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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.64 no.2 São Paulo abr./jun. 2012

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252012000200003 

     

    O SHOW DA VIOLÊNCIA

    Mídia ajuda a legitimar a repressão ao criminalizar periferias e favelas

     

     

    Uma operação da Polícia Militar no centro da cidade de São Paulo para reprimir tráfico e consumo de drogas e "limpar" a região que ficou conhecida como Cracolândia ganhou a mídia, no início deste ano. Policiais utilizando sprays de gás de pimenta, atirando balas de borracha ou invadindo calçadas com motocicletas para remover ou prender uma multidão de dependentes químicos e traficantes, contabilizaram cerca de 8,2 mil abordagens, segundo dados do governo paulista. Pesquisa de opinião pública feita pelos jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo mostrou que 62,3% e 82% , respectivamente, aprovaram totalmente a atuação da polícia.

    As violações e abusos cometidos, por sua vez, viraram notícia nas redes sociais e foram denunciadas por organizações não-governamentais junto ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. O mesmo aconteceu com a remoção forçada dos moradores do bairro Pinheirinho, na cidade paulista de São José dos Campos, por conta de uma sentença judicial de reintegração de posse: a violenta desocupação ganhou visibilidade na internet, desafiando o tratamento – de invisibilização – que os grandes meios de comunicação (sobretudo os jornais e a televisão) dispensaram à remoção. Testemunhos e depoimentos das vítimas de violência puderam ter publicidade na rede.

    "Cracolândia" e "Pinheirinho" tornaram-se emblemas de um momento político de retomada da criminalização das favelas e periferias pela opinião pública, em que a violência policial, mesmo que ilegal (por cometer excessos, abusos e violação de direitos humanos) conta com legitimação social. O aumento da repressão estaria relacionado a uma intensificação dos estereótipos e estigmas em torno da pobreza e da exclusão, que fazem com que a violência por parte do Estado (da polícia) torne-se legítima. Ambos alimentam-se mutuamente, e a mídia tem papel mais do que relevante nisso tudo.

    Gabriel de Santis Feltran, professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), analisa essa complexa dinâmica no livro Fronteiras de tensão – Política e violência nas periferias de São Paulo (Unesp, 2011) e ajuda a pensar os acontecimentos recentes. "No Pinheirinho passaram os tratores por cima das casas das pessoas, com todos os seus pertences dentro. Um bairro consolidado se tornou um lixão. Acompanho remoções há tempos, e nunca tinha visto nada tão explícito", conta Feltran, que ainda lembra que a saída proposta para a Cracolândia – a construção de "centros de tratamento" para milhares de usuários, amparados pela internação compulsória – desconsidera todos os estudos realizados recentemente sobre o assunto.

    Mas como pensar, então, o apoio contabilizado pelas pesquisas de opinião pública a essa lógica e à repressão policial? A mídia ajudaria a criar as imagens, estereótipos e preconceitos que, aos olhos do público, justificariam a ilegalidade da atuação policial. O exemplo que Gabriel Feltran traz em seu livro é o do noticiário que sempre faz questão de dizer, ao contabilizar os mortos em chacinas e ações policiais, quantos deles apresentavam antecedentes criminais, legitimando-se a lógica do "bandido bom é bandido morto". A criminalização acontece, então, quando os meios de comunicação tomam as favelas e as periferias urbanas como territórios homogêneos e dominados por "bandidos" e, de modo preconceituoso, associam a imagem de seus moradores – principalmente os jovens pobres e negros – ao crime. "As grandes mídias têm tido um papel fundamental na constituição – explícita, consciente e informada – desses estereótipos. Os jornalistas desses meios funcionam, hoje, como difusores dessa moral absoluta da gestão dos indesejáveis. Mais ainda: a espetacularização tem sido uma das formas mais utilizadas para tentar gerir um conflito social que, atualmente, não encontra formas de expressão política legitimada.", diz Feltran.

    MARGINALIDADE OU RELIGIÃO Ao tratar desse caráter paradoxal das imagens de violência na mídia, Cláudio Cardoso de Paiva, professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), lembra que há escritores, romancistas, cineastas, ficcionistas e documentaristas, cuja formação ética e consciência social implica numa criação preocupada com a construção das identidades de maneira sensível e responsável, concorrendo para a elaboração de uma visibilidade afirmativa dos indivíduos e grupos nas comunidades pobres. Mas, para ele, também não se pode esquecer que, tragicamente, vivemos numa sociedade em que os excluídos se encontram num beco estreito entre a criminalidade e a cooptação pelas comunidades religiosas.

    "Para o enfrentamento da contradição – que é mais forte que só paradoxo – faz-se necessária uma estratégia de produção educacional, intelectual, estética, inteligente e sensível para o refinamento da percepção crítica principalmente dos jovens. Mas essa empresa não é fácil pois o inconsciente infanto-juvenil é inteiramente atravessado pela ideologia do consumo que é terrivelmente violenta", afirma Paiva.

    REALIDADE E FICÇÃO O polêmico e recorrente tema da "espetacularização da violência" diz respeito ao modo de expressar e tratar estética e politicamente a violência como problema. Para Esther Hamburguer, antropóloga e professora da ECA-USP, essa espetacularização – que ela prefere chamar de hiper-realismo ou hipervisibilidade da violência – teria emergido no cinema e contaminado a televisão. Num artigo publicado na Revista de Antropologia, em 2008, ela analisa alguns filmes recentes do cinema brasileiro, em que os temas da violência e da desigualdade social se fazem presentes. Notícias de uma guerra particular (1999); Cidade de Deus (2002); O invasor (2002); Ônibus 174 (2002); Carandiru (2003); O prisioneiro da grade de ferro (2003); Falcão, Meninos do tráfico (2006) e Tropa de elite (2007) seriam os responsáveis pela criação de um novo tipo de realismo: através de uma série de artifícios, uma verossimilhança com o real é inventada e os filmes ganham ares de documentário, como se eles fossem capazes de registrar, de forma transparente, a realidade da violência na periferia. Uma hipervisibilidade cujo efeito colateral seria o risco de reduzir os universos das periferias e favelas a imagens estereotipadas e generalizações.

     

     

    Dentre os truques utilizados na criação dessa estética hiper-realista, há o excesso de contrastes de cores (tons azulados e cinzas que se opõem a cores quentes); um ritmo acelerado, de videoclipe, na alternância de planos curtos, criado pela montagem; a ênfase em atores desconhecidos (jovens negros, em sua maioria, que não são atores profissionais e que se tornam personagens de si mesmos ao lançar mão de gírias e gestos da periferia); um tom de depoimento dado por uma narração em off do protagonista que explica, de modo didático, o plano das imagens para o espectador; espaços e tempos tomados de forma bem definida (o morro e o asfalto no Rio de Janeiro; periferias e presídios em São Paulo; eventos recentes, baseados em histórias contemporâneas e reais, lançando-se mão de imagens de arquivo), também ajudam a criar imagens que se querem como espelhos da realidade.

    A antropóloga lembra alguns textos publicados na imprensa no calor da hora, mais especificamente quando Cidade de Deus foi lançado, em 2002, quando o tema da espetacularização da violência no Brasil foi retomado com força. O texto de Ivana Bentes, pesquisadora da UFRJ, destaca em artigo no O Estado de S. Paulo como, através da montagem e da imersão total do espectador nas imagens, Cidade de Deus suscita a adrenalina dos filmes de ação hollywoodianos, em que o prazer estaria em assistir a alguém infligir e/ou sofrer algum tipo de violência. Uma saturação dos sentidos que anestesia o espectador. O texto de Jean Claude Bernardet no mesmo jornal, por sua vez, aborda como o filme configuraria um "cinema do espanto" que quer criar um testemunho da violência cheio de pontos de exclamação em vez de interrogação, baseado numa descrição sem julgamento moral das ações e comportamentos dos personagens.

    COMO EVITAR ESTEREÓTIPOS? Nessa contaminação entre o real e ficção, cineastas e atores, curiosamente, ainda se tornam vozes autorizadas e especializadas no tema da violência, caso da equipe do filme Tropa de elite: por ocasião do lançamento da sequência do filme, em 2010, as entrevistas do diretor José Padilha ou mesmo do protagonista, Wagner Moura, muitas vezes foram transformadas em verdadeiros debates acerca da implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e da política de segurança pública no Rio de Janeiro.

    "A questão que permanece sem resposta é: como expressar situações de violência e discriminação sem contribuir para reforçar estereótipos? Ou melhor, como contribuir visualmente para desarticular estereótipos, especialmente os que associam jovens homens negros e pobres à violência?", pergunta Esther Hamburguer em seu artigo.

     

    Carolina Cantarino