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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.63 no.1 São Paulo jan. 2011

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252011000100023 

    RESENHA

    Para uma geração pós-blade runner [ 2010:muito além da ficção]

     

     

    As obras de Philip K. Dick (1928-1982), que serviram de base para os filmes Blade Runner e Minority Report, projetavam para o futuro um estado de vigilância e visibilidade total. Nessas ficções, as íris dos olhos são escaneadas e, assim, mostram (ou carregam sempre consigo) todos os dados de cada pessoa, previamente cadastrada. Tanto em Blade Runner, que trata de 2019, portanto agora um futuro bem próximo, como na sociedade de 2054, projetada em Minority Report, estão colocadas essas questões contemporâneas, possíveis a partir de um sistema que permite armazenar todo tipo de informações, com inúmeras possibilidades de uso, desde seu rastreamento até o cruzamento com outras bases de dados.

    A leitura da íris como forma de identificação de um indivíduo (e seu percurso de vida), no cult de Ridley Scott de 1982, e os scanners móveis na superprodução de Steven Spielberg em 2002, ainda tinham muito de ficção na ocasião em que foram produzidos. Porém, hoje é realidade, como demonstra o livro Vigilância e visibilidade – espaço, tecnologia e identificação, recém-lançado pela editora Sulina sob o selo "Cibercultura". A obra reúne 17 autores, em 13 artigos, numa reflexão sobre o estado de controle social (e digital) desta primeira década do século XXI, que já está além do mundo ficcional.

     

     

    O Big Brother de Orwell, baseado na ideia de uma entidade única e suprema de controle, é "pura ficção" e vem sendo superado pelas tecnologias atuais em rede. Na esteira do Panóptico de Bentham – modelo arquitetônico para a formação de sociedades disciplinares, que foi metaforicamente apropriado por Foucault quase dois séculos depois – temos desde a instalação de câmeras de vigilância, a participação ativa na internet (por meio de redes sociais como Orkut, Facebook, Twitter e demais plataformas), os rastros deixados por nossos cartões de crédito, telefones celulares, GPS (sistema de posicionamento via satélites), RFID (chip de identificação por rádio frequência) até informações biométricas, como uma ficção que se insere na realidade cotidiana. Um aficcionado por tecnologia pode, com seu celular multimídia, filmar ambientes por onde passa e armazenar tais dados, assim como compartilhar sua vida (e a de outros) em plataformas de relacionamento social, e ainda carrega consigo um smart card (como um cartão bancário, por exemplo).

     

     

    No Brasil, para poder ter um simples sim card (chip de telefonia móvel), é necessário fornecer inúmeras identificações pessoais; já os passaportes europeus possuem RFID, assim como na entrada de alguns escritórios ou fronteiras, o reconhecimento do indivíduo via leitores biométricos e os de iris é uma realidade.

    Informações digitalizadas montam importantes bancos de dados que se retroalimentam, independentemente de estarmos em uma esfera privada ou pública. Organizado por Fernanda Bruno, Marta Kanashiro e Rodrigo Firmino, o livro traz, em suas 296 páginas, ensaios demonstrando como a vigilância adere cotidianamente a nossas vidas e não é mais assunto somente de filmes de ficção (e suas teorias da conspiração), analisando casos atuais em diferentes territórios latinoamericanos e suas fronteiras.

    Desde câmeras de vigilância no espaçopúblicourbano (eestasaliadas a "jogos – e discursos – participativos" online) a "sensores e tecnologias que monitoram o espaço físico e o informacional", o conjunto dos artigos analisa o que se convencionou chamar de "regime de visibilidade", que "consiste não tanto no que é visto, mas no que torna possível o que se vê", segundo os organizadores da edição. Assim, para muito além da paranoia pura e simplesmente, há a possibilidade real do controle dos indivíduos em situações de regimes autoritários (como, por exemplo, atesta o histórico de Portugal e a emenda em sua Constituição após a ditadura de Salazar; apontado no artigo de Danilo Doneda e Marta Kanashiro). É também interessante notar o discurso de transparência e cidadania em que se baseiam atuais governos, como o brasileiro, independentemente de escolha partidária. Um país, com tão pouca história de democracia, aposta em tecnologias de cadastramento da população configurando-se, portanto, em uma arte de governar de linhagem biopolítica (para utilizar um termo foucaultiano, complementar a seus estudos da sociedade disciplinar em diálogo com a "sociedade de controle" afirmada por Deleuze).

    Certamente é necessário a um país com cerca de 190 milhões de pessoas, em um território que ocupa aproximadamente nove milhões de quilômetros quadrados, organizar seus indivíduos para poder gerir o espaço e suas leis para benefício do próprio cidadão. Mas o poderoso banco de dados que será formado com um número de identidade única (descrito por David Murakami Wood e Rodrigo Firmino) atesta bem em que poderia se configurar tamanho cadastramento em "mãos erradas" de tal vigilância.

    A partir da experiência mexicana, descritaeanalisadaporNelsonArteagaBotello,naprimeirapartedolivro, comodabrasileiraaquianteriormente citada, averigua-se a relação de "cidadania" em processos socioeconômicos, culturais e tecnológicos que mesclam a "inclusão" eavigilância. A segunda parte aprofunda o tema das tecnologias de comunicação. André Lemos revela um interessante aprofundamento, e esclarecimento, sobre a diferenciação dos termos "controle, monitoramento e vigilância informacionais", ao analisar as chamadas "mídias locativas" (termo este criado por artistas, em 2003, ao utilizarem em percursos críticos e não-comerciais os dispositivos móveis, as "redes telemáticas sem fio ... e sensores").

    E quanto a ser convidado a um jogo de vigilância!? Em um público cada vez mais acostumado a reality shows televisivos – como bem elaborado em texto por David Lyon, um dos principais pesquisadores de surveillance, a questão do sinóptico (desde Bauman e Mathiesen) é novamente apontada como um avesso do panóptico. Textos como de Fernanda Bruno e Hille Koskela descrevem sites interativos e/ou governamentais com câmeras de vigilância e mapas na rede preocupados em observar e apontar o que acontece nas ruas de seu bairro (e cidade) ou em específicas fronteiras de seu país. Uma espécie de vigilância participativa, como é tratado no artigo "a atividade de observação sistemática e focalizada de indivíduos, populações ou informações relativas a eles, tendo em vista extrair conhecimento e intervir sobre os mesmos, de modo a governar suas condutas ou subjetividades" a partir de categorizações e engajamentos.

    Assim, o livro traz parte da discussão apresentada – e da rede de pesquisa recém-formada – no primeiro simpósio sobre vigilância no Brasil (2009) e pretende ser um início de uma discussão mais acurada sobre a América Latina, uma vez que esse debate – para além do tema da "segurança pública" e privada – já ocorre há pelo menos quatro décadas nos países do hemisfério norte, onde se discute a questão de surveillance em diferentes áreas do conhecimento, incluindo nesse debate também a arte e o ativismo.

     

    Milena Szafir
    é mestre em ciências da comunicação com ênfase em meios e processos audiovisuais, com formação em arquitetura e urbanismo, processamento de dados e na metodologia de educação não formal. Escreve também no
    MANIFESTO21.TV