SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.64 issue1 author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

    Related links

    • On index processCited by Google
    • Have no similar articlesSimilars in SciELO

    Share


    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.64 no.1 São Paulo Jan. 2012

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252012000100011 

    ARTIGOS

     

    Psicanálise e Antropologia: competição ou colaboração?

     

     

    Wagner Vidille

    Médico, psicanalista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, mestre em psicologia clínica pela Universidade de São Paulo (USP), diretor de relações exteriores da Federação Brasileira de Psicanálise

     

     

    As relações entre a psicanálise e outros saberes da modernidade - ciências sociais, biociências, linguística etc - passam por flutuações, oscilando, muitas vezes, entre a colaboração mútua e a competição acirrada. Especialmente em relação à antropologia, apesar de estruturadas por epistemologias diversas, o fato de terem campos de aplicação e teorização eventualmente superpostos enseja disputas por áreas de influência e hegemonia.

    As origens de qualquer ciência ou disciplina remontam aos interesses específicos de seus fundadores e ao substrato cultural do qual provêm. Assim aconteceu com a psicanálise em relação a Freud. Na Europa da segunda metade do século XIX, em meio à efervescência cultural dos tempos do pós-iluminismo - época de grandes descobertas científicas e de grande alargamento de conhecimento cultural para a humanidade -, encontramos Freud, um grande curioso intelectual e descobridor por excelência. Seus múltiplos interesses e sua vastíssima cultura geral são notórios, o que pode ser facilmente comprovado pelos relatos de seus biógrafos e pelo volumoso e diversificado número de citações e referências ao longo de toda sua obra escrita. Conhecedor profundo de literatura clássica e história, interessado especialmente na história primitiva da humanidade e em como o homem se tornou o que é, Freud sempre manifestou grande interesse pelo passado, afinidade que transcendeu em muito o prazer que obteve ao longo da vida com sua coleção de antiguidades - estatuetas e objetos antigos variados, alguns com mais de dois mil anos -, hoje abrigados na agradável residência da Maresfield Gardens (Freud Museum), em Londres. É interessante salientar, por outro lado, que ele, que nunca acreditou em vida post-mortem, considerava as especulações sobre o futuro como "perda de tempo e de raciocínio", como nos revela Jones (1).

    Em 1885, Freud seguia trilhando sua trajetória médica, encaminhando-se para se tornar um neuropatologista. Depois de passar pelos laboratórios de Solomon Stricker e Theodor Hermann Meynert de publicar artigos sobre pesquisas histológicas no sistema nervoso, decidiu instalar-se em Paris, a fim de acompanhar de perto o mestre Jean-Martin Charcot, na Salpêtrière, tida à época como a "Meca da neurologia". Nesse mesmo ano, grandes nações europeias - França, Inglaterra, Holanda, Alemanha e Itália -, depois de longas negociações, assinavam, em Berlim, um importante tratado que viria a partilhar a África em colônias e a instituir protetorados pelo resto do mundo. Em decorrência da nova ordem geopolítica estabelecida (conquistas coloniais), notícias frescas das longínquas e desfrequentadas terras na África, Índia, Austrália e Nova Zelândia passaram a chegar aos grandes centros culturais da época. O que antes era minimamente noticiado pelo relato de marinheiros, missionários ou mesmo de cientistas que faziam parte de expedições ao Hemisfério Sul, a partir de então, receberia incremento volumoso fornecido por colonos e administradores de colônias. Revelavam não só os recursos naturais a serem explorados, como a existência de povos pouco conhecidos, muitos em "estado de selvageria", para usar uma expressão da época. Informavam sobre habitações pitorescas, costumes inusitados, rituais religiosos primitivos, tabus alimentares estranhos, enfim, formas exóticas de vida humana, ao menos do ponto de vista do colonizador. E o que mais causava perplexidade aos olhares europeus, compreensivelmente enviesados pelo etnocentrismo, era constatar nas populações aborígenes a convivência pacífica entre a simplicidade da vida material e a extrema complexidade dos sistemas de parentesco e organização religiosa.

    Podemos imaginar que tipo de sentimentos teria um europeu médio, cidadão da metrópole no século XIX, ao se deparar com um texto que descrevesse as obrigações de luto, praxe para os filhos do morto na distante Melanésia, obrigados a chupar a substância em decomposição dos ossos do defunto; ou mesmo diante da foto da viúva que, de cabeça raspada por tradição ancestral em atenção às normas de luto fechado, ostentava um colar cujo adereço principal era o osso maxilar do recém-falecido (2). Estas e tantas outras situações similares causaram, certamente, um forte impacto na opinião pública mundial, mas, a verdade é que, novas concepções de vida e costumes muito pouco familiares aos "civilizados" foram gradualmente sendo trazidos à luz, reveladores das similitudes - apesar de contextos tão diversos - e das múltiplas complexidades da natureza humana.

    Esses relatos, que inicialmente eram verbais, com o tempo, passaram a ser escritos e desenhados, verdadeiros boletins de ocorrência; mais tarde, seriam ilustrados por fotos. Com o desenvolvimento da técnica fotográfica, mais e mais imagens passaram a engrossar os relatos, permeando, entre outros, o campo das publicações científicas. Encontramos um exemplo expressivo em Bronislaw Malinowski que, um mês depois da declaração da Primeira Guerra Mundial, empreendeu sua primeira expedição como antropólogo, desembarcando na Nova Guiné, numa viagem que durou quatro anos. Autor de três imponentes, e hoje conhecidas, monografias sobre os nativos das Ilhas Trobriand, incorporou 75 fotos ao primeiro texto, Os argonautas do Pacífico ocidental, de 1922; à segunda, A vida sexual dos selvagens, publicada sete anos mais tarde, 92 fotos; e à terceira, Os jardins de coral e suas mágicas, de 1935, 116 fotos (3).

    O primado da realidade objetiva (com o perdão do chiste, realidade "da" objetiva) acabaria se sobrepondo às meras descrições e às teorizações frouxas. É claro que muitos daqueles "instantâneos" inseridos no texto verbal eram posados, obtidos de maneira tão roteirizada e dramatizada quanto os "retratos" que, hoje em dia, perpetramos diante de monumentos consagrados pela cultura - como a Sacré-Coeur, Westminster, Fontana di Trevi ou o Cristo Redentor -, quando tentamos buscar, por contiguidade, o endosso de referências culturais robustas, pelo menos grandiosas em tamanho, às nossas empreitadas. Neste ponto, é útil lembrar a história peculiar da produção daquele que é considerado o primeiro filme etnográfico da história do cinema, Nanook, o esquimó (4), lançado em 1922. Durante as filmagens, Flaherty, seu produtor, foi obrigado a refazer totalmente as cenas do documentário porque os primeiros negativos foram destruídos num incêndio, tendo, assim, que rodar o filme duas vezes, por inteiro. O filme tenta reviver a experiência de Flaherty no Alasca, em 1913, e, numa segunda etapa, recriar o conteúdo do material original, na refilmagem de 1920. Portanto, mesmo obscurecido por toda a artificialidade da encenação, o conceito subjacente subsiste, acabando por prevalecer.

    Respaldado em sua experiência clínica em torno de paralisias histéricas, perversões, sintomas obsessivos, relatos de sonhos e outros "materiais" produzidos por uma clientela com hábitos culturais específicos, Freud reconheceu - nunca sem certo espanto - que grande parte dos estranhos modos de pensar primitivos que encontrava nas análises de alguns de seus pacientes poderia ser aproximada a crenças e costumes dos "selvagens". É claro que a aproximação entre o pensar infantil/neurótico e o pensar "selvagem" só foi feita com grandes ressalvas, mas ele, mestre em ousadias, decidiu ir adiante. É importante lembrar que o mesmo Freud, em circunstâncias anteriores, já havia "metido a mão na cumbuca" do inusitado ao inserir, definitivamente, o tema da sexualidade infantil no repertório científico. Depois de ler pela primeira vez A rama dourada (5), obra obrigatória a todo homem culto da época vitoriana, Freud teve sua atenção voltada mais intensamente para o tema do "homem primitivo". Indagava-se se suas próprias descobertas sobre as camadas arcaicas da mente não poderiam fornecer chaves para estágios iniciais do desenvolvimento humano. Com interesses pessoais ligados à antropologia, etnografia, biologia, história da religião e psicanálise e bafejado, agora, pelos relatos das recentes observações de campo trazidas pelos etnólogos e por leituras ligadas a essa temática - Robertson Smith, um estudioso bíblico inglês, Edward Burnett Tylor, da antropologia evolucionista e o notório Charles Darwin -, toma corpo, em 1913, a publicação de Totem e tabu (6), livro que permaneceu sendo um de seus favoritos durante toda sua vida.

    Impossível tentar resumir aqui, as principais contribuições freudianas contidas nesse livro, uma vez ser altamente provável o risco de desfiguração. A título de rememoração, entretanto, segue uma pequena síntese esquemática. No primeiro ensaio, o mais curto dos quatro, Freud trata das precauções de tribos primitivas para evitar possibilidades de incesto, chegando a descrever dificuldades familiares em nossa civilização, em especial, o enorme problema do que fazer quanto às sogras. No segundo, toma os tabus primitivos como campo de estudos, estabelecendo paralelos com a atual consciência e sentimento de culpa. No terceiro, examina a relação entre animismo e pensamento mágico e onipotência infantil. O quarto ensaio, o mais volumoso e considerado o mais intenso deles, traz importantes contribuições para a compreensão dos costumes, crenças e rituais dos chamados "povos primitivos", mesmo aqueles que impressionam pela aparente irracionalidade. Freud reafirma, ali, a ideia da "horda primitiva", encampada de Darwin, que supunha ter o homem pré-histórico vivido em pequenas hordas, cada qual liderada por um macho dominante; de Robertson tomou a ideia do ritual de sacrifício em que se come o animal totêmico; e com as crianças neuróticas aprendeu sobre fobias de animais, dinâmicas mentais que mascaram, ao fundo, o Complexo de Édipo, uma criação absolutamente sua. A esses elementos juntou a ideia do "banquete totêmico", ato coletivo em que os filhos reunidos espancam o macho dominante até a morte. Aí estava reconstruída a improvável história da origem das sociedades humanas, acrescentando, ainda, o "sentimento de culpa" do bando assassino - semente de todo tipo de organização social, restrições morais e religião - e sua transmissão às gerações posteriores.

    Para a época, era demais! Se tivesse procedido como fizera anos antes com sua "teoria da sedução" na etiologia das neuroses, quando substituiu "factualidade" simplesmente por "fantasia", Freud talvez tivesse se poupado de tantas críticas.

    Ao contrário de James Frazer, que demonstrava verdadeiro horror a qualquer menção a que ele mesmo observasse as sociedades sobre as quais construíra sua obra, antropólogos começaram a apresentar à comunidade científica descrições detalhadas das populações das várias partes do mundo que observavam in loco. Em 1910, Charles Gabriel Seligman vai ao Sudão e, poucos anos depois, Margareth Mead comunica sua experiência com os insulares da Nova Guiné; Franz Boas, depois de estudar os Chinook da Columbia Britânica, provoca uma verdadeira virada na prática antropológica, ao propor que, em campo, tudo deveria ser anotado, detalhe a detalhe, desde melodias a mitos, passando pela aparência das casas, indumentárias etc. Tudo seria alvo de descrição e consideração minuciosa na conquista da construção do significado.

    Devido à ascensão meteórica das teorias psicanalíticas no meio científico da época, ao grande acolhimento popular e à sua crescente influência na literatura, na ciência e nas artes, apesar de "argumentos caóticos e terminologia confusa" - nas palavras de Malinowski (7), antropólogos passaram a testar, em diferentes comunidades espalhadas pelo mundo, como o Complexo de Édipo e outras expressões do inconsciente se manifestavam. Para a maioria deles, entretanto, as teorias freudianas eram por demais ambiciosas, principalmente no que dizia respeito aos "selvagens". Era pensamento generalizado que as hipóteses sobre a origem das instituições humanas e as explicações da história da cultura deveriam basear-se não só em aspectos conscientes e, agora, inconscientes da alma humana, como, também, num sólido conhecimento da vida primitiva, conhecimento esse que não poderia ser adquirido em consultório.

    As opiniões se dividiam. De um lado, uns poucos "gatos pingados" tentavam dar suporte às suposições freudianas expressas em Totem e tabu, como no artigo que Géza Róheim, antropólogo com formação em psicanálise, publicou em 1952 (8); de outro lado, uma verdadeira "tropa de choque", muito superior em número, a lhe fazer oposição ferrenha. Um dos representantes mais assanhados desse último grupo era o mesmo Malinowski, que dedicou um livro inteiro a rebater, ponto a ponto, "as hipotéticas suposições a respeito de um tipo de horda primitiva, ou de um pré-histórico protótipo do sacrifício totêmico, ou sobre o caráter de sonho do mito, em geral de todo incompatíveis com os próprios princípios fundamentais da psicanálise" (2). Ele sustentava que nas sociedades matrilineares, como a tobriandesa, o conflito surgia não entre o filho e o pai, mas entre o filho e o seu tio, irmão de sua mãe, que chamou de "complexo avuncular".

    A polêmica parecia resumir-se à comprovação ou não da universalidade do Complexo de Édipo, disputa que hoje pode nos parecer secundária, uma vez que entendemos o conceito freudiano de uma maneira "descarnificada" das figuras parentais. Com o tempo, a questão foi sendo paulatinamente abandonada pelos antropólogos e, pelo lado dos psicanalistas, raramente considerada, talvez pela forma dogmática como as suposições freudianas são ensinadas nos institutos de formação.

    Podemos encontrar uma posição mais conciliadora em Devereux (9) - discípulo de Róheim e, como ele, psicanalista e antropólogo -, que sustenta serem ambas as disciplinas complementares, apesar de tratarem o mesmo objeto com metodologias distintas: a psicanálise, se ocupando do indivíduo e sua influência na cultura, ao lado da etnologia, estudando as variáveis culturais e sua influência na personalidade. Esse caminho nos parece bastante promissor porque, ao unir esforços de dois senhores, abre espaço para o estudo de temas como a identidade étnica, aculturação antagonista etc.

    Não poderia deixar de mencionar Lévi-Strauss. Leitor atento e crítico acerbo de Freud, de quem, entretanto, reconheceu a grandeza do pensamento, recorreu à hipótese de um inconsciente humano universal, geneticamente determinado, responsável pelo processo de construção de sistemas simbólicos, como mitos e estruturas de parentesco. Além de defender a inexistência do ego, para o antropólogo belga o inconsciente seria vazio, asséptico em termos emocionais, constituído apenas por mecanismos que organizam os conteúdos, processos mentais que transformam eventos em símbolos organizados em sistemas. Suas concepções privilegiam o desvendamento dos códigos que permitem a comunicação entre os homens em detrimento do substrato emocional que permeia as ações humanas, o que não deixa de ser contraditório já que, em suas descrições etnográficas, as vivências emotivas estão presentes sem, entretanto, levantar inquietação teórica relevante (10).

    É certo que os antropólogos recorrem episodicamente à psicanálise para entender e explicar de maneira convincente um mito, um ritual mágico-religioso, ou mesmo, uma partida de futebol, por necessitarem das referências às emoções subjacentes, especialidade da disciplina freudiana. Por outro lado, nós, os psicanalistas, precisamos reconhecer as normas culturais em que se assentam as trocas emocionais entre indivíduos, mesmo porque, as bases culturais que organizam o comportamento humano não são diretamente produtos da consciência e raramente operam através dela.

    Como psicanalista, acredito que "não exista o indivíduo in vácuo e que nossas atividades emocionais estão relacionadas com o ambiente e que são dinâmica e continuamente por ele influenciadas" (11), e que não se pode atentar a um fato psíquico a não ser remetendo-o ao conjunto da estrutura em que se insere, porque é das relações entre os fatos psíquicos e os vários circunstantes (organização social, política, familiar, econômica, religiosa, jurídica...) que se constituem os significados.

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Jones, E. A vida e a obra de Sigmund Freud. Vol. 3. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1989.

    2. Malinowski, B. A vida sexual dos selvagens. Rio de Janeiro: Livraria F. Alves Editora, Trad. Carlos Sussekind, 1ª ed. (1929). 1982.

    3. Samain, E. "'Ver' e 'dizer' na tradição etnográfica: Bronislaw Malinowski e a fotografia". In: Horizontes antropológicos, ano 1, nº 2, Porto Alegre. 1995.

    4. Nanook of the north, filme que documenta um ano na vida de um caçador esquimó e sua família, em sua luta pela sobrevivência nas adversas condições de Hudson Bay, Canadá .

    5. The golden bough (1890-1915), obra em doze volumes, escrita por James Frazer exclusivamente a partir de seu escritório em Londres e alimentada por informantes dispostos em diversas partes do globo.

    6. Freud, S. "Totem e tabu". In: S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. 13, Rio de Janeiro: Imago. Trabalho original publicado em 1912. 1974.

    7. Malinowski, B. Sexo e repressão na sociedade selvagem. Petrópolis: Ed. Vozes. Trad. de Francisco M. Guimarães. p.21. Trabalho original publicado em 1927. 1973.

    8. Róheim, G. "The anthropological evidence and the oedipus complex". Psychoanal. Q, Vol. 21, pp.537-42. 1952.

    9. Devereux, G. Etnopsicoanálisis complementarista. Buenos Aires: Amorrortu. p.77. 1975.

    10. Lévi-Strauss, C. "A eficácia simbólica". In: Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 6ª ed., 1949.

    11. Vidille, W. "Práticas terapêuticas entre indígenas do Alto Rio Negro: Reflexões teóricas". Dissertação de mestrado defendida no Instituto de Psicologia. Universidade de São Paulo (USP). São Paulo. 2005.