SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.63 issue3 author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

    Related links

    • On index processCited by Google
    • Have no similar articlesSimilars in SciELO

    Share


    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.63 no.3 São Paulo July 2011

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252011000300023 

    CINEMA

    Com o foco nos animais para melhor apreender o mundo

     

     

    As relações que podemos estabelecer entre o cinema e os animais vão muito além do documentário ecológico. Os animais são plenos de movimento, essencial para o suporte cinematográfico. Mas quem está acostumado aos programas da National Geographic ou do canal Discovery pode não suspeitar que uma câmera já serviu ao infame propósito de registrar a execução de um animal inocente, num tempo em que os direitos dos animais e a própria ecologia como ciência ainda "engatinhavam", ou eram praticamente ignorados. Produzido pela Edison Manufacturing Co. (isso mesmo, o estúdio de Thomas Alva Edison, famoso inventor americano) e rodado em Coney Island, Nova York, Eletrocuting an elephant (1903), reproduz o triste testemunho da execução do elefante Topsy, condenado por matar três homens, dentre eles um espectador bêbado.

    Mas o fascínio provocado pela vida animal geralmente superou as barbaridades praticadas pelo homem, motivando cineastas contemporâneos de Edison e até mesmo precursores do cinema. Em 1872, nos EUA, bem antes da primeira exibição pública do cinematógrafo dos irmãos Lumière em Paris, Edward Muybridge já havia provado, por meio de uma série de fotografias sequenciais, que, num dado momento, o cavalo a galope tinha suas quatro patas no ar. Posteriormente, as "séries fotográficas" de Muybridge encantavam o público com seus cavalos, camelos, bisões e seres humanos em movimento, entre outros animais. Por volta da mesma época, na França, o fisiologista Etienne Jules-Marey dedicava-se ao estudo do movimento dos animais com o apoio da fotografia e dos primeiros desenvolvimentos do cinema. Munido de sua invenção de 1882, o fuzil cronofotográfico, cristalizou imagens impressionantes em suas cronofotografias, como Chronophotographie du saut en longeur (1882-3) ou Vol du pélican (1883). O aparato de Marey era capaz de produzir 12 fotogramas consecutivos por segundo, impressos numa única fotografia. Com seu fuzil, o inventor-cientista estudou cavalos, pássaros, cães, ovelhas, asnos, elefantes, peixes, criaturas microscópicas, moluscos, insetos, répteis, dentre outros. Autor de La machine animale (1873) e Levol des oiseaux (1880), Marey foi contemporâneo de Muybridge (ambos nasceram em 1830, com a diferença de um mês, e morreram em maio de 1904).

    Dos experimentos de Muybridge e Marey até hoje, não cessa o interesse cinematográfico pelos animais na chave da divulgação científica. O cineasta francês Jean Painlevé foi um pioneiro do documentarismo animal e científico, com obras marcantes como Le vampire (1945). O filme celebra o fascínio da morfologia dos animais, com foco sobre uma espécie sul-americana de morcego hematófago, comum no Brasil. No contexto de uma sensibilidade ecológica mundial ascendente, documentaristas como Jacques Cousteau redimensionaram o legado de cineastas predecessores, tornando o cinema um instrumento de conscientização a respeito do valor da vida e do desastre da influência humana sobre o planeta.

    CÃES COMO PROTAGONISTAS Não só o documentarismo cinematográfico elegeu animais como foco de sua atenção. A ascensão do cinema narrativo-dramático (o filme de longa-metragem que nos conta uma determinada estória) deve parcialmente sua popularidade não só a um star-system de atores e atrizes humanos, mas também a animais que desempenharam papéis memoráveis para a câmera, como em Rescued by Rover (1905), filme britânico de Cecil M. Hepworth. É provável que este seja um dos primeiros filmes da história do cinema com um cachorro no papel principal, possivelmente inaugurando a ideia do "cão herói", antecedendo produções como Lassie (1943), Rin-tin-tin (série 1954–1959) ou Beethoven (1992). De Os 101 dálmatas (101 dalmatians, 1996), da Disney, ao recente Sempre ao seu lado (Hachiko: a dog’s story, 2009), de Lasse Hallström – adaptação de antiga lenda sobre o cão Akita japonês –, o melhor amigo do homem tem tido papel de destaque nos cinemas mundo afora. A espontaneidade dos personagens caninos e sua capacidade de traduzir sentimentos universais são singulares, vide o caso do Bombón de O cachorro (El perro, 2004), pérola argentina dirigida por Carlos Sorin.

     

     

    LITERATURA ANIMAL A antropóloga Nádia Farage, professora do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), observa que o cinema buscou inspiração inicialmente na literatura, espaço em que a exploração dos animais ganha preeminência desde fins do século XVIII, em virtude das novas ideias trazidas pelo movimento romântico quanto à relação do homem com a natureza. "Denúncia contundente da exploração de cavalos, o romance de Anna Sewell , Black beauty (1877), veio popularizar o tema do sofrimento animal. O romance, segundo a crítica literária C.Lansbury (1984),  haveria surtido, para a causa dos animais, efeito similar àquele de A cabana do Pai Tomás para a causa da abolição da escravatura no contexto euro-americano. A última adaptação de Black beauty para o cinema foi feita em 1994 mas, ao que parece, não foi um sucesso de bilheteria", explica Farage. A antropóloga acrescenta que celebridade duradoura, como sabemos, alcançou o romance do austríaco Felix Salten,  Bambi (1923), graças à versão cinematográfica de Walt Disney (1942).  Tão importante quanto um libelo contra a guerra, entretanto, o filme estabelecia um nexo entre caça esportiva e guerra, cujo atributo comum é sua estúpida inutilidade. Farage relembra que, segundo o antropólogo norte-americano M.Cartmill (1996) – que discute a produção e a recepção de Bambi no quadro de um estudo sobre a caça esportiva –, a cena da morte da mãe do pequeno cervo, presente na primeira versão, era manifesto tão eloquente e chocante contra o assassinato de seres vivos indefesos que foi expurgada das versões posteriores. "Bambi teria sido o primeiro filme em que humanos não são protagonistas em primeiro plano e, mais do que isso, sua presença alusiva, mesmo na versão leve, destinada ao público infantil, é imagem de violência e de destruição", completa Farage.

    Baseado em fatos reais, Na montanha dos gorilas (Gorillas in the mist, 1988), de Michael Apted, foi um caso exemplar de filme de ficção engajado na defesa animal. Na montanha dos gorilas relata a luta da antropóloga americana Dian Fossey (interpretada pela atriz Sigourney Weaver) que, em 1967, viajou para a África e, durante vários anos em Ruanda, se dedicou à preservação dos gorilas da montanha, ameaçados de extinção em razão da caça indiscriminada.

    Mais recente, o filme Babe, o porquinho atrapalhado (Babe,1995) dirigido por Chris Noonan, retoma o tema do relacionamento entre o homem e animais de outra espécie. Para Nádia, "a mensagem relevante do filme é a de que a individuação, produzida pela compreensão e pelo afeto, pode subverter a velha ordem da predação e, o que é mais importante, que esta ordem não é imutável ou intransponível, contra-argumento às alegadas razões de ordem biológica para o abate e consumo dos corpos animais.  A sequência Babe: um porquinho na cidade (Babe:pig in the city, 1998), também de Noonan, expande sua crítica à inexorabilidade de outras práticas exploratórias de animais, como a experimentação biomédica (imageticamente articulada ao consumo da carne, por meio da cena de um jantar de confraternização de médicos em uma universidade), a manipulação genética de espécies (um bull terrier que sofre por só querer matar e não nutrir outros desejos), além de incidir sobre a triste condição dos animais domésticos em contexto urbano, notadamente o abandono de cães e gatos", observa. Farage assinala também que sucesso do filme Babe deve-se, ainda, às condições de sua produção, que se estendeu por largo tempo utilizando animais reais, mas com o cuidado de avisar sua audiência de que eles não sofreram maus tratos durante a filmagem. "Não sei se se trata de iniciativa pioneira, mas o fato é que, hoje, quase todos os filmes explicitam as condições de utilização de animais; a recíproca também é verdadeira, como mostram os boicotes ao filme de Pedro Almodóvar, Fale com ela ( Hable con ella, 2002) e ao mais recente Água para elefantes (Water for elefants, 2011), de Francis Lawrence, acusados de violação da ética no trato dos animais utilizados", comenta Farage. A antropóloga lembra ainda que, no fim dos anos 1990, A revolução dos bichos (Animal farm, 1999), de John Stephenson, merece menção por seu interesse em desconstruir a metáfora celebrizada por George Orwell, utilizando animais reais para apresentar a vida de exploração das espécies da fazenda como degradante em si mesma e, por isso, motivo para nossa indignação.

     

     

    FASCÍNIO DOS DOCUMENTÁRIOS A marcha dos pinguins (La marche de l’empereur, 2006), de Luc Jacquet, vencedor do Oscar 2006 de Melhor Documentário, usa técnicas de ficção em seu fascinante registro da luta pela vida na Antártida. O filme cria uma narrativa antropomórfica na qual um casal de pinguins e seu filhote são os personagens principais, recorrendo a narradores humanos e convenções de gênero como, por exemplo, o cinema musical. Lançado em 2011, Bonobos, documentário de Alain Tixier, retoma a defesa de uma espécie animal em risco de extinção a partir do trabalho de Claudine André, que se dedica à preservação do bonobo, grande macaco natural do Congo.

    Nádia Farage observa que a inteligibilidade e recepção dos filmes aqui citados encontra-se na disseminação das teses levantadas pelos movimentos de libertação animal, a partir, sobretudo, da publicação da obra de Peter Singer (1975).

    Paulo Medeiros, ex-diretor técnico e um dos fundadores da ONG Animal & Natureza (www.animalenatureza.org.br), observa que há muitos filmes protagonizados por animais com mensagens éticas e valiosas, porém faltam abordagens mais realistas da condição animal. "Por exemplo, um tema que nunca vi tratado num filme ou programa de TV, de forma realista, diz respeito ao descontrole populacional provocado pelo abandono", explica Medeiros. A entidade, que foca suas atividades na esterilização de animais abandonados e de regiões carentes, vê nessa defasagem um enfraquecimento do potencial de conscientização da população. "Todos sabemos que o cinema e a televisão são grandes formadores de opinião. Quanto mais o tema é divulgado, mais as pessoas procuram se informar a respeito e tomar uma atitude em relação à sua própria condição", explica Paulo.

    A despeito do choque que determinadas cenas da vida animal podem gerar no público espectador, tanto o cinema documentário quanto o de ficção têm, frequentemente, servido à conscientização ecológica e difusão de direitos animais.

    QUESTÕES POLÍTICAS NA TELA Para Nádia Farage, "de um lado o cinema é índice da lenta, porém persistente, mudança na sensibilidade urbana euro-americana (que nos afeta, evidentemente, como consumidores de sua produção cultural) quanto ao estatuto dos animais; de outro, o cinema contribui com uma reflexão politicamente fundamental para tal mudança em nossas concepções e práticas quanto aos animais. Assim, a produção recente, pelo menos desde os anos 1990, tem abordado criticamente velhas práticas, problematizando sua naturalização. Nessa linha, evoco Fuga das galinhas (Chicken run, 2000), de Peter Lord e Nick Park, animação cult em que a granja é equiparada ao campo de concentração; Madagascar (2005), de Eric Darnell e Tom McGrath, que trata da ambiguidade, vale dizer, o limbo simbólico a que estão submetidos os animais silvestres criados ou nascidos em cativeiro (no caso, o zoológico); Os sem floresta (Over the hedge, 2006), de Tim Johnson e Karey Kirkpatrick, que aborda a terrível situação dos animais silvestres desterritorializados pela expansão urbana."

    Bee movie – A história de uma abelha (2007), de Steve Hickner e Simon J. Smith, continua Nádia, "tem por tema instigante uma hipotética ação judicial movida pelas abelhas contra a humanidade pela apropriação indébita do fruto de seu trabalho, o mel; inverte assim, ficcionalmente, os famosos julgamentos medievais de animais e, contra seus análogos históricos, resulta em ganho de causa para as abelhas. O efeito a curto prazo da interrupção do trabalho das abelhas é a terra devastada, advertência mais do que oportuna nos tempos que correm, quando o uso de pesticidas tem provocado uma brutal diminuição na população de abelhas, ao ponto do trabalho de polinização haver se tornado ponderável fator de produção agrícola em algumas regiões dos EUA. Meu inventário de filmes está longe de ser exaustivo. Dele destaca-se , entretanto, o trabalho consistente da Dream Works e da Aardmar Animations, por vezes em parceria, na construção de um novo padrão de sensibilidade, com base na semelhança possível entre animais, humanos, inclusive. Nesse sentido, não posso deixar de citar uma de suas últimas produções, Como treinar seu dragão (DreamWorks, EUA,2010), em que um menino franzino consegue estabelecer uma relação de afeto com o dragão que deveria matar, porque foi capaz de ler, nos olhos dele, o medo que também sentia, partilha que neutraliza a extrema alteridade de um dragão. Trata-se, portanto, de alentadora mudança em curso que o cinema reflete e, ao mesmo tempo, produz. Essa mudança permitirá, quiçá, um novo pacto entre as espécies, um pacto de solidariedade e apoio mútuos, como quis Piotr Kropotkin no início do século XX", disserta Farage.

     

     

    Vale dizer que não só o cinema, mas as artes em geral têm celebrado, desde sempre, a natureza em toda a sua multiplicidade de formas e espécies. Prova mais sofisticada e filosófica dessa celebração que atravessa os tempos pode ser conferida no segundo capítulo da exposição Animism, que abre este ano no dia 15 de setembro, no Generali Foundationproduziert, Alemanha (http://foundation.generali.at/index.php?id=794&L=1). Revisando o conceito etnológico do animismo, emergente no século XIX, a exposição traz obras de Etienne Jules-Marey e Jean Painlevé, citados nesta matéria, e ainda Apichatpong Weerasethakul, o diretor tailandês de Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas (Lung Boonmee raluek chat, 2010), entre vários artistas.

     

    Alfredo Suppia e Paula Medeiros