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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.64 no.2 São Paulo abr./jun. 2012

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252012000200010 

     

    Um pouco da história da luta feminista pela descriminalização do aborto no Brasil

    Silvia Pimentel
    Wilza Villela

     

    É no contexto do movimento feminista organizado da década de 1970 que se coloca com intensidade a luta para reformar o Código Penal em relação ao aborto. A legalização do aborto sempre foi para o feminismo uma questão prioritária de direitos humanos das mulheres.

    Ao final daquela década, o discurso feminista dos direitos humanos das mulheres assumia, como premissa, o "nosso corpo nos pertence", o que diferenciava o movimento feminista do movimento de mulheres. Para as mulheres feministas, o direito ao aborto, a escolha de ter ou não ter filhos e o livre exercício da sexualidade eram, e ainda são, requisitos básicos e necessários de justiça social e para a consolidação das democracias.

    A introdução da defesa da legalização do aborto na agenda política definiu fronteiras entre o movimento feminista e o movimento de mulheres, mais voltados para a garantia de acesso a equipamentos sociais que para a conquista de autonomia (1).

    Nesse período, a disputa política com a hierarquia da Igreja Católica em relação ao aborto ganhou força, levando as feministas a definir uma estratégia que associava o aborto ao leque de reivindicações mais gerais voltadas para a saúde integral das mulheres.

    Concomitantemente, nasce no interior da Igreja um movimento impulsionado por mulheres cristãs propondo discutir o direito das mulheres de decidirem pelo aborto. No mundo sindical, a Comissão de Mulheres da Central Única dos Trabalhadores propõe incorporar na sua agenda a luta pela legalização do aborto, posicionamento que reverbera para outras centrais sindicais. Outros parceiros também se aproximam, como partidos políticos e associações profissionais, a exemplo da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).

    Ao abordar rapidamente essa história estamos enfatizando a importância política de revisitar, no século XXI, em 2012, a discussão sobre o direito ao aborto, no contexto do debate sobre a efetivação dos direitos humanos na sociedade brasileira.

    O tema dos direitos humanos não é novo na agenda das mulheres. Há anos, mulheres como Emma Goldman, Flora Tristán, Nisia Floresta, Bertha Lutz, entre outras, já o discutiam. As feministas brasileiras, ex-exiladas, ex-presas políticas, no final da década de 1970 e no início da década seguinte, mais uma vez o colocaram em foco, situando a luta pelo direito ao aborto no centro desse debate.

    Discutir o direito ao aborto desconstrói o paradigma hegemônico da maternidade compulsória. Quando o debate sobre a legalização ou descriminalização do aborto passou a envolver outros atores, essa desconstrução foi ressignificada, e a defesa do direito ao aborto passou a ser percebida também como um posicionamento solidário com as inúmeras mulheres que abortam na clandestinidade, em situação de ameaça à sua integridade física, psíquica e mesmo à sua vida (2;3).

    Defender a descriminalização ou legalização do aborto é lutar por um projeto de sociedade equânime nas relações de gênero, tendo a equidade como princípio e diretriz para que as diferenças possam ser convividas e vivenciadas dentro do mesmo espaço. Ao negar a subsunção das mulheres à maternidade, afirmando que elas podem ser mulheres na sua integralidade sem ter filhos e dissociando sexualidade e reprodução, constrói-se a ancoragem necessária para tratar do aborto no âmbito dos direitos humanos e dos direitos reprodutivos e sexuais.

     

     

    O ABORTO NÃO É UM BEM EM SI MESMO Admitindo-se a dignidade humana e os direitos fundamentais da mulher, considerando-se que a vida do feto, em geral, deve ser protegida e reconhecendo que a educação na área da sexualidade e da reprodução é comprovadamente a única política pública que apresenta resultados satisfatórios na redução da incidência do aborto, conclui-se que qualquer legislação que vise a diminuir a realização de abortamentos, deve ser preventiva e não punitiva.

    O debate atual sobre o aborto no Brasil apresenta-se eivado de equívocos e ambiguidades. A começar pela colocação da questão nos termos "ser contra ou a favor do aborto", que revela, de um lado, uma grande simplificação do problema e, de outro, má fé em relação ao tema, pois configura, falaciosamente, dois grupos em oposição, "os a favor da vida e os contra a vida".

    Os defensores do direito ao aborto não são contra a vida, e o aborto, em si, não é um bem, mas o Estado não tem o direito de incriminar uma mulher que decide interromper uma gravidez que ela não pode suportar.

    Tratar do direito ao aborto hoje significa ter como referência a justiça social e considerar os direitos de quem aborta e de quem exerce essa intervenção – mulheres e profissionais de saúde, a partir de quatro princípios éticos: o princípio da integridade corporal, que é o direito à segurança e o controle do próprio corpo, como um dos aspectos do conceito de liberdade reprodutiva e sexual; o princípio de igualdade, que inclui a igualdade de direitos entre mulheres e homens e entre todas as mulheres; o princípio da individualidade, que diz respeito à capacidade moral e legal das pessoas, implicando no direito à autodeterminação, o respeito à autonomia na tomada de decisões sexuais e reprodutivas e o princípio da diversidade, que se refere ao respeito pelas diferenças entre as mulheres (1).

    Enfim, falar do direito ao aborto implica resgatar a radicalidade do feminismo trinta anos depois (4), para que o discurso sobre a opressão das mulheres, que tem nas experiências vividas durante as situações de aborto clandestino a sua maior expressão, não se torne desencarnado da própria concretude do sujeito mulher.

     

    Silvia Pimentel é professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), representante do Brasil no Committee on the Elimination of Discrimination Against Women (Cedaw), da ONU.

    Wilza Villela é médica psiquiatra, professora visitante do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Villela, W. Advocating for abortion access. Johanesburg: University of Witwatersrand; 2001.

    2. Boemer, M.R., Mariutti, M.G. "Women facing abortion: an existential approach". Rev Esc Enferm USP. 2003;37(2):59-71.

    3. Oliveira, M.E. "Aborto: desafios da legalidade". Recife: Cadernos SOS Corpo. Vol. 2; 1998.

    4. Delphy, C. "Para redescobrir o feminismo". Le Monde Diplomatic Brasil. [magazine on line]. Maio de 2004 [acesso em 2 april 2011]. Disponível em: http://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=1158&tipo=acervo.