foi eleito membro afiliado da Academia Brasileira de Ciências em 2009. Email: varela@iqsc.usp.br

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Morin, E.. A cabeça bem-feita. Bertrand Brasil. 2010.

    2. Whitesides, G. M.; Ismagilov, R. F.. Science, Vol.284, no.89. 1999.

    3. Ertl, G.. Science, Vol.254, no.1750. 1991.

    4. Imbihl, R.; Ertl, G.. Chem. Rev. Vol.95, no.697. 1995.

    5. Krischer, K.. "Principles of spatial and temporal pattern formation in electrochemical systems", in Modern aspects of electrochemistry, B. E. Conway, J. Bockris and R. White, editors. Kluver Academic/Plenum Publishers, Vol.32, p.1. 1999.

    6. Varela, H.; Beta, C.; Bonnefont, A.; Krischer, K. Phys. Rev. Lett. Vol.94, no.17, pp.174104. 2005.

    7. Zhabotinsky, A. M.. Chaos, Vol.1, pp.379-386. 1991.

    8. Faria, R. B.; Quim. Nova, Vol.18, no.281. 1995.

    9. Barista, B. C.; Varela, H.. J. Phys. Chem. C, Vol.114, no.43, pp.18494-18500. 2010.

    10. Müller, S. C.; Hauser, M. J. B.; "Patterns and waves in chemistry and biology". In: Handbook of biomimetics; Osaka, Y., et all. Eds.; NTS Books, p.87. 2000.

    11. Nagao, R. et all. Chem. A, Vol.112, pp.4617-4624, 2008.

    12. Yoshida, R.. Adv. Mater. Vol.22, pp.3463-3483. 2010.

    13. Grzybowski, B.A. et all. Soft Matter, Vol.1, no.114. 2005.

    14. Von Kiedrowski, G.; Otto, S.; Herdewijn, P.. J. Syst. Chem. Vol.1, no.1. 2010.

    15. Mittelstrass, J.. "Transdisciplinarity -new structures in science", In: Innovative structures in basic research. SchlossRingberg, 2000. http://xserve02.mpiwg-berlin.mpg.de/ringberg/Talks/mittels%20-%20CHECKOUT/Mittelstrass.html. Acessado em 05.11.10