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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.63 no.2 São Paulo abr. 2011

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252011000200020 

    CINEMA

    O mundo do trabalho retratado nas telas

     

    O trabalho sem fronteiras, que permita ao indivíduo usufruir da liberdade de ir e vir a locais geográficos onde a mão de obra seja bem paga e as condições de emprego e remuneração assim como de realização pessoal e profissional sejam mais atraentes, é o sonho contemporâneo. Infelizmente, esta não é a realidade que vivemos: fronteiras caem para produtos e serviços, o capital circula onde lhe é mais lucrativo e com melhores condições de se multiplicar, mas a extensa massa de trabalhadores do planeta, sem especialização e sem postos qualificados, oscilam à mercê da decisão dos investidores. Essa é uma questão econômica e sociológica que, além de fomentar teses acadêmicas e artigos de especialistas, tem sido habilmente tratada por vários cineastas, não só nas obras de ficção – em clássicos como o espanhol Segunda-feira ao sol, o norte-americano Pão e rosas, o francês O corte ou o indiano Sob a luz da América – mas, principalmente, nos documentários produzidos nas últimas décadas.

    Mesmo o documentário não sendo, ainda, um gênero de apelo popular como grandes produções cinematográficas, diversos deles acabam por cumprir melhor o papel de denúncia do problema, em especial os que conseguem ser veiculados pelas TVs abertas ou pagas. Recentemente incluído na programação da TV Cultura, China Blue é um dos casos: retrata a realidade de operárias chinesas numa pequena fábrica têxtil de jeans, cuja produção globalizada as joga num mundo escravizado do trabalho a baixo custo para as grandes marcas internacionais. Embora trabalhadoras urbanas, sofrem exploração como nos modelos rurais mais arcaicos: refeições e moradia são deduzidos de seus salários que, no caso, não chegam a um dólar diário. China Blue mostra o cotidiano dessas fábricas do sudoeste da China, com adolescentes retiradas de suas aldeias para sobreviver em cruéis condições de trabalho. Feito sem a permissão das autoridades chinesas é exemplar ao retratar a realidade da produção nos países emergentes.

     

     

    O deslocamento dos call centers das grandes multinacionais para países como a Índia, está bem representado na ficção Sob a luz da América, de 2005 que retrata a realidade de uma operadora de call center de uma companhia de cartões de crédito em Nova Delhi, cujos usuários são dos EUA. A comédia sobre diferenças culturais com um toque de romance, Despachado para a Índia, tem o personagem central dirigindo um call center de apoio ao cliente em Seattle até que o seu chefe lhe dá a má notícia: ele terá de ir até a Índia para treinar o seu substituto. Ele enfrenta as diferenças culturais em Bombaim e descobre que tem muito a aprender sobre os lugares e sobre ele mesmo.

    Seja em que parte do mundo eles estejam, os trabalhadores de baixo custo são encontrados pelas empresas. Mas quando surge outra situação, ainda mais vantajosa, as mesmas empresas, sem qualquer pudor, trocam de país, desmontam fábricas inteiras e desestruturam a vida produtiva ali instalada. Para o capital não existe fronteira. Para os homens existem várias, incluindo muros como os da fronteira do México com Estados Unidos, exigência de vistos e disseminação de políticas xenófobas para barrar o imigrante.

     

     

    RETRATO DO REAL Esse movimento tem sido cada vez mais captado pelos documentaristas. É um registro muitas vezes trabalhoso, de acompanhar a vida de personagens, de famílias e até comunidades inteiras espalhadas por diferentes partes do planeta, que sofrem com a pior face da globalização – palavra que remete a uma panaceia de vantagens nunca antes vista – que é a da desconstrução da identidade.

    "O documentário tem uma grande vantagem sobre outros meios e mídias. O trabalho de um documentarista não fica à mercê de uma produtividade que demanda quantidade como o jornalismo ou a televisão. O que interessa é a qualidade, o teor crítico e as informações trazidas à tona e que chama a atenção para esses temas", considera Angélica Muniz Valente, jornalista e documentarista formada pela Escola de Cinema e TV de Cuba (EICTV). O gênero tem conquistado um público cada vez maior. Está presente em festivais, em ciclos de cinema, nos formato curta, média e longa-metragem. Apesar de circuitos ainda restritos, ao contagiar a grade de programação da TV aberta e paga, expande suas possibilidades de público.

    A oeste dos trilhos, documentário do cineasta chinês Wang Bing (2008), é exemplo disso. A pesquisa de Bing registrou durante um ano e meio o desmonte de um complexo industrial na China recente. O resultado é um filme com 18 horas de duração, dividido em três partes e que mostra como o impulso do capital pode construir, manter, destruir e realocar uma cidade inteira. Tiexi, a cidade onde Bing colheu as imagens, não era mais um polo industrial moderno. Seu posto foi substituído por outros distritos dentro da própria China. Mas poderia ser qualquer outro lugar do mundo.

    "No jornalismo a história é imediata, no documentário esse tempo se dilata. É possível ver o processo do tempo", completa Angélica, cujo projeto atual sobre os trabalhadores da minas de amianto no México usa como base um estudo feito durante anos por uma pesquisadora do tema. "A qualidade da saúde dos trabalhadores na América Latina é um grande enigma para o grande público. E o trabalho causa muitas doenças e morte", explica a documentarista, lembrando que se fala muito das diminuições das taxas de emprego no país, mas nunca na qualidade dos empregos criados.

    MAIS PRODUÇÃO COM FOCO NO TRABALHO "Nunca houve na história do cinema um período onde o trabalho não fosse retratado, seja na ficção ou na produção documental. O que é interessante observar é que em um período muito curto – a partir da década de 1980 – a morfologia do mundo do trabalho mudou completamente. O trabalho é cada vez mais precário, ou como alguns preferem dizer, mais 'flexibilizado'. E isso se reflete no cinema", explica Roberto Della Santa Barros, pesquisador da Universidade Estadual de Londrina (UEL) no Paraná.

    Um bom exemplo é o filme Segunda- feira ao sol, ficção do cineasta espanhol Fernando Aranoa (2002), que parte de imagens documentais para criar uma história sobre a precariedade e o desemprego de trabalhadores espanhóis após uma empresa se mudar para outro país – similar ao que acontece na China de Bing. Novamente o tema mostra como as fronteiras financeiras são mais móveis que as fronteiras impostas aos trabalhadores.

    "A liberdade apregoada pela propaganda, de que a globalização é algo que traz uma maior mobilidade – uma palavra muito recorrente atualmente – só é verdade do ponto de vista da mercadoria", aponta Barros. "Os movimentos humanos – como os trabalhadores africanos indo para a Europa – não são bem vistos. Talvez por isso os sentimentos nacionalistas, xenófobos, movimentos anti-imigração, estão cada vez mais presentes também."

    Nesse ponto, diz o pesquisador, o documentário poderia ser considerado uma forma de resistência – e também de memória – a essas mudanças que ocorrem no mundo todo. "E é interessante observar que o tema não está presente apenas no cinema que podemos considerar mais crítico, e que faz o contraponto à história oficial. O cinema comercial também já está sensível a essa questão", diz Barros.

    Entre esses filmes mais comerciais é possível lembrar de Biutiful, do diretor Alejandro González Iñárritu (2010), indicado ao Oscar este ano, que também fala dos trabalhadores e imigrantes ilegais (aqueles que enfrentam as fronteiras impostas). E o francês Bem-vindo, de 2009, de Philippe Liorets é um retrato delicado e preciso sobre a situação de xenofobia presente hoje, principalmente nas cidades de fronteira, no caso do filme, o porto de Calais, passagem para oportunidade de uma vida melhor na Inglaterra para imigrantes do Leste Europeu e Ásia.

    O mundo do trabalho pemanece em ebulição. Entender o que acontece na China, no México ou na Europa também é uma forma de entender e fazer paralelos com as realidades locais. O mundo é cada vez mais diferente e, paradoxalmente, também cada vez mais igual em seus problemas e oportunidades.

     

    Enio Rodrigo Barbosa