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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.64 no.2 São Paulo Apr./June 2012

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252012000200014 

     

    Aborto e objeção de consciência

    Beatriz Galli
    Jefferson Drezett
    Mario Cavagna Neto

     

    A Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (ICPD), realizada no Cairo, em 1994, e a 4ª Conferência Internacional sobre a Mulher, em Beijing, em 1995, consolidam os direitos humanos das mulheres no campo da saúde sexual e reprodutiva (1). Em Beijing, os países participantes afirmaram o direito das mulheres de decidir livremente sobre fertilidade e sexualidade, livres de coerção, discriminação ou violência (2). No Cairo, os governos reconheceram o aborto como grave problema de saúde pública, comprometendo-se a reduzir a necessidade de recorrer ao aborto por meio da expansão do planejamento reprodutivo (1).

    A Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1999, aprovou a implementação do IPCD + 5, acrescentado que, nas circunstâncias em que o aborto não contraria a lei, governos devem adotar medidas que garantam que esses abortos sejam praticados de forma segura e acessível (3). A atenção ao tema do aborto nas conferências internacionais se justifica. A maior parte das mortes maternas e das graves sequelas do aborto pode ser prevenida com uso de tecnologia apropriada por profissionais de saúde preparados (4). Nos países com acesso a serviços seguros a probabilidade de morte por aborto é de 1/100.000 procedimentos, contrastando com o risco de 1/100 verificado nos países em desenvolvimento onde o aborto é proibido e realizado de forma clandestina e insegura (5).

    O Brasil, signatário dessas conferências e de tratados internacionais de direitos humanos, assume compromisso com questões relativas ao aborto (6). No entanto, sua prática ainda é crime tipificado no Código Penal, com exceção das situações previstas pelo artigo 128, que estabelece, desde 1940, que não é crime e não se pune o aborto em casos de gravidez decorrente de estupro ou quando há risco de morte para a gestante. Mais recentemente, consequência da incontestável evolução da propedêutica fetal, o poder judiciário passa a conceder autorização para interromper gestações com anomalias fetais graves e incompatíveis com a vida extra-uterina (7). Nessas situações de exceção o aborto é inequívoco direito da mulher. Cabe, portanto, ao Estado garantir que a interrupção dessas gestações seja realizada de maneira ética, humanizada e segura (8).

    Ainda que a última década tenha sido marcada pela crescente implantação de serviços de saúde que realizam o aborto previsto pela lei e por políticas públicas que qualifiquem sua prática, ainda existem desafios para que a interrupção dessas gestações seja acessível e segura para todas as mulheres. Profissionais de saúde, em geral, e obstetras e ginecologistas, em particular, são muitas vezes ambivalentes com relação ao aborto, consequência do conflito entre valores profissionais e pessoais (9). No caso da assistência à saúde, valores morais ou religiosos podem nortear comportamentos e atitudes, gerando situações de conflito para o médico em relação ao dever ético e profissional. Somado aos conhecimentos e habilidades, os valores dos profissionais de saúde têm estreita relação com a qualidade da atenção que prestam às mulheres em situação de abortamento (10).

    Mesmo em países desenvolvidos, em que o aborto é permitido, há barreiras no acesso aos serviços seguros. Entre elas, se destaca a recusa de médicos fundamentada em razões de consciência (11). Insegurança frente a um novo modelo de atendimento, desconhecimento dos procedimentos técnicos e legais, temor de cometer ato ilícito, escassa orientação e insuficiente apoio institucional são fatores apontados para que médicos brasileiros evitem o tema do aborto. Contudo, essas questões são insuficientes para explicar determinados contrastes. Se, por um lado, a maioria dos ginecologistas brasileiros declara não ter objeção de consciência nas situações onde o aborto é previsto pela lei, por outro, ainda é pequeno o número de médicos que, efetivamente, participam de sua prática, particularmente nas situações de violência sexual (12).

    A necessidade crítica de garantir acesso ao aborto seguro encontra, em parte, dificuldades na questão da objeção de consciência. A recusa em prestar assistência em determinados casos é fundamentada no direito individual do profissional de saúde à objeção de consciência. Há, contudo, pouco debate a esse respeito que contemple a abordagem de direitos humanos e que enfatize o dever ético-profissional de indicar outro profissional que preste assistência sem objeções, assim como, a obrigação da instituição de saúde de garantir o acesso aos serviços de atenção ao aborto nos casos previstos em lei (13).

     

     

    Como direito humano relacionado à consciência pessoal ou espiritual, a objeção de consciência não pode ser alegada por instituições, como hospitais, por não possuírem dimensão individual e espiritual da personalidade humana, protegida pelos direitos humanos (14). O direito à objeção de consciência está expresso no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, no artigo 18, que estabelece que "toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião (...) e de manifestar a sua religião ou crença pelo culto, observância, prática e ensino". Entretanto, o direito à objeção de consciência não é um direito absoluto e o Pacto o limita quando se tratar da saúde de outras pessoas, como quando o aborto terapêutico é indicado (15).

    A Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (Figo), afirma que o principal compromisso do médico deve ser proporcionar as melhores condições de saúde reprodutiva para as mulheres. Aqueles que se encontram impedidos de fazê-lo, por razões pessoais de consciência, não deixam de ter responsabilidade no atendimento. Nesses casos, a Figo estabelece como dever do médico informar à mulher sobre todas as opções para sua condição, inclusive aquelas a que ele se nega praticar. O princípio ético da autonomia assegura a importância da participação da mulher nas decisões sobre sua saúde. Ao médico cabe respeitar essa posição. Não obstante, estabelece que, se por motivos não clínicos o médico for incapaz de oferecer a atenção desejada, o mesmo deve encaminhar a mulher para outro profissional (16;17).

    No Brasil, o Conselho Federal de Medicina assegura, no artigo 7 do Código de Ética Médica, que "o médico deve exercer a profissão com ampla autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços profissionais a quem ele não deseje, salvo na ausência de outro médico, em casos de urgência, ou quando sua negativa possa trazer danos irreversíveis ao paciente". Também é direito do médico, artigo 28, "recusar a realização de atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência" (18). Dessa forma, é garantida ao médico a objeção de consciência e direito de recusa de praticar o aborto, mesmo nas situações previstas pela lei. Esses aspectos encontram-se observados pelo Ministério da Saúde nas normas técnicas "Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes" e "Atenção humanizada ao abortamento" (19;20).

    A posição do médico que manifesta objeção de consciência deve ser respeitada. Nesses casos, recomenda-se que declare sua posição de forma franca e clara, encaminhando a mulher para outro profissional ou serviço de saúde que concorde em realizar o procedimento (21;22). O respeito a esses princípios certamente coibiria situações desastrosas que expressam descaso e desrespeito aos direitos humanos de mulheres. Em situações extremas, há médicos que denunciam mulheres que induzem o aborto à autoridade policial. Fundamentados em valores morais ou religiosos, descumprem o estabelecido pelo Código Penal, que proíbe revelar, sem justa causa, segredo em razão de função, ministério, ofício ou profissão. Ocorrências dessa natureza são clara expressão de transgressão dos limites éticos e legais da objeção de consciência (23).

    Além disso, a Figo adverte que médicos que manifestam objeção de consciência têm o dever de observar diretrizes científicas e profissionais, com necessário cuidado e integridade, evitando descaracterizar determinada condição clínica pautados em crenças pessoais. Essa questão é particularmente importante nos casos de gravidez associada a doenças que determine risco de morte (8). Não encontra sustentação a equivocada alegação de que não mais existem situações clínicas que justifiquem o aborto para proteger a vida da gestante, dada a evolução dos recursos da medicina. A mortalidade materna indireta, resultado da letalidade de doenças preexistentes, responde entre 15% e 30% de todas as mortes maternas. A interrupção da gravidez representa, nesses casos, possivelmente, a única alternativa para evitar a morte dessas mulheres (24).

    É fundamental que se esclareça à gestante a taxa de letalidade de sua doença associada à gravidez, sem juízo de valores. Como exemplo, taxa de letalidade de 5% é, muitas vezes, expressa pelo médico como risco pequeno e aceitável. No entanto, letalidade de 5% representa o mesmo que 5.000 mortes por 100 mil ocorrências. Comparando-se com as taxas de países desenvolvidos, cerca de 10 mortes maternas por 100 mil nascidos vivos, significa dizer que a letalidade determinada pela doença é 500 vezes maior do que aquela que enfrenta a gestante que não porta a mesma doença. Contudo, frequentemente o médico recomenda a continuidade da gestação e descarta a alternativa do aborto, mediante critérios frágeis, sem oferecer para a mulher a possibilidade de decidir qual nível de risco é aceitável (25).

    Mesmo admitindo os aspectos mais controversos da objeção de consciência, há elementos para acreditar que os profissionais de saúde têm participado, de forma cada vez mais qualificada, da discussão bioética sobre o aborto. Estudo realizado entre mais de 4.000 médicos que integram a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) aponta para avanços significativos na opinião dos médicos sobre o aborto. Para 65,4% dos ginecologistas e obstetras, a lei penal deveria ampliar as condições em que a interrupção da gravidez deveria ser permitida. Para 14,6%, o aborto deveria ser legalmente garantido em qualquer circunstância desejada e consentida pela mulher. Outros 13,4% declararam que a lei atual deveria ser mantida, sem modificações. Apenas 0,2% dos entrevistados afirmaram que o aborto deveria ser proibido em qualquer situação. Mesmo enfrentando possíveis conflitos de valores pessoais e profissionais, 80% dos ginecologistas e obstetras brasileiros entendem que são necessárias mudanças na legislação que ampliem as condições legais do aborto ou que promovam sua descriminalização. No rumo inverso, destaca-se o pequeno número de médicos com objeção de consciência absoluta (26).

    Se, por um lado, essas evidências apontam para um contexto mais realista em relação ao aborto nos casos de estupro e de risco de morte para a gestante, por outro, ainda há desafios sobre a interrupção voluntária da gravidez. De fato, apenas 14,6% dos profissionais afirmam que a legislação deveria permitir o aborto, em qualquer circunstância. No entanto, 43,5% dos médicos declaram que já ajudaram mulheres de sua clínica com gestação indesejada, indicando outro profissional de confiança para realizar o aborto, ou orientando a interrupção da gravidez com uso de medicamentos. Notadamente, esse percentual se eleva para 50,8% quando a gravidez indesejada ocorre com um membro da família, e para quase 80% quando a própria médica vivencia essa situação. Não se pode negar que profissionais de saúde, assim como muitas pessoas, são capazes de recuar da condição de objeção de consciência ao aborto quando vivenciam, compreendem ou experimentam a situação da gravidez indesejada (26).

    Ser médico significa estar disposto a oferecer intervenções em saúde que são legais, benéficas e desejadas pelas usuárias dos serviços, como parte de um sistema público de saúde justo e eficiente. Os valores devem influenciar o debate na esfera pública sobre qual o tipo de sistema de saúde queremos. Porém, valores ou crenças pessoais não podem influenciar na qualidade da atenção, dificultando o acesso à assistência em saúde, sob pena de violar os direitos humanos das mulheres que buscam o atendimento médico.

     

    Beatriz Galli é advogada e mestre em direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Toronto. Membro do Comitê Latino Americano e do Caribe pelos Direitos da Mulher (Cladem), Brasil, e atua como assessora de direitos humanos de Ações Afirmativas em Direitos e Saúde – AADS- Brasil.

    Jefferson Drezett é diretor do Núcleo de Violência Sexual e Abortamento Legal do Hospital Pérola Byington. Participa como membro do Consórcio Latino-americano Contra o Aborto Inseguro e do Consórcio Internacional de Aborto Medicamentoso. Desde 2005 integra a Comissão de Abortamento Legal da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana.

    Mario Cavagna Neto é professor livre docente em ginecologia e fisiopatologia da reprodução pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), diretor da Divisão de Reprodução Humana do Hospital Pérola Byington e editor científico da revista Reprodução e Climatério.

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. United Nations. "Report of the International Conference on Population and Development, Cairo". New York: United Nations. 1994.

    2. United Nations. "Report of the Fourth World Conference on Women, Beijing". New York, United Nations. 1995.

    3. United Nations. "Key actions for the further implementation of the Programme of Action of the International Conference on Population and Development". New York: United Nations. 1999.

    4. World Health Organization. "The prevention and management of unsafe abortion. Report of a Technical Working Group". Geneva: World Health Organization. 1992.

    5. Alan Guttmacher Institute. Sharing responsibility: women, society & abortion worldwide. New York and Washington DC. The Alan Guttmacher Institute. 1999.

    6. Advocaci. Direitos sexuais e reprodutivos na perspectiva dos direitos humanos – síntese para gestores, legisladores e operadores do direito. Rio de Janeiro: Advocaci, p.118. 2003.

    7. M. V. Frigério, I. Salzo, S. Pimentel, T. R. Gollop. In: Aborto legal – implicações éticas e religiosas. São Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir, pp.71-98. 2002.

    8. Brasil. Ministério da Saúde. "Aspectos jurídicos do atendimento às vítimas de violência sexual – perguntas e respostas para profissionais de saúde". Brasília: Ministério da Saúde, p.20. 2005.

    9. A. Faúndes, J. Barzelatto. In: O drama do aborto: em busca de um consenso. Campinas: Editora Komedi, p.304. 2004.

    10. B. Galli, L. Silveira, L. Adesse. In: Manual de treinamento para profissionais de saúde. Rio de Janeiro: Ipas Brasil, p.84. 2007.

    11. M. de Bruyn, N. Gasman, L. Hessini. In: Abortion law reform in Latin America and the Caribbean. North Caroline: Ipas, 2005.

    12. J. Drezett. In: A saúde sexual e reprodutiva da mulher no Brasil: diferentes visões no contexto do aborto. Porto Alegre: Metrópole. pp.29-41. 2005.

    13. B. Galli, E. Gomes. "Congresso Internacional Fazendo Gênero 7, Gênero e Preconceitos". Florianópolis, 2006.

    14. Dickens, B.M., Cook, R.J. "The scope and limits of conscientious objection". Int J Gynaecol Obstet. Vol.71, no.1, pp.71-7. 2000.

    15. Cook, R.J.; Olaya, M.A.; Dickens, B.M. Healthcare responsibilities and conscientious objection. Int J Gynaecol Obstet. Vol.104, no.3, pp.249-52. 2009.

    16. Federation International of Gynecology and Obstetrics. "Ethical issues". In: Obstetrics and gynecology by the Figo Committee for the study of ethical aspects of human reproduction and women's health. United Kingdon. Figo. p.373. 2009.

    17. World Health Organization. "Safe abortion: technical and policy guidance for health systems". Geneva: World Health Organization. 2003.

    18. Conselho Federal de Medicina. Código de Ética. Resolução CFM nº 1.246. Brasília: Diário Oficial da União. 1988.

    19. Brasil. Ministério da Saúde. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes. 2. ed. Atualizada e ampliada. Brasília: Ministério da Saúde p.68. 2005.

    20. Brasil. Ministério da Saúde. Atenção humanizada ao abortamento. Brasília: Ministério da Saúde p.34. 2005.

    21. Conselho Regional de Medicina de São Paulo. In: Cadernos de ética em ginecologia e obstetrícia. São Paulo: Cremesp, 2ª edição. pp.71-78. 2002.

    22. R. J. Cook. "Fostering compliance with reproductive rights". In: Sadik N. ed., UNFPA Plus Thirty. New York, New York: University Press, 2001.

    23. B. Galli, J. Drezett, L. Adesse. Dilemas e soluções nos serviços de saúde: um estudo de casos na atenção ao abortamento com foco nos direitos humanos das mulheres. Rio de Janeiro: Ipas Brasil. p.54. 2006.

    24. A. Faúndes, J. H. R. Torres. In: Aborto legal – implicações éticas e religiosas. São Paulo: Católica pelo Direito de Decidir, pp.147-58. 2002.

    25. Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia. Violência sexual e interrupção da gestação prevista em lei. São Paulo: Febrasgo, p.91. 2004.

    26. A. Faúndes, G. A. Duarte, J. Andalaft Neto. In: Aborto induzido: conhecimento, atitude e prática de ginecologista e obstetras no Brasil. Campinas, Cemicamp. p.55. 2003.