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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.64 no.1 São Paulo Jan. 2012

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252012000100006 

    BRASIL
    DESIGUALDADE SOCIAL

     

    Abrindo a caixa preta das classes abastadas

     

     

    Patrícia Mariuzzo

     

     

    Riqueza concentrada e pobreza disseminada são faces do mesmo problema social a ser enfrentado no Brasil: concentração de renda e manutenção dos mecanismos para sua reprodução. Em geral, as políticas públicas e estratégias para reduzir as desigualdades entre as classes têm como foco os pobres. O primeiro dentre os oito objetivos do milênio, estabelecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2000, foi acabar com a miséria e a fome. O diagnóstico das causas que criam o fosso entre ricos e pobres deve, porém, levar em conta o papel da riqueza concentrada, investigar a camada que está no topo da pirâmide social: os grupos abastados, cujo poder incide em todas as dimensões da vida em sociedade. Baseado nesta constatação, o grupo de estudos Riqueza e desigualdade na América Latina, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob coordenação do sociólogo Antonio David Cattani, dedicou-se a analisar como a riqueza e sua reprodução modificam o pressuposto que considera os pobres responsáveis pela sua situação. E concluem que as condições que constituíram os mais ricos estão diretamente relacionadas à produção da desigualdade. Enquanto se multiplicam estudos sobre o polo pobreza, "milionários e bilionários, que, no Brasil, somam menos de 1% da população, permanecem ignorados, como se fossem abstrações irrelevantes, como se sua existência estivesse desconectada da estrutura de poder e das disputas na repartição da renda", afirma Cattani na introdução do livro Riqueza e desigualdade na América Latina (2010). Para ele, um olhar mais atento sobre essa classe possibilitaria, por exemplo, questionar a legitimidade das grandes fortunas, colocando em dúvida uma autoproclamada eficiência, que têm a seu favor o que o sociólogo chama de poder de escala.

     

     

    Embora os sinais de riqueza sejam bastante visíveis na sociedade, sendo o crescimento do mercado de luxo um de seus mais expressivos exemplos, os verdadeiramente ricos têm estratégias para esconder sua situação para evitar os olhares investigativos da Receita Federal ou mesmo uma análise mais crítica da sociedade. "A riqueza é sempre relacionada ao sucesso, à fruição das boas coisas da vida, sem que haja associação entre a materialidade do luxo e os processos que permitiram sua apropriação, por isso é sempre mais problemático estudar e questionar a riqueza, porque, ao contrário do que acontece com a pobreza, ela desperta admiração ao invés de indignação", acredita o sociólogo da UFRGS.

     

    ESTADO AGRAVA A DESIGUALDADE

    Uma das conclusões mais importantes da obra é que o Estado brasileiro, ao contrário do que se poderia supor, atua agravando as desigualdades e favorecendo os ricos. Exemplo disso é a distribuição de pensões e aposentadorias pela Previdência Social onde, segundo Marcelo Medeiros, um dos autores e professor da Universidade de Brasília, os mais ricos se apropriam da maior fração dos benefícios distribuídos.

    O recolhimento de impostos também não é um meio de redistribuição de riquezas. Estudos do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) mostram que, no Brasil, os mais pobres gastam mais de sua renda com o pagamento de tributos do que os ricos. Enquanto os 10% mais ricos repassam 22% de seus recursos para pagar impostos, os mais pobres repassam para o governo 32,8%. Além disso, como no Brasil a maior parte da arrecadação vem da tributação sobre consumo, quem paga mais impostos, proporcionalmente, são os mais pobres. Em contrapartida, as oportunidades de ascensão ao extrato dos ricos não estão abertas a todos. Redes de relacionamento pessoal, capital cultural, propriedade da empresa, entre outros, são elementos que auxiliam os ricos a perpetuarem seus privilégios.

    Outro indicativo de que o Estado brasileiro não ajuda na redução das desigualdades é a não regulamentação da lei criada na Constituição de 1988 que cria o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF). Enquanto na Europa e nos Estados Unidos são os próprios ricos que tomam iniciativa para a criação desse tipo de tributo, no Brasil o IGF segue esquecido nas gavetas do Congresso Nacional. Fato que se entende quando lembrarmos que quase 40% dos deputados federais, em 2011, declararam à Justiça eleitoral possuir mais de R$ 1 milhão em patrimônio. "Há indicações de que a riqueza no Brasil se origina ou ao menos é perpetuada por relações com o Estado. A fusão das elites econômica e política cria as condições para que a máquina estatal oriente suas ações para o benefício dos ricos, não só por meio das políticas macroeconômicas ou de infraestrutura de investimento, mas, também, pelo uso de políticas sociais que não possuem caráter distributivo", destaca Medeiros.

     

    LUXO VISÍVEL OU INVISÍVEL

    Além das relações com o Estado, a manutenção e reprodução da riqueza também dependem de alianças que os ricos estabelecem entre si, o que pode minimizar os efeitos da concorrência. "Eles unem-se para implementar macroiniciativas econômicas potencializando a dominação ideológica por meio de eventos midiáticos", aponta Cattani. Entre os exemplos dessa estratégia de alianças estão o boicote ao Protocolo de Kyoto, uma política de patentes prejudicial aos países mais pobres e a desregulamentação financeira e trabalhista.

    Para o pesquisador, os estudos sociológicos sobre as classes abastadas têm que eliminar uma espécie de tabu que transforma os ricos em objeto de veneração. A manutenção do sigilo bancário, o medo de sequestros e de extorsões, a inexistência de dados e informações fazem com que os mais abastados sigam visíveis pelo consumo do luxo e invisíveis nos seus mecanismos de manutenção e reprodução da riqueza. "É um grande desafio para a sociologia superar falsos problemas no estudo dos ricos e o equivocado entendimento de que a pobreza é um problema e que a riqueza não o é", provoca. O estudo das desigualdades sociais, afirma, tem que desvendar as peculiaridades dessa riqueza substantiva, conceito que indica a natureza dos recursos econômicos que estão acumulados e concentrados em poucas mãos e cujo volume possibilita o exercício do poder, que garante impunidade, confere legitimidade e reconhecimento sociais. "Novas perspectivas analíticas permitem revelar raízes das desigualdades e, sobretudo, entender como operam as forças que estão impedindo a construção de um mundo mais justo e equânime", finaliza.